Edição 220 | 21 Mai 2007

A secularização da secularização e o futuro da autonomia

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IHU Online

Em entrevista por e-mail, exclusiva à IHU On-Line, o filósofo francês Jean-Claude Monod enfatizou que a grande questão da democracia, tradução política da autonomia, é “como evitar que a democracia se torne uma ficção”.

Recuperando idéias de Claude Lefort, Monod afirma que “na democracia, por oposição às antigas “teologias políticas” do poder encarnado, o poder é essencialmente um “lugar vazio”, e nenhum grupo, nenhum partido, nenhuma doutrina podem pretender “ocupá-lo” de pleno direito, sem contestação, e é por esta própria “vacância” que uma vida democrática, uma “invenção democrática” é possível”. Essa e outras idéias desenvolvidas a seguir serão aprofundadas em 22-05-2007, às 9h, quando Monod  profere a conferência A secularização da secularização. Possibilidades e limites do futuro da autonomia, dentro da programação das atividades do Simpósio Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos? Promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU), o evento vai de 21 a 24-05-2007. Confira a programação completa no site www.unsinos.br/ihu.

Monod é pesquisador em filosofia alemã pós-hegeliana, filosofia política, filosofia contemporânea e ciências humanas nos Arquivos Husserl, de Paris, no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), École Normale Supérieure. De sua vasta lista de publicações, citamos La querelle de la sécularisation. De Hegel à Blumenberg (Paris: Vrin, 2002). Na edição 175, de 10-04-2006, intitulada Paulo de Tarso e a contemporaneidade, concedeu a entrevista Paulo e a fé como loucura, ruptura e escândalo.

IHU On-Line - Em que aspectos o conceito de autonomia está ligado à secularização da modernidade?
Jean-Claude Monod -
Como conceito ou “palavra de ordem” política tipicamente moderna, a secularização pôde ser definida como emancipação em face da religião, assimilada à tradição e à heteronomia, constituindo-se numa “lei do Outro”; um outro que não seja eu, um outro que não seja o homem, um outro que não seja a razão. Trata-se de uma lei imposta como imutável enquanto sagrada, transcendente. Certa explicação filosófica da modernidade compreende, deste modo, a mesma como época da autonomia do sujeito, aberta filosoficamente por Descartes com sua exigência de rejeição de tudo o que tem sido “recebido” sem exames (opiniões admitidas na infância, tradições imemoriais...), e sua refundação do saber sobre a certeza subjetiva. Além disso, a modernidade como secularização consistiria, então, para o sujeito individual, numa “autofundação”, da qual o instrumento é a razão: refundação das normas sobre a vontade do sujeito que só quer obedecer a uma lei que fez a prova de sua justificação racional, e que encontra sua tradução política na democracia. As Luzes francesas, em particular, opuseram à “aliança do trono e do altar”, isto é, à aliança do rei e do sacerdote como dupla figura da heteronomia, a contra-figura da democracia laica.

Concepção sociológica

Uma segunda concepção da secularização, mais sociológica, seria mais neutra em vista de seus efeitos para o indivíduo, privilegiando antes o que se chamou de “a autonomização das esferas sociais”. Max Weber falava, assim, de um processo de Eigengesetzlichkeit [autolegislação], ou seja, do fato de os diferentes setores sociais serem progressivamente “racionalizados” em torno de suas “próprias normas”, ou sua “lógica intrínseca” – e ele citava em apoio das máximas típicas: “a arte pela arte”, “os negócios pelos negócios, “à guerra, como à guerra”... Neste processo, grupos sociais, ou indivíduos se põem a reivindicar a autonomia de seu setor de atividade, o direito de só seguir as normas internas a este domínio, e recusam como atentados à sua liberdade os julgamentos de valor “externos”, por exemplo, os interditos e as prescrições religiosas que puderam pesar sobre a atividade artística, mas também, mais amplamente, toda pressão em função de exigências (políticas, morais, comerciais...) não-artísticas. Este processo histórico contribuiu à formação de uma sociedade secularizada, no sentido de uma sociedade na qual a religião não constitui mais o “setor dominante”, mas onde existem esferas sociais relativamente autônomas. Quanto a saber se esta autonomização funcional produz uma autonomia dos indivíduos, é uma outra questão.

