Edição 219 | 14 Mai 2007

“Se o aborto é um problema, a sua solução não é o próprio aborto”

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IHU Online

O professor Dr. José Roque Junges, padre jesuíta, do PPG em Ciências da Saúde da Unisinos, é especialista nos temas de Bioética, Ética Ambiental e Saúde Coletiva. Ele contribui com sua reflexão sobre o aborto na edição desta semana, com uma entrevista especial concedida por e-mail.

Junges possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, mestrado em Teologia pela Pontificia Universidad Catolica de Chile e doutorado em Teologia Moral pela Pontificia Università Gregoriana de Roma, Itália. É também editor associado da Revista Brasileira de Bioética (RBB), vice-presidente da Sociedade Rio-grandense de Bioética e membro da Sociedade Brasileira de Teologia Moral – SBTM. Tem experiência na área de Teologia, Filosofia e ética, com ênfase em bioética. Entre seus livros publicados citamos Bioética: perspectivas e desafios (São Leopoldo: Unisinos, 1999); Ecologia e Criação: resposta cristã à crise ambiental (São Paulo: Loyola 2001); Ética ambiental (São Leopoldo: Unisinos, 2004); Bioética: Hermenêutica e Casuística (São Paulo: Loyola, 2006).

IHU On-Line – Em que consiste a abordagem ética do aborto (bioética hermenêutica) que não se reduz à abordagem jurídica ou sociológica (bioética casuística)?
Jose Roque Junges -
O grande sanitarista italiano Giovanni Berlinguer afirma que o aborto é o lado obscuro das funções reprodutivas humanas, porque é fruto de causas desconhecidas ou de decisões atormentadas, porque termina um processo tendente ao nascimento de um ser humano e porque é sempre um flagelo para as mulheres em idade fértil. Esse lado obscuro, e muitas vezes sofrido do aborto, exige que o tema não seja tratado com leviandade, desconsiderando a complexidade do fenômeno. Por isso, não se pode reduzir a discussão à pura abordagem sociológica fundada em fatos e estatísticas nem à abordagem jurídica em favor ou contra uma lei. Essa perspectiva casuística do “pode” ou “não pode” e das condições para a aceitabilidade de um e de outro desconsidera as questões mais fundamentais, que são éticas. Nesse sentido, é necessário colocar entre parênteses posicionamentos motivados por interesses imediatos e pragmáticos e tentar uma reflexão ética em profundidade que vai aos significados simbólicos das ações humanas. A filósofa francesa Monique Canto-Sperber, referindo-se ao aborto, diz que a reflexão ética pode desempenhar um papel considerável na justificação pública de escolhas e decisões, com a condição de que não seja confundida com o que ela não é: um exame sociológico e uma regulamentação jurídica. A discussão sobre o aborto, em geral, se reduz a essas duas perspectivas. Isso obriga a retornar à especificidade da ética, não entrincheirando-se em um bastião particularista que responde a interesses casuísticos, mas procurando interpretar as questões de fundo envolvidas na questão do aborto, que são simbólicas, pois apontam significados. Daí a necessidade de uma reflexão séria, honesta e serena sobre a questão. Por isso, a discussão não pode ficar reduzida a uma bioética casuística que responde a necessidades imediatas e pragmáticas das ações com vistas a uma pura regulamentação jurídica ou a uma resposta sanitária, mas introduzir a bioética hermenêutica que tenta interpretar as mensagens simbólicas de significado antropológico que as ações expressam. Toda ação moral tem uma dimensão pragmática (necessidade) e uma dimensão expressiva ou simbólica (significado). Quanto mais as ações são caracterizadas por uma complexidade simbólica, como é aquela que envolve o aborto, elas não podem ser restringidas a necessidades imediatas, porque passam uma mensagem de fundo que necessita interpretação para uma tomada de consciência ética, em vista da autonomia moral da ação.

