Edição 218 | 07 Mai 2007

“O que está acontecendo na verdade é um processo de reestruturação da indústria”

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IHU Online

Em entrevista à IHU On-Line, por telefone, o economista David Kupfer disse que a indústria brasileira está passando por um processo de reestruturação. Para ele, a “reestruturação tem muito mais efeitos intra-industriais do que inter-industriais”, o que ele explica como sendo uma mudança “dentro dos setores industriais do que entre os setores industriais”. Kupfer salientou ainda que, mesmo distante, a desindustrialização é um cenário possível no Brasil, por isso, para ele, são necessárias uma mudança na política macroeconômica do País e uma reformulação na política industrial.

David Kupfer é mestre e doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, é professor adjunto do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do grupo de pesquisa em Indústria e Competitividade (GIC-IE/UFRJ). Kupfer também é coordenador do programa de pós-graduação do Instituto de Economia da UFRJ e autor de inúmeros artigos sobre inovação, competitividade e concorrência na indústria brasileira e co-autor do livro Made in Brazil (Rio de Janeiro: Campus, 1996), junto com dois pesquisadores do IE-UFRJ, João Carlos Ferraz e Lia Haguenauer.

IHU On-Line - No caso do Brasil, o senhor afirma que os sintomas apresentados, a rigor, não se encaixam na doença holandesa. Isso quer dizer que o País não está vivendo um processo de desindustrialização e sim uma reestruturação industrial?
David Kupfer –
Penso que sim. É exatamente essa a idéia. A desindustrialização é um processo de desenvolvimento estrutural. Esse processo demanda tempo porque envolve uma operação importante no peso dos setores na composição da produção da indústria. O que está acontecendo na verdade é um processo de reestruturação da indústria. Essa reestruturação tem muito mais efeitos intra-industriais do que inter-industriais. As coisas estão mudando muito mais dentro dos setores industriais do que entre os setores industriais. Esse tipo de mudança se destaca em relação ao tamanho das empresas, porque as grandes e pequenas empresas estão crescendo de importância e as de médio porte estão perdendo importância na estrutura industrial brasileira.

IHU On-Line - Para melhorar a competitividade do Brasil e evitar mais crises com a desindustrialização, a política industrial deveria priorizar mais as áreas que atuam em tecnologia?
David Kupfer –
A atual política fiscal brasileira dá uma grande prioridade para a dimensão tecnológica, o que é correto. A própria idéia de fazer uma política industrial e tecnológica, inclusive no nome, aponta numa direção correta de diretriz de política. Acho que a questão da tecnologia no Brasil está muito mais no nível das empresas do que da política, propriamente. As empresas ainda estão um pouco refratárias ou continuam refratárias ao esforço e pesquisa em desenvolvimento. Ainda não buscam a capacitação, não realizam gastos, investimentos na forma requerida e, evidentemente, a política tem que ter a capacidade de mobilizar as empresas nessa direção. Então eu não percebo um alcance na política industrial suficiente para criar essa mobilização. Mas, de fato, a questão tecnológica é decisiva porque precisamos que aquela parte da indústria brasileira que já tem um nível de competitividade em termos internacionais, aumente o modelo tecnológico de seus produtos para poder disputar de forma mais plena os mercados internacionais. Refiro-me aos nossos setores mais competitivos, em geral associados a insumos básicos, às commodities, que no entanto são muito especializadas e concentradas em produtos de baixo nível de elaboração industrial, como o caso da siderurgia, ou o caso da celulose, ou então da química. Então, essas empresas que já têm competitividade precisam de mais tecnologia para poder disputar novos segmentos de mercados, mais sofisticados. O restante da indústria, que é mais atrasado e menos competitivo, precisa de tecnologia para aumentar a velocidade no processo de modernização.

IHU On-Line - A política industrial do Brasil precisa ser reformulada? Por quê? Quais as principais mudanças necessárias?
David Kupfer –
Eu acredito que a política industrial precisa ser reformulada. A diretriz ou as diretrizes da política industrial em vigor foram definidas tendo como horizonte uma realidade de indústria que já se modificou. Então, na verdade, a política foi desenhada ao longo de 2002 e 2003 e obviamente ela tinha como referência a situação da indústria no início ou no final da década passada, ou o início dessa década de 2000. E, nesse caso, é uma política industrial que trabalhava num quadro de vulnerabilidade externa, de saldo comercial não muito grande, e assim sucessivamente. Isso significa também uma política industrial pensada num quadro de taxa de câmbio bastante diferente do que existe hoje. O que aconteceu é que, por uma série de razões não totalmente conhecidas, a indústria brasileira teve uma resposta exportadora muito grande, produziu superávits importantes. Vale lembrar que a taxa de juros alta também atrai capital. Então temos, ao contrário, um volume de capital muito alto entrando no País, uma tendência de câmbio valorizado persistente e, portanto, um quadro macroeconômico muito diferente. Ao mesmo tempo, temos uma situação diferente no mercado internacional, porque os preços das mercadorias se inverteram em relação aos que existiam no final da década de 1990. Assim, o quadro geral da indústria brasileira e mundial é bastante diferente ou mudou muito nesses anos atuais. Isso significa, na prática, que a política tinha um mérito muito grande na escolha de determinados setores prioritários que seriam setores de base tecnológica da indústria: os bens de capital, semicondutores, e assim sucessivamente.

