Edição 217 | 30 Abril 2007

Fenomenologia do espírito, uma introdução à “modernidade”

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“Uma retomada de toda a tradição de pensamento do Ocidente e uma introdução à ‘modernidade’ que começou a despontar com o evento da Revolução Francesa e, pouco depois, com o nascimento do maquinismo industrial e de suas repercussões sobre o pensamento e a vida dos homens”. Assim o filósofo francês Pierre Jean-Labarrière, especialista em Hegel, se refere à importância da Fenomenologia do espírito. Entretanto, salienta que isso “não significa que a obra de Hegel possa jamais nos liberar da tarefa que nos cabe de inventar novas formas de convivência e cooperação. O mundo continuou a girar de dois séculos para cá, e não se trata de procurar em Hegel soluções todas prontas para os problemas de outra dimensão, e talvez de outra natureza, que nos coloca, por exemplo, a entrada na idade do átomo. Hegel estará lá, contudo, permitindo que encontremos a boa postura, a maneira justa de nos manter no ser e na relação, de modo que possamos encontrar, na medida do possível, o remédio para os males que prejudicam os nossos caminhos”.

A entrevista, exclusiva, foi concedida por e-mail à IHU On-Line e nela Labarrière discute também o papel de Kojève na leitura de Hegel na França, bem como a contribuição dos jesuítas na interpretação desse filósofo. Entre os jesuítas estudiosos de Hegel, citou Gaston Fessard, Marcel Régnier, Abel Jeannière e Francis Guibal. Labarrière é padre jesuíta e leciona Filosofia no Centre Sèvres, em Paris. Escreveu inúmeras obras, dentre as quais citamos Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’esprit de Hegel (La Fenomenologia del espiritu de Hegel. México: Fundo de Cultura Econômica, 1985) e Croire et comprendre. Approche philosophique de l'expérience chrétienne (Paris: Les Éditions du Cerf, 1999). Com Gwendoline Jarckzyk,  escreveu De Kojève a Hegel – 150 anos de pensamento hegeliano na França (Paris: Albin Michel, 1996).

IHU On-Line - Qual é o papel de Kojève na leitura de Hegel na França ?
Pierre-Jean Labarrière -
Que se acompanhe ou não a sua “leitura” tão engajada (e até mesmo partidária), deve-se reconhecer que este papel é muito influente. Alexandre Kojève  deu suas “Aulas sobre a Fenomenologia do espírito” de 1933 a 1939, na EHESS (Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais), em Paris, numa época em que o estudo do pensamento hegeliano não tinha ainda atravessado os limites do Reno. Freqüentaram todas as sessões, ou parte destas, entre outros, Jean-Paul Sartre, Jean Hyppolite, Maurice Merleau-Ponty, Gaston Fessard  e Eric Weil. As mesmas foram coletadas e publicadas por Raymond Queneau  em 1947 e reeditadas, de maneira sistemática, em 1968. Justo antes que fosse deflagrada a guerra de 1939, Jean Hyppolite havia publicado a primeira tradução francesa da Fenomenologia do espírito. Apesar de suas imperfeições, esta tradução permaneceu a única em vigor durante meio século, e serviu como base para todos aqueles que não dominavam suficientemente o alemão bem particular de Hegel. Jean Hyppolite lhe havia acrescentado, em 1946, um estudo intitulado Gênese e estrutura da Fenomenologia do espírito de Hegel.  Mas esta obra, que permanecia fiel às opções fundamentais de Kojève, só reforçou a influência deste último sobre vários atores do pensamento filosófico na França durante este período – pelo menos até o aparecimento dos primeiros escritos de Joseph Gauvin e de alguns de seus discípulos.