IHU On-Line – O aborto é um problema para o qual é necessário encontrar uma solução ou ele é a solução para outras questões em geral não formuladas?
Jose Roque Junges -
Essa é uma questão ética prévia necessitada de resposta para a sua definição jurídica. Se o aborto é um problema (por exemplo, os abortos clandestinos), então é necessário propor soluções que possam prevenir a necessidade do recurso ao aborto. Nesse caso, trata-se de propor leis que atacariam as causas do aborto como, por exemplo, o planejamento familiar; a superação da discriminação com as mães solteiras e ajuda aos seus filhos; uma rígida legislação para proteger o emprego da mulher grávida e em tempo fértil; leis que facilitem e promovam a adoção dentro de parâmetros jurídicos; o amparo social vitalício para filhos excepcionais; a introdução do salário maternidade; a multiplicação de creches; a melhoria na situação de pobreza. Portanto, se o aborto é um problema, a sua solução não é o próprio aborto. Não atacando as causas do aborto está se perpetuando a situação social que o provoca. A lei deveria ser no sentido de prevenir o aborto, como muito bem afirma o já citado Giovanni Berlinguer. Mas se o aborto é solução, então é necessário explicitar para quais problemas ele é solução, e se essa é eticamente aceitável para o que ela quer responder. Só para dar um exemplo, se o aborto é proposto como solução para a gravidez de adolescentes, a pergunta a ser feita é se o tipo de cultura sexual a que os jovens hoje são expostos é aceitável e sadia para o seu desenvolvimento psicológico e moral. Propor o aborto é desviar a questão e não ter a coragem de ir à raiz do problema. Nessa perspectiva, é bom lembrar o desafio posto pelo jornalista Jean-Claude Guillebaud, em seu livro A tirania do prazer (Rio de Janeiro: Bertrand, 1999): a necessidade de uma séria revisão crítica dos resultados da revolução sexual, como se fez de outras revoluções modernas que passaram pelo crivo da análise crítica. No entanto, parece que a revolução sexual é ainda uma caixa preta que não se pode tocar. A falta dessa revisão crítica pode, segundo Guillebaud, provocar novamente na cultura uma reação repressiva.

IHU On-Line – O aborto pode ser considerado um método de controle da natalidade?
Jose Roque Junges -
Esse seria um outro exemplo de quem propõe o aborto como solução. Quando outros métodos de controle da natalidade falharam, resta para alguns o recurso do aborto. Isso significaria equiparar a eliminação consciente e deliberada de um simples óvulo com a eliminação de um embrião. Tratam-se de realidades diversas que não podem ser colocadas no mesmo patamar, pois o óvulo tem apenas a possibilidade remota potencial de tornar-se um embrião, enquanto o embrião detém as potencialidades genômicas reais de um ser humano. Por isso, o aborto não seria eticamente aceitável como método de controle da natalidade.  

IHU On-Line – Em que medida se pode relacionar o fenômeno do aborto com a mentalidade abortista que banaliza a questão?
Jose Roque Junges –
Abortos sempre aconteceram, considerados como um último recurso e assumidos como um mal inevitável, porque não havia outra saída. A própria doutrina moral católica aceita a possibilidade do aborto chamado de indireto pelo princípio do duplo efeito . A diferença em relação aos nossos tempos é que o aborto está se tornando um fato aceito como normal e corriqueiro, não mais uma pura saída para situações extremas, mas até um direito a se exigir. Esse fenômeno sociocultural do surgimento de uma mentalidade abortista é um desafio, porque leva a banalizar o aborto, à medida que ele é colocado ao lado de outras intervenções médicas, esvaziando-o de sua complexidade simbólica. Essa mentalidade faz parte de um paradigma cultural mais amplo de inspiração liberal, centrado no indivíduo autônomo. Esse paradigma moderno, e sua conseqüente mentalidade, está sendo criticado pela sua perspectiva individualista, carente da dimensão inter-relacional. Ele pode ser apontado como causa das mazelas sociais e morais da sociedade atual. A questão ecológica é apenas um exemplo desta falta de sensibilidade para o contexto inter-relacional. Vivemos numa sociedade de indivíduos centrada na reivindicação dos direitos de cada um e com pouca consciência para as interdependências. A discussão sobre aborto pode ser afetada por essa dinâmica cultural, ficando reduzida à questão jurídica de quem é detentor de direitos: a mulher ou o embrião. Introduzindo o paradigma relacional, o enfoque será outro. Essa é a proposta do jurista italiano Francesco D’Agostino , no sentido de contrapor ao paradigma individualístico-libertário, para o qual o direito serve para garantir os direitos dos indivíduos, o paradigma relacional, no qual o sistema jurídico serve para defender as expectativas da pessoa em sua realidade de sujeito-em-relação. Para esse paradigma, é juridicamente ilícita toda modalidade de relação que altere a simetria da reciprocidade, dando a um dos elos poderes e privilégios que o outro elo não detém. Para essa compreensão, não são defensáveis bens e valores que sejam incompatíveis com a lógica da reciprocidade. Se o aborto for compreendido na perspectiva relacional, ele aparecerá sob outro enfoque jurídico. Mas, para isso, é necessário introduzir a questão do estatuto do embrião.

