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IHU Online
César possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-PR) com especialização em Economia e Trabalho e mestrado na área da sociologia do trabalho pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atualmente, é pesquisador do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (CEPAT), com sede em Curitiba. Doutorando em Ciências Sociais na UFPR, focaliza suas pesquisas nos temas do trabalho: reestruturação produtiva, inovações organizacionais e subjetividade operária.
César já abordou o tema no Cadernos IHU Idéias número 60, intitulado "A emergência da nova subjetividade operária: a sociabilidade invertida", que está disponível no site do IHU (www.unisinos.br/ihu). Ele também apresentará o minicurso “A “nova” subjetividade operária nas relações de trabalho pós-fordistas” durante o Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos? que acontecerá na Unisinos no próximo mês de maio.
O IHU Idéias é um evento gratuito que acontece todas as quintas-feiras na sala 1G119 do IHU, das 17h30min às 19h. A entrevista que segue foi concedida por e-mail:
IHU On-Line - Como se dá a passagem da sociedade industrial à sociedade informacional? O que caracteriza a sociedade informacional?
César Sanson - Ao longo da história da humanidade, alguns acontecimentos provocaram a mudança de rumo da sociedade. Um desses acontecimentos, de grande envergadura, foi a Revolução Industrial que, ao final do século XVIII, inaugurou um novo modo produtivo, reorganizou socialmente o trabalho e conferiu um novo dinamismo à sociedade deixando para trás a sociedade agrária. Na base da Revolução Industrial está a introdução de novas tecnologias. Agora se assiste a uma revolução produtiva da mesma envergadura, produzida pela Revolução Industrial - trata-se da Revolução Tecnológica ou Informacional que traz consigo a novidade da introdução de novas máquinas-ferramentas, com mais recursos, incorporando tecnologia informacional.
Portanto, quando falamos em “passagem” da sociedade industrial para a sociedade informacional estamos falando, sobretudo, de paradigmas de produção. Mas é importante destacar que outros fatores se somam na definição dessas sociedades. No caso da ascensão da sociedade industrial, ela se assenta na superação da cristandade, na emergência de determinado tipo de modernidade e no triunfo do liberalismo. Logo, mais do que um modo específico de produzir, essa sociedade diz respeito a um modo de viver, de pensar e relacionar-se com os outros – uma cosmovisão de mundo. A “passagem” de uma sociedade para outra, no caso, se explica pelo fato de que os fundamentos básicos que conformaram a sociedade industrial - a instituição do trabalho assalariado, o surgimento do movimento operário e a consolidação de categorias explicativas da sociedade como Estado, sindicato, classe social, família e os valores subjacentes a elas, entre outros fatores - encontram-se em crise.
Nessa perspectiva, o que caracteriza a sociedade informacional, por um lado, é o seu caráter inovador no tratamento que era dado à informação pela revolução industrial. As Novas Tecnologias da Informação (NTI) agem sobre a informação e não são apenas informações de que dispomos para agir sobre a tecnologia como acontecia com a Revolução Industrial – elas possibilitam o surgimento do trabalho imaterial. Associados à introdução de novas tecnologias, temos novos métodos de gestão do trabalho, mais sofisticados, inspirados no toyotismo que se sobrepõem ao fordismo – característico da sociedade industrial e reorganizam a ação do trabalhador no processo produtivo e entre si.
Por outro lado, a sociedade informacional se insere no que se denomina hoje de pós-modernidade que joga por terra e coloca em xeque as instituições forjadas no período anterior. Autonomia, individualidade, fragmentação, imediatez, fluidez, complexidade, são manifestações de uma nova sociedade em transformação. Vale dizer que essa “passagem” de uma sociedade para outra não se completou. A sociedade industrial convive com a sociedade informacional. Essa última ainda não é hegemônica, mas é portadora de uma nova dinâmica que se instaura e aos poucos vai se impondo.
IHU On-Line - O que permeia a "metamorfose" que você atribui à subjetividade operária? O que marca essa mudança?
César Sanson - O que permeia a metamorfose da subjetividade é o fato de que a sociedade industrial também está em metamorfose. No caso específico do trabalho, a Revolução Industrial, imbricada à modernidade e a racionalidade, possibilitou a ascensão e a instauração de uma determinada subjetividade operária. Algumas características subjacentes a essa “subjetividade”, forjada durante aproximadamente dois séculos, poderiam ser sintetizadas a partir dos seguintes aspectos, destacados por Sennett : Primeiro, o trabalho é o elemento central que permeia o conjunto das instituições. As pessoas tentavam provar o seu valor pelo seu trabalho. Segundo, o não-trabalho configura uma caracterização identitária de constrangimento para quem não o tem. Terceiro, se estabelece uma relação de classe social. Os trabalhadores têm satisfação de sua posição social, se reconhecem como operários e estabelecem laços de solidariedade, o que permite o surgimento dos sindicatos. Quarto, é comum a identificação perene com um determinado tipo de ofício, de profissão. A profissão marca o trabalhador, que, uma vez exercendo determinada atividade, para sempre a exerce. Quinto, o trabalho não é intermitente: ele se faz de maneira continuada, segura, e geralmente em um mesmo local, na mesma fábrica. Sexto, em função do tempo – anos – em que convivem juntos em uma mesma planta industrial, se constroem laços de fidelidade, companheirismo, amizade e lealdade entre os trabalhadores. A competitividade entre os operários, a disputa por espaço e ascensão profissional são reduzidas. Sétimo, a recompensa para uma ‘vida de trabalho’ é a aposentadoria.