Um breve relato sobre a acolhida de Hegel na França foi apresentado por Gwendoline Jarczyk e por mim mesmo em nossa obra intitulada de maneira significativa: De Kojève à Hegel – 150 ans de pensée hégélienne en France (De Kojève a Hegel – 150 anos de pensamento hegeliano na França. Paris: Albin Michel, 1996). Por que a inversão destes dois autores em relação à sua posição histórica? Pretendíamos reagir diante de uma leitura redutora tão amplamente aceita na Universidade francesa, que fazia de Hegel o defensor de um intelectualismo marcado, em especial, por duas teses inspiradas justamente por Kojève: a pretensão final de um “saber absoluto” entendido como um “fim da história” que anularia qualquer referência à contingência, e uma profissão de ateísmo que, a Marx, só lhe restaria selá-la de modo definitivo (este último ponto resultando de uma má interpretação da relação religião / filosofia entendida como uma Aufhebung,  da qual só se considerava então o aspecto de abolição). Tratava-se, portanto, de voltar atrás para antes desta leitura, fosse ela redutora ou sobrecarregada, a fim de deixar falar o próprio Hegel novamente, com toda a carga de novidade que ele trouxe e que fora quase que totalmente esquecida. Neste livro, pudemos apresentar uma correspondência trocada entre Kojève e o seu ouvinte e discípulo Tran-Duc-Thao, na qual o mestre confessava sem rodeios: “A minha obra não tinha o caráter de um estudo histórico; não me importava saber o que o próprio Hegel quis dizer em seu livro; fiz um curso de antropologia fenomenológico servindo-me de textos hegelianos, mas transmitindo apenas o que, para mim, correspondia a uma verdade, e deixando de lado o que parecia, em Hegel, ser um erro. Assim, desistindo do monismo hegeliano, distanciei-me conscientemente deste grande filósofo. Por outro lado, o meu curso era essencialmente uma obra de propaganda destinada a surpreender os espíritos. E é por esta razão que reforcei conscientemente o papel da dialética do Mestre e do Escravo, e que, de modo geral, esquematizei o conteúdo da fenomenologia”.  Temos aqui, da própria pena de Kojève, a confissão de que suas “Aulas sobre a Fenomenologia do espírito” não atendem os critérios mais elementares de um autêntico comentário. Trata-se, portanto, na verdade, de escapar deste desvio consciente do pensamento de Hegel (desvio - e isto deve, no entanto, ser levar em consideração, conforme se fez mais acima - que desencadeou um entusiasmo benéfico por este pensamento), e procurar retornar a uma leitura do original isenta de qualquer emprego partidário. Uns quarenta anos atrás, isso foi feito na França, e bem poucos se atêm ainda à leitura kojeviana.

IHU On-Line - Alguns jesuítas franceses fazem parte dos intérpretes de Hegel. Havia algo de comum entre eles ?
Pierre-Jean Labarrière -
O primeiro jesuíta francês que empreendeu uma leitura pessoal de Hegel foi Gaston Fessard. Este tinha sido um ouvinte de Kojève durante os dois últimos anos do seu Seminário na EHESS. Temos, aliás, em nosso poder uma carta de Kojève endereçada a Fessard, reconhecendo o participante ativo e marcante que este último foi durante todo este período. Fessard, que desenvolveu um pensamento pessoal notável, principalmente no campo da reflexão política (cristianismo enfrentando determinadas formas de um marxismo que estava na onda nos anos 1950-1970), foi sem dúvida influenciado por Hegel, mas sem, no entanto, ter feito um comentário direto sobre o mesmo. Não obstante, quando ele elaborou os pares de categoria Homem/Mulher, Pagão/Judeu e Mestre/Escravo, fica claro o quanto ficou marcado pela leitura do seu mestre Kojève.

O grande inovador foi um homem modesto e de grande saber, mas que é conhecido apenas por ter ressuscitado e dirigido durante numerosos anos a revista Archives de Philosophie: o padre Marcel Régnier. Um de seus alunos, Joseph Gauvin, que ensinou por muito tempo na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas na França (em Vals, e depois em Chantilly), desempenhou um papel eminente nesta área. Só publicou uma dezena de artigos, mas todos tiveram uma influência profunda. Eu mesmo fui um de seus estudantes, e é inspirado por ele que elaborei a minha primeira obra intitulada Structures et mouvement dialectique dans la Phénoménologie de l’esprit de Hegel (La Fenomenologia del espiritu de Hegel) . É deste círculo também que se originam as pesquisas de Abel Jeannière e de Francis Guibal (este último, que deixou posteriormente a Companhia de Jesus, ensinou em seguida na Universidade de Strasburgo). Pode-se dizer que Joseph Gauvin (que realizou também um volumoso e bem precioso Wortindex zur Hegels Phänomenologie des geistes a partir de um tratamento informático extremamente inovador na época – Hegel-Studien, Beiheft 14. Bouvier Verlag – Herbert Grundmann, Bonn 1977), foi, para toda a Universidade francesa, e além dela também, um despertador cuja honestidade e rigor fizeram muitos seguidores. É nesta linha de pesquisa que se inscrevem, em especial, os trabalhos de Gwendoline Jarczyk e os meus próprios, bem como, muito tempo depois, aqueles de universitários tais como Jean-François Kervégan, Jean-Marie Lardic, Jean-Michel Buée ou David Wittmann.