IHU On-Line – Como se formula a questão do estatuto do embrião, considerando sua implicação na questão do aborto?
Jose Roque Junges -
Gostaria de iniciar com a afirmação do pioneiro na pesquisa da reprodução humana na França, Jacques Testart, que se encontra na entrevista dada à revista La Vie: “Eu sou ateu e não creio que o embrião seja sagrado, mas para mim ele merece respeito e não pode ser considerado como um material à imagem de um embrião de rato”. Essa afirmação de um ateu ajuda a rebater aqueles que desconsideram e desautorizam como interlocutor na discussão qualquer pessoa que defende o embrião como sendo motivada por uma mentalidade religiosa, com argumentos confessionais de autoridade e não livre para refletir e discutir. A discussão sobre o estatuto do embrião deve, antes de nada, ser uma discussão ética que não pode estar fundada em dogmas religiosos e muito menos em seus substitutivos atuais, os dogmas científicos. Se a discussão sobre o aborto não se fecha às questões simbólicas de fundo implicadas, termina colocando a questão do estatuto do embrião. Nessa discussão, é necessário explicitar a posição em relação ao embrião, porque ela expressa a complexidade simbólica do fato. A definição do estatuto do embrião não é uma questão casuística como é o caso da reanimação ou não de um neo-nato em situação desastrosa ou de um aborto para salvar a vida da mãe. O estatuto é uma questão diferente e superior. Não se trata de aplicar princípios, mas de se dar princípios ou reconhecê-los como agente moral. Não se trata de decidir uma ação concreta, mas de identificar moralmente um ser. Neste caso, é necessário abstrair de fatos concretos e delimitações para adquirir o ponto de vista moral caracterizado como desinteressado e imparcial. Por isso, o ponto de partida não pode ser jurídico, interessado em criar regras coletivas entre iguais, mas ético, significando posicionar-se como agente moral diante de alguém ainda não participante do consenso e do qual ainda não posso ter experiência de um outro como um eu. Quem argumentou sobre essa questão de uma maneira consistente foi Vincent Bourguet, em seu livro O ser em gestação: reflexões bioéticas sobre o embrião humano. Para ele, a definição do estatuto do embrião depende da resposta a duas questões. A primeira deve ser dada pela ciência: o embrião é uma individualidade biológica humana. A segunda, por sua vez, deve ser respondida pela ética: essa individualidade merece a categoria moral (não ontológica) de pessoa identificada com respeito. Quanto à primeira, ela examina as teorias científicas de definição da individualidade de qualquer ser vivo que, em última análise, é sempre processual e definido, segundo Bourguet, pelo genoma. Aqui aparece o clássico contra-argumento dos gêmeos monozigóticos, rebatido por ele, porque se confunde a cisão do conjunto celular inicial em dois com a segmentação celular dos seres vivos unicelulares ou com a mitose das células sexuais reprodutivas. A segunda questão é essencialmente ética: em que medida essa individualidade biológica humana merece, no sentido moral, o respeito devido a uma pessoa? Aqui o autor fundamenta-se em Kant, Husserl e Levinas

IHU On-Line – É possível conjugar a defesa e a autonomia da mulher e a defesa do embrião?
Jose Roque Junges -
Esses posicionamentos antagônicos são o pomo da discórdia entre o grupo Pro-life, que defende o respeito ao embrião, e o grupo Pro-choice, que defende a autonomia da mulher. Eles parecem irreconciliáveis. Um grupo de mulheres americanas (3 Pro-life e 3 Pro-choice) tentaram dialogar sobre o aborto, por inspiração do Arcebispo católico de Boston e do Governador de Massachussets da época, em resposta ao clima tenso criado pela tragédia perpetrada por John Salvi, na cidade de Boston, em 30 de dezembro de 1994, contra clínicas que praticavam aborto, assassinando duas funcionárias e ferindo outras. A fúria homicida de Salvi deixou enraivecidos os membros do Pro-choice e preocupados os do Pro-life pelas repercussões em função da causa. O grupo dialogou durante três anos, constatando que nunca chegariam a um acordo, mas que era possível conversar sobre o tema de uma maneira respeitosa para explicitar e tentar entender as razões de uma e outra posição. Embora não haja acordo, creio que é possível ao menos tentar entender a perspectiva da outra posição. Os que defendem a autonomia da mulher tentam abrir-se para compreender o significado antropológico e simbólico do embrião e suas implicações morais, e os que defendem o embrião tentam entender o sofrimento e o beco sem saída em que se encontram mulheres em situação de abortar. As mulheres não abortam por bel-prazer, pois o aborto, em geral, é fruto de decisões atormentadas. Por outro lado, aos que defendem a pura autonomia na decisão de abortar, é necessário perguntar a que tipo de autonomia se referem. Trata-se da autonomia individualista, isenta da dimensão inter-relacional e da interdependência que privatiza a questão do aborto? Essa compreensão de autonomia está justamente na raiz das conseqüências negativas da modernidade que estão sendo questionadas.

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