Edição 216 | 23 Abril 2007

Desmundo, de Alain Fresnot

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IHU Online

História do Brasil e Cinema II: Índios e Negros - Leitura e imagens no cinema brasileiro

A Profª. Drª. Márcia Eckert Miranda conduz neste sábado, 28-04-2007, os comentários após a exibição do filme Desmundo, de Alain Fresnot. A atividade faz parte da programação do evento História do Brasil e Cinema II: Índios e Negros – leitura e imagens no cinema brasileiro. Confira a entrevista concedida pela pesquisadora, por e-mail, à IHU On-Line.

Miranda possui graduação em História e em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestrado em Economia pela mesma instituição e doutorado em Economia Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professora da Unisinos, historiógrafa do Governo do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul.

IHU On-Line - Como o filme Desmundo enfoca a questão dos índios? Há uma estereotiparão ou a história tenta aproximar-se da realidade indígena?
Márcia Miranda -
O filme retrata o Brasil no primeiro século de colonização, quando a mão-de-obra utilizada nos engenhos era a indígena. Sem ocupar um papel de destaque na trama, os nativos perpassam o cotidiano dos personagens centrais na casa, na vila, nas relações cotidianas, evidenciando um aspecto do filme: o estranhamento com relação à realidade colonial. Esse estranhamento manifesto pela personagem principal decorre das especificidades da sociedade colonial, as quais estavam associadas à compulsão ao trabalho, à produção para o mercado europeu e ao latifúndio, características básicas da colonização da Época Moderna.
Como demonstrou o Prof. Fernando Novais, a integração do índio (seja pela compulsão ao trabalho, seja pela ação missionária), no primeiro século da colonização, já conferia aspectos muito específicos à sociedade que se formava na colônia lusa.  A miscigenação, a adoção de hábitos de higiene, de alimentação, de técnicas de cultivo, dos instrumentos de trabalho, etc. foram canais de comunicação entre a cultura européia e as culturas nativas na colônia, processo que progressivamente diferenciava a sociedade da colônia em relação ao Reino. Daí, o estranhamento manifesto pela personagem quanto à colônia, sua população e ao seu modo de vida. Espaço que deveria recriar o Reino, mas que havia se transformado num “desmundo”.

Sem aprofundar a reflexão, o filme aborda a questão da compulsão dos indígenas ao trabalho e os interesses diversos que envolviam essa relação, interesses dos colonos, das autoridades régias e da Companhia de Jesus. Em dois momentos esses embates ficam explícitos. Logo no início da trama, os colonos e autoridades questionam os tupinambás sobre o número de prisioneiros nativos que poderiam ser “cedidos”, numa tentativa de impor uma lógica mercantil à guerra indígena. Estes, resistem, buscando manter suas tradições com relação ao tratamento de prisioneiros (antropofagia). O segundo embate envolve colonos e a Companhia de Jesus pelo controle dos indígenas é abordado no conflito entre um jesuíta e Francisco de Albuquerque, cena que evidencia a ordem que era engendrada no espaço colonial, onde os interesses mercantis sobrepunham-se a questões religiosas. 

Apesar de não ocupar um papel destacado na trama, os indígenas o filme buscou retratar os indígenas de modo verossímil, fugindo a estereótipos. Prova disso, é o uso de línguas nativas (segundo um crítico, houve o uso de pelo menos três línguas distintas).  Outros aspectos, que também contribuem para retratar com maior fidedignidade a época e os indígenas, é o fato do texto explicitar a existência de diferentes nações indígenas e da ocorrência de divisões e conflitos entre essas com relação às relações aos europeus.

IHU On-Line - E quanto à mulher, como ela é retratada nessa produção?
Márcia Miranda -
O filme retrata de forma muito clara o papel subordinado da mulher na sociedade do Século XVI. Oribela, a personagem principal, e que no livro é a narradora de sua história, é uma órfã da Rainha enviada ao Brasil para casar com um dos “fidalgos” da terra. A falta de mulheres brancas nos primeiros anos da colonização era um obstáculo para que os colonos mais aquinhoados garantissem uma descendência legítima e branca. A miscigenação, que era resultado da subjugação das mulheres indígenas e africanas aos desejos dos senhores, povoava a colônia de um grande número de filhos ilegítimos; mas a preservação do nome de família e dos seus negócios dependia de filhos legítimos, preferencialmente, brancos. Daí a necessidade do envio de mulheres brancas, dispostas a desposar homens, os quais pelos critérios vigentes no Reino, não eram tão atraentes, pois degredados, fugitivos, filhos segundos de famílias nobres, aventureiros, cristãos-novos, etc.

A posição inferior de Oribela, uma órfã, para quem a oportunidade de desposar um proprietário de terras e escravos deveria encarada como oportunidade de ascensão social, apenas acentua a “inconveniência” de sua rebeldia. Ao recusar o primeiro pretendente que lhe designam e ao negar-se a se submeter ao marido, aspirando o retorno ao Reino, Oribela mostra-se inconformado com seu destino e com o papel reservado às mulheres: “viver conforme o querer dos homens”, como afirma a esposa do governador.
  
IHU On-Line - Em que aspectos a obra pode nos fazer refletir sobre a condição das mulheres e dos índios hoje?
Márcia Miranda -
O filme retrata o mundo visto da ótica de uma mulher que está subordinada a um mundo masculino e cruel, onde a subordinação e violência perpassam todas as relações: entre maridos e mulheres, entre senhores e escravos, entre católicos e cristãos-novos. Especificamente com relação à condição da mulher e dos indígenas, o filme expõe a naturalidade como as diversas formas de opressão eram vistas pela sociedade da época, fato que contribuía para perpetuá-la. Uma sociedade fortemente hierarquizada, na qual oprimidos também, em relação a outros também opressores. Neste aspecto, o filme enseja uma reflexão sobre os diversos papéis que exercemos, sobre as formas de opressão a que somos submetidos e submetemos outros; pois na nossa sociedade, apesar da mobilidade social e das divisões mais fluidas, também há hierarquias.

IHU On-Line - Recuperando o título do evento que propomos, História do Brasil e Cinema II: Índios e Negros – Leitura e imagens no cinema brasileiro, em termos gerais, como o cinema brasileiro representa a condição dos índios e negros? Quais produções destacaria nesse sentido?
Márcia Miranda -
Produções nacionais mais recentes, como Desmundo, buscam uma representação mais verossímil e fidedigna da inserção do indígena e do negro na sociedade colonial, retratando não apenas a brutalidade, mas também os choques culturais e as contradições inerentes a essas relações. Acho que um dos melhores exemplos é o filme Brava Gente Brasileira.

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