Linha geral
Acredito que essa linha geral até pode ser preservada, porque de fato nós precisamos aumentar a densidade das relações entre setores no plano tecnológico e pensar as relações tecnológicas na indústria brasileira. Mas eu acredito que na nova situação a possibilidade de construção desses setores ficou diferente. Então eu imagino que a política deverá que ser reformulada para definir oportunidades não setoriais, mas conjuntos de produtos, segmentos de produtos, segmentos setoriais onde exista um espaço para o desenvolvimento da produção industrial no Brasil.

Ao mesmo tempo, penso que a dimensão horizontal da política tem que ser fortalecida de algum modo. A dimensão horizontal é uma parte grande da política industrial em vigor, que tenta apoiar o processo de modernização das empresas sucessivamente, mas não tem muita efetividade. Ela precisa ser mais efetiva, por exemplo, na questão do financiamento, na disponibilização de acesso ao crédito por parte das empresas de menor parte, no apoio à exportação por parte dessas empresas, e assim sucessivamente.  Eu diria, em termos bem sintéticos, que a dimensão horizontal da política precisa ser mais forte, mais pró-ativa e a dimensão vertical terá de ser reformulada para dar conta de linhas de produtos, conjuntos de produtos, segmentos setoriais, eventualmente envolvendo outros setores que não exclusivamente a indústria de bens e capital.

IHU On-Line - O senhor apresenta um estilo do processo industrial brasileiro, estruturado em três pilares, digamos assim, base, miolo e ponta. Em que consiste esse estilo? Que mudanças significativas esse estilo propõe?
David Kupfer –
Na verdade, isso é uma estilização porque a indústria é necessariamente formada por uma variedade de atividades produtivas e essas atividades produtivas são muito diferentes entre si. É claro que a indústria teria que ser dividida em um amplo número de segmentos e a capacidade de sínteses se perde. Então é comum em análises em economia industrial o recurso à tipologia de estilização dessa natureza. Nesse caso específico, o que eu estou tentando evidenciar com essa idéia de que existe uma base, um topo e um miolo da indústria é fundamentalmente a dimensão tecnológica da indústria. Isso significa que nós temos no Brasil uma base de indústria bastante competitiva que, no entanto, precisa dar um salto, e esse salto precisa ser empresarial. Ele, inclusive, está acontecendo lentamente e envolve a internacionalização das empresas sucessivamente. Nós temos uma parte de cima da indústria que é o topo, mais sofisticado do ponto de vista da organização industrial, das tecnologias que utilizam, dos recursos que exigem, das instituições que demandam. Ela existe no Brasil, mas ela é a fração menor e demanda uma política tecnológica de fomento muito ativa, que tem a ver, portanto, com determinados horizontes dos instrumentos de política industrial que se pode manejar. Temos um miolo na indústria que é muito importante, que no meu entendimento é o que dá a necessidade da indústria brasileira, que são as empresas médias e pequenas que fabricam insumos, componentes, os produtos de bens de consumo final tipo têxtil e calçadista. Esse “miolão” na indústria, que compreende a maior parte das empresas e do emprego, precisa modernizar-se porque está ficando novamente muito defasado e apresenta problemas estruturais muito importantes, nos quais, por exemplo, impera a informalidade, e as questões tributárias são destrutivas, porque vão dificultando exatamente a formação dessas cadeias produtivas, e assim sucessivamente. Então, a idéia dessa estilização é verificar precisamos muito de duas políticas industriais diferentes. Precisamos ter uma política que consiga sintonia fina para levar às empresas do miolo o apoio ao processo de modernização, e às empresas da base da ponta o salto tecnológico que elas necessitam dar.

IHU On-Line - O senhor disse que todos os países do mundo praticam políticas industriais e são bem-sucedidos, mesmo sem condições ideais. Esse é o caso do Brasil?
David Kupfer –
Não, não é o caso do Brasil. A idéia é que todos os países do mundo praticam políticas industriais e alguns são bem sucedidos. No caso brasileiro, não se pode dizer que temos uma política industrial bem sucedida. Mas entendo também que estamos numa fase muito inicial da política industrial. Perdemos muito tempo desmontando as instituições da política industrial anterior e discutindo se a política industrial era necessária, não era necessária, se existia ou não existia. Isso, digamos, comandou a política industrial no Brasil nos últimos 15 anos. A política industrial é muito nascente para produzir efeitos. O que eu acho importante é que perseveremos, mesmo que a política industrial já tenha que ser reformulada em grande ou pequena intensidade. De todo jeito, precisamos continuar debatendo e buscando um desenho ideal de política industrial para colocar em prática essas linhas, porque a indústria vai responder. A indústria brasileira certamente tem capacidade de resposta a um conjunto adequado de políticas que tendem a dinamizá-la.