Ora, é exatamente essa “condição operária” que conforma determinada subjetividade que está em metamorfose. Essas características enumeradas anteriormente já não dão conta de explicar a nova realidade do trabalho e como os trabalhadores se inserem nela. Percebe-se um desencaixe. O que marca a mudança para a emergência de uma outra subjetividade é exatamente o surgimento da Revolução Informacional associada a outras transformações de caráter mais geral na sociedade.
IHU On-Line - Como era a subjetividade operária da sociedade industrial e como se caracteriza o operário da sociedade informacional, cognitiva?
César Sanson - Marx, refletindo sobre a sociedade industrial, considerava, por um lado, que no trabalho a pessoa se auto-realiza, pois o seu agir produtivo permite que se afirme em relação aos outros e em relação ao mundo em que vive. Por outro lado, porém, constata ao mesmo tempo, que esse trabalho é fonte de alienação em função da perda de domínio e controle sobre o processo de trabalho. Analisando o modo produtivo capitalista do final século XVIII, e, sobretudo, do século XIX, Marx destaca que a produção de um objeto (uma mercadoria) é estranha a quem o produz. Marx se refere a esse processo de ruptura como fetichismo - a penetração da lógica capitalista no núcleo do ser, em todos os modos de pensar e em todas as relações com as outras pessoas.
O conceito de fetichismo é fundamental para a crítica que Marx realiza da sociedade industrial-capitalista. Afirma que existe uma inversão da relação entre as pessoas e as coisas, entre o sujeito e o objeto. Há uma objetivização do sujeito e uma subjetivização do objeto (o sujeito se torna uma coisa e os objetos ganham vida). As coisas – dinheiro, capital, máquinas – se convertem em sujeitos da sociedade. Portanto, a Revolução Industrial, segundo a análise marxista, manifesta no trabalho uma subjetividade assujeitada.
Ora, o assujeitamento é uma contradição e um paradoxo à emancipação prometida pela sociedade industrial fundada na modernidade. Como agora essa modernidade, que promete uma subjetividade livre, assujeita a subjetividade? A aparente contradição de que agora o trabalhador de sujeito livre – fundamento do liberalismo - passa a ser assujeitado encontra no próprio Marx uma outra interpretação. Apesar da alienação, do fetichismo, do estranhamento, essa mesma relação de produção produz uma subjetividade de não aceitação, de resistência.
A conclusão que se pode chegar, então, a respeito da subjetividade operária da sociedade industrial é que, se por um lado, não suplantou o assujeitamento, a subordinação e até mesmo o estranhamento no processo produtivo, por outro lado, nada permite afirmar que se trata de uma subjetividade alienada. Os trabalhadores, exatamente porque têm consciência de sua condição assalariada, percebem o capital como o seu contrário e dessa limitação procuram tirar proveito. Nessas condições construíram as suas resistências, os seus mecanismos de defesa e as suas organizações como um sujeito coletivo.
Nesse momento, o advento da Revolução Informacional permite que se fale na emergência de uma “nova” ou de uma “outra” subjetividade operária em formação. Caracterizar essa outra subjetividade é uma tarefa difícil, mas alguns elementos podem ser destacados. Um primeiro aspecto, pensando a partir da realidade do trabalho, implica o fato de que, na sociedade informacional, o conhecimento passa a ser muito importante. Aplicado ao processo produtivo, o conhecimento não é simplesmente uma ferramenta a ser aplicada, mas um processo a ser desenvolvido. Não há passividade diante da máquina e sim integração, interação. Estamos diante do trabalho imaterial que, como diz Paolo Virno , mobiliza todas as faculdades que caracterizam a nossa espécie: linguagem, pensamento abstrato, disposição à aprendizagem, plasticidade, hábito de não ter hábitos sólidos. Nesse sentido o conhecimento se torna uma mercadoria na medida em que ele é decisivo na contratação da mão-de-obra. Contrata-se, sobretudo hoje, o conhecimento que o trabalhador possui. Essa é a “matéria-prima” da economia material.
Na sociedade industrial o conhecimento já está dado. A exteriorização define o ato de trabalhar. O trabalho está ‘fora’ de mim - o que demarca uma linearidade espacial de local e tempo; agora, o trabalho imaterial que tem em sua base o conhecimento subsume toda a pessoa integralmente porque exige interiorização. Torna-se constitutivo de todo o seu ser - eu vivo o trabalho e penso o trabalho o tempo todo e todo o tempo.
