Edição 217 | 30 Abril 2007

Rememorando a Fenomenologia do espírito

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IHU Online

A seguir, publicamos o artigo de autoria do Prof. Dr. José Henrique Santos, enviado especialmente à IHU On-Line. Nele, o filósofo celebra a obra Fenomenologia do espírito, escrita por Georg Wilhelm Friedrich Hegel há duzentos anos.

Segundo José Henrique, a Fenomenologia “influenciou toda a filosofia até o presente, como se o espírito que ele descreve continuasse a nos visitar”. E continua: “A riqueza da obra reside, justamente, na confluência desses saberes que se sustentam uns aos outros, e, antes de tudo, na relação necessária entre o saber das coisas e o saber de si. Não posso saber nada a respeito do mundo sem ao mesmo tempo me conhecer”. Os subtítulos são da IHU On-Line.

José Henrique é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Cursou pós-doutorado na Universidade de Tübingen, Alemanha. Ex-professor titular do departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-reitor da UFMG, escreveu inúmeros capítulos de livros e artigos para periódicos, bem como as obras Do empirismo à fenomenologia: a crítica antipsicologista de Husserl e a idéia da lógica pura (Livraria Cruz Braga: Portugal, 1973) e Trabalho e riqueza na Fenomenologia do espírito de Hegel (São Paulo: Loyola, 1993). Acaba de publicar O trabalho do negativo: ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito (São Paulo: Loyola, 2007). É membro da Academia Mineira de Letras.

“Rememorar” é uma palavra-chave desse livro que está completando duzentos anos e que desde então influenciou toda a filosofia até o presente, como se o espírito que ele descreve continuasse a nos visitar. Na língua alemã, o verbo erinnern significa duas coisas ao mesmo tempo, o “adentrar” em si do espírito e o “relembrar” que ele realiza, estando consigo dentro de si. A deusa inspiradora da memória era chamada pelos gregos de Mnemosine . Ela parece conduzir com mão segura essa viagem de descobrimento que o autor, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), chamou de Fenomenologia do espírito. A palavra “fenomenologia” quer dizer “ciência do fenômeno”, ou ciência de tudo o que se manifesta na consciência, e serve para indicar o saber que o espírito adquire de si mesmo ao longo de uma série de experiências nas quais a consciência estuda sua própria formação. Ela se educa continuamente, e um dos méritos do livro consiste em fazer com que essas experiências exemplares apareçam para nós, leitores, de maneira lógica e ordenada, para que possamos ver se nós também nos reconhecemos nelas. O capítulo final busca fixar o ponto de congruência entre o espírito individual do leitor e o que se chama “saber absoluto”, ou seja, a totalidade do que se pode apurar na sucessão das formas que o espírito assume. O adjetivo “absoluto” não significa que possamos saber tudo; quer dizer apenas, mais modestamente, que tudo o que sabemos faz parte de um sistema organizado, no qual a totalidade indica ao “saber que aparece” aqui ou ali, ao sabor dos acontecimentos históricos, o lugar que lhe pertence na configuração do conhecimento humano. Este conhecimento diz respeito à natureza e ao próprio espírito que, juntos, mas desdobrados nas diversas ciências, contêm todo o universo do que se pode conhecer. A ação humana, por sua vez, encontra no saber absoluto o fundamento que a justifica.