IHU On-Line – Na parceria com a Gwendoline Jarczyk, é possível distinguir o que é de um e o que é de outro na leitura do texto de Hegel ?
Pierre-Jean Labarrière -
Se chegamos a trabalhar e realizar publicações juntos há praticamente quarenta anos, é porque reconhecemos um ao outro logo de primeira como defensores de uma mesma “leitura”. Isso posto, cada um de nós não pode deixar de ficar marcado pela sua primeira abordagem deste edifício impressionante. Quanto a mim, a minha primeira obra sobre Hegel, evocada mais acima, se dirigia às estruturas e ao movimento dialético na Fenomenologia do espírito. Quanto a Gwendoline Jarczyk, ela se distinguiu em primeiro lugar nos estudos hegelianos publicando, sob o título Sistema e liberdade na Lógica de Hegel, a tese de Estado que ela havia realizado sob a direção de Paul Ricoeur. Esta obra, que se tornou um “clássico”, foi seguida por seis outros livros muito importantes que não param de aprofundar o nosso conhecimento desta Ciência da lógica, ainda tão hermética para muitos.

Comunicamos um ao outro as nossas paixões mútuas, e isso nos permitiu realizar juntos novas versões da Fenomenologia do espírito e da Ciência da lógica. O ensino que efetuamos juntos no âmbito do Colégio Internacional de Filosofia, e atualmente no Centro-Sèvres, nos permitiu igualmente publicar, com assinatura comum, além da obra intitulada De Kojève a Hegel da qual se tratou acima, um conjunto de estudos reunidos sob o título Hegeliana, bem como leituras de diversas figuras da Fenomenologia do espírito ou de outros trechos das obras posteriores  . Atualmente, a nossa nova versão da Ciência da lógica, no prelo nas Edições Kimé, nos mobilizará ainda durante alguns anos. Um trabalho do qual se tira diariamente proveito do conhecimento íntimo de Gwendoline Jarczyk, sobre o espírito e o sentido preciso das palavras da Ciência da lógica.

IHU On-Line - Como a obra de Hegel, em especial a Fenomenologia do espírito, pode apontar para uma compreensão e para novas formas da existência na nossa sociedade contemporânea?
Pierre-Jean Labarrière -
A Fenomenologia do espírito, publicada em 1807, há dois séculos, portanto, é, ao mesmo tempo, uma retomada de toda a tradição de pensamento do Ocidente e uma introdução à “Modernidade” que começou a despontar com o evento da Revolução Francesa e, pouco depois, com o nascimento do maquinismo industrial e de suas repercussões sobre o pensamento e a vida dos homens. Ninguém pode ir em direção ao futuro e arriscar, a seu respeito, uma palavra que tenha sentido se não assimilar pessoalmente a herança que, desde o mundo grego e o mundo romano, passando pelas diversas religiões (singularmente o cristianismo), chegou a colocar o homem, em suas dimensões simultaneamente individuais e coletivas (singulares e políticas), como sendo, ao mesmo tempo, o “produto” e o “criador ” de um mundo que, através de seus sobressaltos, procura adquirir um rosto autenticamente humano. Convém que sejamos conscientes, na medida do possível, dos êxitos e das derrotas que marcaram nossas histórias. Para tanto, estou convencido de que a experiência analisada por Hegel (e, especialmente, a atenção à precisão do movimento lógico que move na escuridão este desenvolvimento da história) permanece para nós exemplar, se não no sentido estrito de suas palavras, pelo menos no dinamismo de espírito que ela promove, porque aquele desposa ao máximo a busca de uma positividade autêntica que procede desta negação redobrada que é a alma de toda dialética.