IHU On-Line - Corremos o risco de nos tornarmos uma sociedade de indivíduos e pensar a autonomia apenas como sinônimo de individualismo? Por quê?
Jean-Claude Monod -
A emergência do indivíduo como sujeito de direitos também suscitou a inquietude de uma possível desmoronamento da sociedade, tanto nas críticas “reacionárias” como nas críticas “revolucionárias” da modernidade liberal-burguesa: de um lado, deplora-se a perda de uma “comunidade” soldada por elos sagrados, em favor de uma “sociedade” de indivíduos que só reconhecem elos contratuais rescindíveis; de outro, denuncia-se (de um modo mais ambivalente, por exemplo em Marx) “a atomização” do indivíduo, separado do conjunto vivo do gênero humano, ou dos grupos de solidariedade mais antigos, como família, corporação, classe. Será verdade que este processo redunda necessariamente numa ruptura de todos os elos comunitários, à constituição de uma sociedade de indivíduos egoístas e narcisistas? Parece-me que se exagera uma tendência real, acentuando-a unilateralmente: absolutamente não há mais comunidades “orgânicas”, mas há formas de grupo, comunidades semi-eletivas que continuam vivas. Afinal de contas, de fato sempre existem solidariedades familiares, a família continua sendo um pólo decisivo de muitas existências, mesmo se elas são muitas vezes famílias em evolução, “recompostas” etc. De outra parte, há grupos que se mantêm ou reconstroem sem cessar em torno de tradições religiosas ou culturais, embora na França, por exemplo, todo um discurso político pretenda afirmar que a unidade do país está ameaçada pelo “comunitarismo” e “multiculturalismo”..., o que prova, em todo o caso, que nós somos apenas uma sociedade de indivíduos. A tendência de pensar a autonomia somente como individualismo é real, e sobre este ponto se pode dizer que o quadro do pensamento da autonomia na “primeira modernidade”, digamos num modo “rousseauista-kantiano”, é amplamente detalhado: a idéia que a autonomia implique a submissão a uma “lei” comum, sem a qual não há liberdade, é cada vez mais vivida como contradição, e a idéia de que os direitos tenham, por reverso, deveres, já não passa despercebida. Sem dúvida, também certa ideologia ultraliberal sugere que os mecanismos institucionais de solidariedade com as pessoas em dificuldade, os desempregados, os pobres etc., pesam sobre a liberdade e o dinamismo dos “ganhadores”.  Esta visão da autonomia sobre um modo individualista e egoísta está em progressão, mas ela encontra múltiplas resistências. A tendência de pensar a autonomia de modo puramente individualista não me parece irresistível.

IHU On-Line - A pressuposição de que a autonomia é a conquista do direito de se dar a própria lei funda-se numa concepção iluminista e, sobretudo, kantiana. Como conciliar autonomia num mundo fenomênico, terreno do determinismo, e o numênico, da liberdade?
Jean-Claude Monod –
A resposta kantiana detinha, de fato, uma forma de dualismo. Isso dava, aliás, lugar, na Crítica da razão prática, a certas dificuldades: de que modo o “eu numenal”, fora do tempo, exerce uma causalidade na ordem fenomenal e nos seus encadeamentos mecânico-temporais? Como pensa o “começo” fora do tempo de uma ação no tempo? Este é sempre o problema do postulado da liberdade metafísica que implica uma capacidade de subtrair-se do conjunto das determinações naturais para “decidir”. Atualmente, existe uma tentação de se ter por nula a capacidade de “se construir” a si mesmo, por exemplo, reconstruindo a personalidade sobre a constituição genética do indivíduo. Viu-se, por exemplo, na última campanha presidencial na França, o candidato finalmente eleito declarar que o suicídio e a pedofilia eram inteiramente genéticos, e o relatório de um grande organismo de pesquisa e de saúde havia recomendado, faz alguns meses, de se “detectar” os futuros “delinqüentes” desde antes da idade de três anos, na creche... Há, pois, concepções deterministas efetivamente incompatíveis com a idéia da autonomia, mas toda concepção do mundo não-dualista não conduz, segundo penso, a tal determinismo: pode-se pensar qualquer coisa como um feixe de determinações, algumas inatas, outras adquiridas, outras ligadas a uma situação social, a uma história psicológica própria etc., de modo que o resultado seja necessariamente aberto a certo “jogo”, a uma margem que ameaça a capacidade de escolhas refletidas... É o que Robert Musil ou Hans Blumenberg chamaram de o “princípio de razão insuficiente”: a totalidade dos fatores e de seus efeitos é impossível de conhecer e “calcular”. Todo determinismo, desse modo, é parcial e há lugar para uma indeterminação da ação.