IHU On-Line - Uma política industrial emergencial é necessária para que não ocorra a desindustrialização? Qual seria a estratégia?
David Kupfer –
Eu creio que sim. Inclusive, ela já está começando a vir com essa proposta de ampliação de tarifas para têxtil e calçado. Esses setores certamente vão precisar passar para um novo processo de reestruturação e foi importante e correta a decisão de aumentar a dose de proteção. Eu entendo, no entanto, que essa proteção precisa ser temporária. A indústria necessita ter uma resposta num prazo definido. Não pode ser uma proteção para sempre, porque a idéia não é preservar a indústria simplesmente do mesmo jeito que se busca preservar determinados objetos da história ou da cultura. O País não morreu. A indústria precisa ser mantida sob pressão competitiva para que ela permaneça sempre aumentando a produtividade e melhorando a competitividade. Mas não se pode ir além da capacidade de resposta possível, e, portanto, nesse sentido, uma proteção temporária que permita a reestruturação da indústria é bem-vinda. Estava na hora mesmo. O que falamos sobre a política industrial emergencial não tem nada a ver com a política industrial de longo prazo, que tem uma estratégia, um foco. Isso tem a ver com a administração da situação competitiva de industriais que estão sobre acirrada concorrência internacional.

IHU On-Line - Se o Brasil ainda não vive uma forte crise de desindustrialização, estamos no caminho para que isso ocorra no futuro? Será possível controlá-la?
David Kupfer –
A desindustrialização é um cenário possível no Brasil. Acredito que ela não aconteceu porque o tempo não é suficiente. O tempo em que a indústria está funcionando nesse quadro é pequeno, dois ou três anos, o que não é tempo suficiente para estabelecer uma desindustrialização. Mas isso poderá acontecer num quadro de continuidade. Daqui a alguns anos poderemos perceber que a desindustrialização estará estabelecida. Uma política industrial do tipo emergencial não vai conseguir evitar esse processo. Na verdade, ela vai adiá-lo, fazer isso ocorrer de maneira mais lenta. Precisamos de uma política industrial de longo prazo para impedir esse processo. É mais difícil reverter um quadro já estabelecido do que impedir que ele se estabeleça. Então, seria prudente e inteligente tentar impedir que a indústria recue a um nível tal que já não se tenha uma atividade industrial significativa no País. Do ponto de vista da elaboração da política econômica, é importante que a política levasse em conta as possíveis mudanças estruturais e as transições estruturais que estão abertas nesse momento, sendo que a trajetória de desindustrialização é uma dessas possibilidades. Precisamos mudar também a política macroeconômica, com uma redução mais rápida da taxa de juros, deixar a economia ser mais irrigada com recursos para que os investimentos aumentem, a fim de que o consumo possa crescer mesmo que isso provoque um risco de inflação. No entanto, é preciso equacionar isso e permitir que a indústria se dinamize para ela poder apresentar uma resposta que, de fato, tenha implicações a longo prazo.  Alguns analistas até questionam a necessidade da indústria. Eu não vejo um país no estágio em que está o Brasil, poder largar mão da indústria. A indústria já não é mais uma grande geradora de emprego, mas ao mesmo tempo ela é uma grande geradora de demanda de serviços. A indústria gera demanda para serviços de qualidade e, portanto, sem uma indústria forte não será possível criar um setor de serviços fortes no Brasil.

IHU On-Line - A indústria brasileira ainda tem chances de competir no mercado internacional?
David Kupfer –
Eu tenho certeza disso, mas voltando, por exemplo, àquela estilização, a nossa indústria na base tem uma inserção internacional muito boa e garantida, porque ela depende de recursos naturais, e o Brasil tem uma plantação excelente de recursos naturais. O que precisamos é aumentar o preço médio do produto exportado e suprir melhor o mercado interno com os insumos básicos de maior poder tecnológico. Então, é um processo incremental, o que poderá ser realizado. Nós temos um topo de indústria que não é muito diversificado, mas fruto de um grande esforço de constituição da indústria do Brasil.  Afinal, temos uma indústria de máquinas com experts, particularmente na mecânica. Temos um miolo da indústria que é bastante diversificado. Produzimos muito e há uma indústria bastante integrada. É esse miolo que está em questão. O que poderá acontecer de muito ruim, nesse cenário de desindustrialização, chegará exatamente no miolo da indústria. Essas atividades é que estão fundamentalmente desafiadas e são elas que têm um ponto de partida excelente porque existe um conjunto de empresas bem montadas e competitivas. Então eu acredito que a indústria continua mantendo as condições de sobrevivência e de resposta, de uma resposta positiva, de expansão. Mas é preciso melhorar o ambiente de negócio da indústria brasileira. Isso vai demandar de uma política econômica, que inclua a macroeconomia e a política industrial para que esse tecido industrial possa evoluir.

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