Nós não sabemos, geralmente, até que ponto os nossos julgamentos mais comuns (quem sabe também e principalmente no âmbito de uma política que procura abrir o seu caminho ao nível mundial) são prejudicialmente marcados por oposições simplificadoras entre o sujeito e o seu mundo, entre o individual e o universal sob todas as suas incidências concretas, que se trate de ecologia ou de relações intra ou internacionais. A Fenomenologia do espírito, neste sentido, mais atual e mais promissora do que nunca em termos de futuro, permite tentar obter um esclarecimento das relações verdadeiras que unem o sujeito e o objeto (só para evocar esta problemática mais geral e profundamente essencial). Especificamente, o que se anuncia para os indivíduos e para os povos, sob o termo “reconhecimento”, não foi realmente compreendido — e ainda menos sistematizado — quando se trata das relações entre os homens e os povos. Até nossos ensaios preliminares no que tange à possibilidade de um “governo mundial” não encontram em Hegel — como outrora observara um Eric Weil — nada além de um esboço: os elementos de uma alta exigência realmente fundadora. Dizer e mostrar concretamente, como o faz Hegel nesta obra, que a linguagem e o trabalho, estas duas formas de exteriorização do espírito são, a este título, inalienáveis, é fazer a escolha daquilo que alguns consideram uma utopia e que é, contudo, na origem e no limite de exigência da dignidade universal que habita os melhores dentre nós.

Não significa que a obra de Hegel possa nos liberar da tarefa que nos cabe de inventar novas formas de convivência e cooperação. O mundo continuou a girar de dois séculos para cá, e não se trata de procurar em Hegel soluções todas prontas para os problemas de outra dimensão, e talvez de outra natureza, que nos coloca, por exemplo, a entrada na era do átomo. Hegel estará lá, contudo, permitindo que encontremos a boa postura, a maneira justa de nos manter no ser e na relação, de modo que possamos encontrar, na medida do possível, o remédio para os males que prejudicam os nossos caminhos.

IHU On-Line - Qual é o significado do Saber e do “Espírito Absoluto” em Hegel, e até que ponto este significado é atual para o pensamento contemporâneo?
Pierre-Jean Labarrière -
É significativo que as três grandes obras sistemáticas de Hegel, a Fenomenologia do espírito, a Ciência da lógica e a Enciclopédia das ciências filosóficas  terminem com três lexias complexas que dizem a cada vez que o que se encontra em jogo na obra em questão é finalmente colocado (e entendido) em sua dimensão “absoluta”: Saber absoluto, Idéia absoluta, Espírito absoluto. Deve-se entender esta qualificação dentro do seu alcance lógico, tal como é explicitada de maneira programática no capítulo da Doutrina da essência, consagrado justamente ao “Absoluto”. Eis o que se pode ler nesta passagem: « A identidade simples maciça do absoluto é indeterminada, ou nela, todo caráter de determinação da essência e da existência, ou do ser em geral bem como o da reflexão, ficou de certo modo resolvido”.  Ora, então, qualificar como “absoluta” uma realidade, seria dizer que ela junta em si tudo o que for necessário para a sua inteligibilidade; ater-se a esta asserção, porém, é permanecer no formalismo. “Deve-se apresentar o que é o absoluto”, e este “apresentar” não pode satisfazer-se de um determinar externo e nem de uma reflexão externa, “pelo que seriam [as] determinações deste mesmo [absoluto], mas ele é a exposição, e na verdade, a exposição própria do absoluto, e somente um ato-de-mostrar o que ele é”.

Assim, o “Saber absoluto”, nos termos da Fenomenologia, longe de selar um saber terminal num absoluto que o colocaria fora das influências de qualquer contingência, firma uma identidade advinda entre verdade e certeza que faz que a postura lógica alcançada desta maneira pode e deve expressar-se em todas as determinações necessárias para afirmar a unidade concreta do ser e do pensamento. Uma obra que se desdobra na Lógica, a qual se encerra, por sua vez, numa “Idéia absoluta” cujo conteúdo concreto poderá ser exposto nas determinações da Filosofia da natureza e da Filosofia do espírito. O que dá a entender também que o “Espírito Absoluto”, nos termos da Enciclopédia, caracteriza – bem além de toda designação de um espírito postulado em uma oposição justapositiva indeterminada – um processo de sentido cuja eficiência e concretude podem e devem ser comprovados, testando-se nos aspectos de caráter imediato e na contingência.