IHU On-Line - Poderia explicar como e por que a democracia é a tradução política da autonomia? Dado o comportamento apático dos eleitores, ou a obrigatoriedade em votar (como no Brasil), ainda se pode acreditar que essa aproximação expressa a realidade?
Jean-Claude Monod -
Quaisquer que sejam seus limites reais, a democracia não parece ser o quadro político menos desfavorável à expressão da autonomia dos indivíduos, se não se reduz a democracia ao direito de voto (mesmo se a possibilidade de votar é evidentemente uma dimensão da democracia, uma condição necessária, porém não suficiente). Por certo, desde sua conceitualização moderna em Rousseau  ou Kant, a idéia que a lei possa ser a expressão da vontade “de todos” e que cada um nela possa se reconhecer, era colocada como uma “ficção”: é preciso fazer “como se” eu pudesse ser o autor da lei, “ao mesmo tempo, legislador e sujeito”, e eu o posso submetendo a lei a uma prova crítica – ela está realmente a serviço do interesse geral ou privilegia as categorias que menos precisam? Ela respeita meus direitos fundamentais? Ela constitui um entrave às liberdades? Se eu julgo desfavoravelmente uma lei, eu penso, em democracia, em sair para a rua, em protestar publicamente, manifestar, formar uma associação, escrever nos jornais etc., e todas estas possibilidades dão corpo à autonomia... Se a gente se atém ao voto, é verdade que muitas vezes é difícil fazer “como se” o seu voto, um entre milhões (no caso, por exemplo, da eleição presidencial na França) tivesse um certo alcance... tanto mais que as escolhas parecem amplamente “formatadas”, limitadas pelas lógicas de partido e desequilibradas pela mobilização de forças midiáticas consideráveis. A questão é, então, a seguinte: como evitar que a democracia se torne uma ficção? Não devemos mascarar, a meu ver, outros aspectos que foram notavelmente sublinhados por Claude Lefort : na democracia, por oposição às antigas “teologias políticas” do poder encarnado, o poder é essencialmente um “lugar vazio”, e nenhum grupo, nenhum partido, nenhuma doutrina podem pretender “ocupá-lo” de pleno direito, sem contestação. É por esta própria “vacância” que uma vida democrática, uma “invenção democrática”, é possível.

IHU On-Line - O senhor aproximaria heteronomia religiosa e heteronomia política em nossos dias? Por quê? Como essa ligação pode ajudar a explicar os fundamentalismos religiosos e os regimes de exceção?
Jean-Claude Monod -
O elo traçado entre heteronomia religiosa e heteronomia política é um gesto típico das Luzes, em particular das Luzes pré-revolucionárias francesas, que consistia em denunciar a legitimação “divina” do poder real ou o que se chamou de “a aliança do trono e do altar”. Além disso, toda a corrente da “crítica da religião”, notadamente na filosofia alemã, estimou que a emancipação humana começasse pela emancipação em face da religião, ou, como o dizia Marx, que “a crítica da religião é a condição de toda crítica”, o pressuposto para uma “crítica da política” e da alienação econômica. Esta concepção ainda tem sentido hoje em dia? Os totalitarismos e as ditaduras do século XX mostraram abundantemente a possibilidade e a realidade de dominações políticas extremas que nada tinham de religiosas, salvo ao se falar de ”religiões seculares” ou de religiões políticas, como o fizeram certos analistas (Voegelin, Gurian ou Aron). E, no caso do nazismo, como no caso do comunismo soviético, foi muitas vezes nas Igrejas que se encontraram lares de resistência a estas dominações. Atualmente, no Ocidente, as Igrejas, na maioria das vezes, se separaram dos Estados e contestam, muitas vezes abertamente, as orientações sociais e políticas dos governos, incluindo o liberalismo. O domínio no qual certa “heteronomia” religiosa continua a desempenhar um papel, a meu ver, é antes o da moral, em particular da moral sexual.
Os regimes de exceção, notadamente os dispositivos postos em prática no quadro da “guerra contra o terrorismo”, nada têm a ver com a heteronomia religiosa, salvo caso se sonhe com a Teologia política de Carl Schmitt e com sua famosa definição do estado de exceção, que conecta o soberano político com Deus: “é soberano quem decide pelo estado de exceção”, com o paralelo entre, de um lado, a ordem regular do mundo e o milagre “decidido” por Deus (que suspende as leis do mundo) e, do outro, a ordem jurídica e o estado de exceção (que suspende leis, direitos ou a Constituição em vigor). Também seria preciso interrogar o vocabulário da “cruzada” contra o “Mal”, que foi um léxico privilegiado da administração Bush na “guerra contra o terrorismo”.