Confluência de saberes
A riqueza da obra reside, justamente, na confluência desses saberes que se sustentam uns aos outros, e, antes de tudo, na relação necessária entre o saber das coisas e o saber de si. Não posso saber nada a respeito do mundo sem ao mesmo tempo me conhecer. Enquanto conheço o mundo, vou tecendo, pouco a pouco, um conhecimento de mim e do que sou; o conhecimento refletido em minha consciência é sempre um momento da formação do espírito que nunca aparece acabado, sem custar a paciência de descobrir e adquirir. Nada existe pronto, nem na natureza nem no espírito; tudo é processo, movimento que surge para logo desaparecer, numa gênese perpétua que nunca termina. Podemos comparar o espírito humano a uma composição musical (às vezes bem dissonante), onde o som que vibra neste momento logo se esvai, para o próximo som aparecer em seu lugar, e assim sucessivamente. O intérprete executa a peça, convoca-a à existência de instantes sucessivos, mas o ato de reproduzir a frase musical tem também o dom de “fazê-la desaparecer”, de modo que é preciso repetir a execução muitas vezes, para evitar o esquecimento completo. Do mesmo modo, não convém ao espírito permanecer inativo e deixar de querer realizar sua vontade sempre renovada, sob pena de perder-se no esquecimento de si. O espírito não conhece limite, sempre quer tudo, mas é preciso aprender a escolher, dentre as contingências que se oferecem, aquelas que conduzam a algo essencial e tragam a promessa de uma necessidade da qual ele não pode abrir mão. A necessidade principal do espírito é conhecer-se a si mesmo e tornar-se transparente para si. Ao iniciar esse processo de conhecimento, ele se dá conta, porém, do desejo de perdurar que o saber suscita, e, deste modo, acaba por descobrir a pulsão infinita que o impele para a eternidade. A pulsão age como um negativo, sempre a reivindicar o que lhe falta. Como o Mefistófeles  (o diabo) do Fausto de Goethe, o “poder do negativo” sempre diz não ao repouso dos muito tranqüilos, e funciona como um aguilhão que retira o espírito humano da indolência, prometendo-lhe o infinito (ou a vida de uma eterna juventude, como no Fausto). De qualquer forma, o mundo é muito pouco para o espírito. Ele quer sempre mais, quer encontrar o espírito infinito de Deus e com ele reconciliar-se, como se o homem expulso do paraíso pudesse recuperar um dia o que perdeu por causa de uma tentação momentânea. A tentação, recordemos, era trocar a inocência primitiva pelo conhecimento do bem e do mal, proporcionado pela árvore da ciência. Mito à parte, a árvore da ciência frutificou em saberes os mais diversos, mas o conhecimento do que o homem é, em seu mistério espiritual, sempre permaneceu num estádio infantil, incapaz de se comparar com o conhecimento científico da natureza.


Carência de si mesmo
Sem deixar de reconhecer a importância das ciências naturais, Hegel quer remediar a carência que o homem tem de si mesmo. Para isso, nada melhor do que seguir a formação do espírito, desde as formas mais elementares da percepção sensível até a forma mais elaborada que o conceito proporciona. Essa gênese espiritual, em seu completo desenvolvimento, é o que ele chama de “fenomenologia do espírito”, isto é, a descrição completa das figuras de consciência nas quais o espírito se manifesta como aquele que, pouco a pouco, aprende a se conhecer. A gênese do espírito é, ao mesmo tempo, lógica e histórica. Isto quer dizer que a necessidade lógica está presente em toda a parte, funcionando dentre alternativas precisas e bem definidas para produzir o saber necessário, mas esse saber, por mais lógico que seja, nunca deixa de depender de circunstâncias contingentes, que o acaso histórico faz surgir aqui e ali. Mas, ao mesmo tempo, a história jamais deixa de ter um sentido, porque aquilo que parecia ser apenas fruto do acaso acaba por revestir a forma lógica que se chama “conceito”. O acaso sempre se transforma em necessidade. Aquilo que aconteceu, acontecido ficou. Não pode ser desfeito e recai sobre nós com a força de um fato consumado. É o que Hegel chama de “história pensada”. Tudo o que parecia separado conflui na direção dessa história, como os afluentes de um rio em direção à sua foz: o contingente (ou acaso), a liberdade (arbítrio organizado) e o necessário (curso do mundo). Esses elementos se solicitam uns aos outros, e, apesar de opostos, tendem a formar uma “unidade de contrários”. Sua relação é chamada “dialética”, por causa de sua interdependência, já que nenhum deles pode existir sem estar em diálogo com os demais.