Eu ousaria dizer que tal compreensão do ato do espírito em sua urgência lógica é propriamente essencial para quem se dedica a compreender, numa dimensão de responsabilidade – que é ao mesmo tempo de epifania e criação – o que está ocorrendo em nosso mundo. E isso mesmo porque o conceito inteligível deste processo, nos tempos pelos quais passamos, se propõe na ambigüidade de eventos e representações que exigem uma postura – nunca assegurada – de decodificação e de instauração criadora. Só é realmente sensato em nossas aspirações e em nossos combates aquilo que resulta de uma tal lógica “absoluta”, que, como tal, não coloca de lado nenhum dos elementos da realidade histórica – política, cultural, religiosa – e trata dos mesmos segundo a economia criadora da contradição, obrigando-se a uma sobressumpção  (sursomption) valorizadora das nossas representações relidas de acordo com a exigência do conceito.

IHU On-Line - O que a teoria hegeliana da Constituição pode ensinar às democracias diante do cenário da mundialização e do recrudescimento da intolerância sob suas facetas mais variadas ?
Pierre-Jean Labarrière -
Poder-se-ia dizer, utilizando um termo mais kantiano que hegeliano, que a Constituição, de acordo com o pensamento político de Hegel, deveria funcionar como uma “idéia reguladora” no horizonte das consciências engajadas na tarefa política. Seria, sem dúvida, um erro considerá-la como um “modelo” cujas determinações todas teriam que ser respeitadas de maneira igual. No fim da Revolução Francesa, Hegel tinha captado perfeitamente os valores do evento (a afirmação básica de que a liberdade é um requisito de natureza universal), mas ele permaneceu partidário de uma monarquia hereditária temperada que não tem mais razão de ser. Muitos pontos do seu pensamento político permanecem, contudo, normativos para nós: a importância da opinião pública, o lugar determinante dos corpos intermediários de acordo com o modo segundo o qual eles estruturam o corpo social e os interesses econômicos, a importância do surgimento do maquinismo industrial, o lugar do internacional, em suma, a cultura da liberdade de todos (pessoal, social, religiosa) associada a um sentido agudo do que chamaríamos de «bem geral». Ele começa até a expressar, embora de uma forma embrionária e excessivamente marcada ainda por particularismos, uma atenção para com os interesses das classes laboriosas (associações baseadas nas atividades profissionais, nas quais podemos perceber um reconhecimento dos futuros “sindicalismos”), bem como uma tomada de consciência da importância da qual se revestem as opiniões públicas e o debate entre todos os cidadãos .

IHU On-Line - Quais são as principais diferenças entre o pensamento de Hegel em seus primeiros escritos com relação aos últimos? Houve um amadurecimento de suas idéias?
Pierre-Jean Labarrière -
Houve um tempo em que se fez um esforço no sentido de erigir um «Hegel de juventude», revolucionário e inovador, contra o «Hegel da maturidade», que se taxava de « conservador ». Este julgamento em bloco não resiste ao critério da análise. Há diferenças, com certeza, e estas se devem ao contexto da época: os pensamentos que dominavam no fim do século XVIII, o esforço que era preciso envidar a fim de libertar-se das influências dominantes (Kant, Fichte, mas também o amigo Schelling), a proximidade da Revolução Francesa, os transtornos causados pela epopéia napoleônica, as mudanças políticas e econômicas; tudo isso, sem dúvida, marcou, em seus primeiros escritos, o pensamento de um homem tão atento aos fenômenos de civilização. Há também uma questão de maturidade e, a partir da Fenomenologia do espírito, o aprimoramento de categorias originais e a mais sutil compreensão daquilo que traz e exige o movimento essencial da “sobressumpção” (sursomption), (Aufhebung). Não obstante, procurar no Hegel de antes de 1807 algum elemento essencial que teria sido esquecido em seguida me parece, após minucioso exame, um empreendimento duvidoso. Faço parte então, é claro, daqueles que acreditam na profunda continuidade, e até unidade do seu pensamento, desde suas intuições de juventude até os escritos do fim de sua vida. É apostando nesta unidade, e indo até a atitude profunda da qual ela dá testemunho, que reconhecemos neste pensamento o valor inovador e talvez insubstituível do qual ele se reveste ainda para o nosso mundo.

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