Os fundamentalismos justificariam aproximar novamente heteronomia política e heteronomia religiosa? Pensando no mundo muçulmano, por exemplo, na República iraniana, parece-me que se tem aí um exemplo de teocracia que alia certa heteronomia religiosa e política, embora certos mecanismos democráticos e republicanos estejam também presentes nesta forma política composta. As formas cristãs de fundamentalismo desenvolvem, na maioria das vezes, uma estratégia que evita pretender o controle político direto da sociedade, e privilegia antes uma conquista social “por baixo”, num quadro pluralista.

IHU On-Line - Qual é o seu ponto de vista sobre a crítica de Nietzsche à democracia de que ela é a expressão da decadência e fraqueza da modernidade, bem como o arrebanhamento do “último homem” em seu projeto? Em que medida a autonomia pressuposta pelos filósofos legisladores de Nietzsche, os aristocratas do espírito, expressa ou não o fazer político que hoje existe nas democracias?
Jean-Claude Monod -
A crítica de Nietzsche realça, de uma parte, uma retórica da decadência, certamente conduzida a um ponto de elaboração notável, mas atravessada por um horror da “plebe” e por um aristocratismo intelectual do qual não participo. Em compensação, sua descrição do “último homem” e da satisfação de si de quem não crê mais em nada, que perdeu todas as ilusões, que se crê acima de tudo quando não tem mais a força de crer no que quer que seja, parece-me sempre impressionante. Como dar-se à força de ainda crer em ideais que resistem à desvalorização de todos os valores, à historicização e à relativização de tudo sob o efeito do sentido histórico e da ironia que dele resulta? É esta questão que Nietzsche lega como desafio a todo pensamento pós-metafísico que não quer soçobrar no niilismo puro.

IHU On-Line - O senhor está acompanhando o debate entre Luc Ferry e Marcel Gauchet sobre o lugar do cristianismo? Acredita que os valores cristãos continuam se expressando na democracia? Por quê?
Jean-Claude Monod -
Eu não acompanhei este debate, no qual nenhuma posição me parece satisfatória, embora uma que outra não seja desprovida de interesse. “A humanização do divino” de que fala Luc Ferry correspondeu bem a uma fase (recente) da evolução do cristianismo institucional: sua reconciliação com a idéia de autonomia, precisamente com os valores “humanistas” do sujeito livre, dos direitos do homem e da democracia, tidos por “ímpios” há pouco tempo. A objeção de Gauchet , segundo a qual se teria antes envolvimento com uma “desantropomorfização” de Deus nos tempos recentes, recobre um outro processo, real (poucas pessoas se representam hoje Deus como um homem em grau maior, um personagem barbudo etc.), mas não incompatível com certa “humanização”, no sentido de Ferry. Eu sou mais cético ante o tema, avançado por Gauchet, de uma “saída da religião” de um mundo estruturado pela religião: parece-me que ele conferiu valor definitivo a um momento particular da história européia, e que incidiu em certos defeitos das “filosofias da História” do século XIX, postulando que o futuro se assemelharia a esta seqüência determinada. De maneira geral, e paradoxalmente para Ferry, que é um “kantiano”, estas fórmulas de Ferry e de Gauchet me parecem excessivamente “hegelianas”, no sentido de que elas tentam resumir numa fórmula processos históricos maciços, evoluções por vezes contraditórias – não estou seguro que isso seja possível sem uma grande simplificação. Em compensação, eu faço minha a interrogação sobre o futuro do religioso após a religião, ou sobre as transformações do “crer“ além do declínio relativo, na Europa ocidental, das Igrejas: em que medida as crenças políticas não sofreram também elas um declínio enquanto expectativas de uma mudança radical? Em que medida a fé no Estado não se manteve ela própria por sua rivalidade com a Igreja? Estas questões de Gauchet me parecem fundamentais para o presente.

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