Fenomenologia, o pensamento de ruptura com o mundo antigo
O autor terminou de escrever o livro pouco depois da batalha de Iena  (14 de outubro de 1806), que pôs fim à idade média alemã, espécie de relíquia tardia do Sacro Império encravada no coração da Europa moderna. Redigiu o prefácio no fim, em fevereiro de 1807, à medida que o editor ia compondo o volume. Tendo dado o livro à publicidade só em começos de abril, Hegel fugiu da ocupação francesa em Iena, indo para Bamberg, mais ao sul. As vicissitudes da ocupação explicam a demora em ele mesmo anunciar a publicação, o que só ocorreu em outubro. A vitória das tropas napoleônicas assinalou um momento importante na história da Europa e, particularmente, da Alemanha. Essa batalha leva à sua extrema conclusão o processo revolucionário de 1789 (Revolução Francesa), e pode ser considerada o ponto de ruptura com a velha ordem, e o surgimento de um mundo novo, que mesmo a Restauração de 1814, após a derrota de Napoleão, não pôde impedir. A Europa entrou, definitivamente, na modernidade. (O que não evitou outras guerras: as duas guerras mundiais do século XX, por exemplo, foram motivadas pelo “ajuste histórico” da Alemanha em atraso, ansiosa por ingressar no cenário mundial.) Ora, a Fenomenologia de Hegel não podia ser mais oportuna do ponto de vista histórico: nela a história do Ocidente foi pensada até o ponto máximo da ruptura com o mundo antigo e o nascimento da modernidade na qual nos encontramos. Isto explica (mas só em parte), o interesse que o livro apresenta até hoje; o resto da explicação (mas que constitui o ponto principal) reside na originalidade e no vigor do pensamento, que asseguram ao texto o papel de “indexador matricial” das alternativas espirituais que se oferecem ao mundo herdado por nós.

No anúncio escrito para apresentar a obra, Hegel destaca os seguintes tópicos: ela expõe o saber que está em movimento de se constituir, mas deixa de lado as explicações psicológicas da consciência, assim como as considerações mais gerais e abstratas. Empenha-se, em vez disso, em examinar as diversas formas que o espírito assume em seu caminho rumo à totalidade que ele aspira a ser. Segue as estações do caminho e detém-se, pacientemente, em cada uma delas. Tudo é feito sem perder de vista o fundamento real dos experimentos que o saber reclama. Deste modo, a “ciência da experiência da consciência” vai sendo pouco a pouco explicitada, até se tornar transparente para a consciência que a produz. Hegel se vale de várias “duplicidades” para realizar a tarefa, sendo a mais notável delas a repartição de sentido entre duas consciências distintas: a consciência original, que se esforça em explorar as alternativas lógicas à sua disposição, e a do leitor, que acompanha o esforço que ela despende. Surgem assim duas escrituras, estando a primeira empenhada em descrever os experimentos que a consciência primitiva realiza, de modo a facilitar nossa recordação, ao passo que a segunda é escrita para nós, leitores, que nos julgamos muito sabidos só porque ocupamos um lugar privilegiado, no fim do processo histórico. Nesse teatro fenomenológico, nós, como leitores, somos a platéia que pensa assistir à representação dos atores (as figuras da consciência primitiva), sem nos darmos conta de que assistíamos a nós mesmos a atuar no palco de um passado que se torna mais e mais presente, à medida que acompanhamos o percurso da consciência. Afinal, trata-se sempre de um mesmo espírito, no qual cada um de nós se descobre participante. (Hegel resume essa experiência fundadora do espírito humano na expressão “um eu que é nós”.) As estações principais dessa viagem espiritual são: consciência, autoconsciência, razão observante e razão atuante; depois, o espírito mesmo como espírito ético, o espírito educado (ou formado) e a consciência moral; e, finalmente, o espírito religioso em suas diversas manifestações. O que parecia um caos no começo se organiza no fim, já sob a forma da ciência da consciência, deixando entrever que o espírito humano e o divino se encontram para celebrarem a perfeição final em que ambos se sabem unidos. Isso acontece no dogma da Encarnação dialeticamente interpretado: pois, em Cristo, as duas naturezas, a humana e a divina, a finita e a infinita, são postas na unidade da mesma pessoa, a qual, por isso, deve ser chamada de “mediação absoluta”. O último capítulo do livro, intitulado “O saber absoluto”, procura fazer a transcrição conceptual dessa última Verdade, de modo a conferir à forma da representação religiosa a definição rigorosa do conceito. A Religião dá o passo faltante na direção da Teologia especulativa.


O trabalho do negativo
O livro que ofereço à publicação pela editora Loyola recebeu o nome de O trabalho do negativo: ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito (São Paulo: Loyola, 2007), e está sendo publicado para celebrar os duzentos anos dessa obra extraordinária. Homenagem modesta, mas que procura “rememorar” e manter vivo o espírito que presidiu a sua elaboração. O título O trabalho do negativo refere-se ao trabalho do espírito que sempre diz não às satisfações limitadas e às reconciliações prematuras. O espírito se caracteriza pelo poder de negar e dizer não, porque o sim a que ele espera chegar é o infinito, o Absoluto que o aguarda no fim dos tempos. O grande Sim que reconcilia supõe um calvário doloroso, que deve ser percorrido por inteiro, para que o espírito possa entrar na posse de sua verdade. A lógica do espírito é sempre dialética, pois supõe um diálogo ininterrupto da alma consigo mesma e com todas as outras, para fazer reverter no fim o que parecia impossível no começo: “negar as negações” que a assediavam, isto é, recusar toda satisfação limitada que não atenda à pulsão infinita do espírito no caminho de si mesmo.

O trabalho a que o título alude se cumpre em três círculos dialéticos distintos: no primeiro deles, o Eu aparece como oposto ao mundo dos objetos inertes. Fecha esse círculo a dialética do “mundo invertido”, que utiliza a noção de “força” para expor o “jogo de forças” que governa o mundo natural. Essa teoria do mundo invertido é bem interessante. Hegel a utiliza para subverter a noção de um mundo estático e definitivo e mostrar que tudo, na natureza, sofre um processo contínuo de mudança, não apenas quantitativa, mas também qualitativa. O que parecia ser uma coisa, no início do processo, vira uma outra totalmente diferente, que é, no fundo, a completa inversão da primeira. No mundo em movimento, tudo reverte em seu contrário: na velhice, a juventude se torna o oposto do que era, sem deixar de ser um processo pertencente à mesma pessoa; no universo físico, o fenômeno se manifesta como reversão da causa no efeito; do mesmo modo, no mundo moral, a vingança é uma satisfação efêmera, que perverte a justiça e a transforma em injustiça. O ensaio “Força e entendimento. O mundo invertido” ocupa lugar central no livro, porque desenvolve o conceito de contradição, que é o fundamento da dialética hegeliana e de sua teoria do ser (ontologia), em confronto com a doutrina da coisa-em-si que Kant  havia desenvolvido na Crítica da razão pura. É também nesse capítulo que se cumpre a passagem da natureza para o espírito, o que ocorre quando a consciência começa a perceber que é preciso negar o evento natural da morte para entrar na “verdade da certeza de si mesma”, reconhecendo-se como consciência-de-si diante de outra consciência-de-si.

O segundo círculo da dialética opõe o Eu a outro Eu e procura mostrar o caminho que o espírito percorre para deixar de ser simplesmente um Eu e tornar-se um Nós. A dialética do Eu-Tu estuda o espírito comum que une (mas também separa) o senhor e o escravo (dialética da servidão), o verdadeiro e o falso (ensaio sobre o ceticismo), o homem, a mulher e a família (ensaio intitulado “O espírito saído da tragédia”: aqui se tenta compreender a origem da cisão que, no Ocidente, opõe o mundo masculino ao feminino). Fechando esse círculo, apresento a dialética histórica que explica a passagem da antiguidade e do feudalismo à idade moderna. Merece relevo, neste ensaio, a astúcia do monarca que inaugura o absolutismo no Estado moderno ao dizer “O Estado sou eu” (Luís XIV ), bem como a dialética da liberdade absoluta e do Terror, que funciona como conclusão da Revolução Francesa. Mas também se estudam a controvérsia entre a Ilustração e a fé religiosa, bem como a Reforma: esta última vem a propósito, porque os franceses fizeram uma Revolução sem terem feito uma Reforma; daí ao período jacobino do Terror foi apenas um passo, julga Hegel, mas não um passo em falso, porque a História é sempre verdadeira, por mais terríveis que os fatos possam ser. A análise de Hegel é notável sob muitos aspectos e serve de modelo, até hoje, para toda explicação dialética do mundo político e social.

Finalmente, no ensaio “A religião”, abordo o desenvolvimento da consciência religiosa, passando pelas religiões naturais, a religião da arte (os gregos) e o cristianismo. Esse capítulo religioso introduz, por fim, o último círculo, quando o Eu já se desenvolveu o bastante para confrontar-se com o espírito infinito de Deus, o nec plus ultra. O que na religião ainda aparecia sob a forma imperfeita da representação surge agora sob a forma do conceito do saber completo do espírito sobre si mesmo, chamado “O saber absoluto”. Cumprida toda a rememoração da consciência, o Espírito, finalmente, entra de novo em si, após longa viagem, e pode, então, reconhecer sua infinidade.

 

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