Arrisco afirmar que estamos diante de uma subjetividade da bricolagem, no sentido francês de bricoler – “faça você mesmo”. Quem tiver capacidade de se adaptar se sai melhor. Essa subjetividade no trabalho hoje se manifesta em várias situações: na importância das “externalidades”, ou seja, as habilidades e o conhecimento que eu trago de fora para dentro; na capacidade de criatividade e inventividade para interagir com o conhecimento que está na base produtiva das mercadorias e serviços; na relação de expertise com os modernos instrumentos de trabalho - as máquinas ferramentas informacionais; na capacidade de se expor por inteiro aos colegas de trabalho; na exigência das auto-avaliações grupais para se manter a sociabilidade requerida; na exigência de um trabalhador aconvencional que “vista a camisa” da empresa, que a incorpore em sua vida e a ela dedique o melhor de suas energias, físicas e intelectuais; na exigência da incessante formação profissional. Diria, então, que a “nova” subjetividade tem de saber lidar com essas novas exigências.
Sabemos que a nova lógica do modo produtivo é ganhar o trabalhador como um todo e aqui o elemento central é ganhar, sobretudo, a subjetividade do operário. Fazer com que ele pense como pensa a empresa, fazer com que ele aja como deseja a empresa, que se comporte de acordo com os valores cultivados pela Organização. A novidade é que não se trata mais de impor, mas fazer com que o próprio trabalhador assimile a lógica da Organização e seja o seu propagador, o seu retroalimentador. Que adote inclusive, os padrões da cultura organizacional fabril para a sua vida privada.
Por outro lado, há um cinismo no discurso do capital relacionado à “nova” subjetividade operária requerida. O capital fala em maior liberdade e autonomia no processo produtivo, exatamente porque há uma franja de controle no processo produtivo. Fala em trabalho em equipe, em gestão participativa, em “time”. O cinismo consiste em que, se por um lado, se fala em trabalho em equipe, por outro exige altas performances individuais de produtividade. Olhando sobre a ótica de uma subjetividade sociabilizadora, os trabalhadores (indivíduo) e sujeito (classe) estão perdendo o que têm de melhor. A subjetividade erigida na sociedade industrial constituía-se de elementos de agregação, exatamente porque o capital não dissimulava a sua função de mandatário. Agora não, o capital procura enredar o trabalho num discurso pseudoparticipativo e a partir da promessa da agregação o que faz na realidade é desagregá-los.
IHU On-Line - Qual o lugar do trabalho na vida das pessoas dessa chamada “sociedade informacional”? O trabalho, como o conhecemos, muda seus conceitos?
César Sanson - O trabalho continua central, mas com todas as mudanças que ocorreram podemos afirmar, como diz Castel e Gorz , que a situação atual é marcada pela desestruturação da condição salarial e pela formação de diferentes ‘zonas de coesão social’. Temos os integrados – trabalhadores que estão incorporados ao novo modo produtivo; os vulneráveis - trabalhadores em situação de ‘risco’, lembrando aqui dos terceirizados, e os excluídos – os que estão fora da sociedade salarial. O que mudou em relação à sociedade industrial é a quebra da metanarrativa de vida que se fazia em torno do trabalho. Apesar de ser central no imaginário e para a construção identitária das pessoas, milhares passarão a vida toda procurando um encaixe social pelo trabalho e não encontrarão.
Outra mudança no caráter da centralidade do trabalho entre a sociedade industrial e a informacional é que o trabalhador da sociedade anterior tinha no trabalho um dos aspectos de equilíbrio da sua vida social, ou seja, o trabalho não “engolia” o trabalhador. A narrativa do trabalho ocupava um lugar na vida do operário sob a qual ele tinha determinado controle. Agora, diante das novas exigências poder-se-ia afirmar que o “trabalho” engoliu o trabalhador. O trabalho passou a “controlar” o trabalhador. Se antes ele era fonte de equilíbrio individual e social, tornou-se fonte de apreensão e de “risco”, como diz Ulrich Beck. Estamos pensando aqui nos trabalhadores vinculados, sobretudo, aos setores da economia do imaterial. O fato é que a vida de trabalho hoje se faz aos solavancos, de incertezas e angústias.
IHU On-Line - Como compreender uma sociedade que, ao mesmo tempo em que inicia essa transformação para um capitalismo cognitivo, ainda convive com a realidade de exploração existente, por exemplo, entre os cortadores de cana nos canaviais brasileiros? Qual a subjetividade operária desses trabalhadores em comparação com a subjetividade do trabalhador da sociedade informacional do século XXI?
César Sanson - O trabalhador do corte da cana, de um lado, e o trabalhador de uma indústria de ponta no setor automobilístico, de outro, manifestam a dualidade presente na sociedade do trabalho. Essa situação díspar adverte-nos para o fato de que a chamada sociedade informacional do trabalho ainda não é hegemônica. Poderíamos falar então em diferentes “sociedades de trabalho” que se mesclam como afirma Antunes . Podemos ir ainda mais longe. Não é incomum no corte da cana encontrar-se, de um lado, um trabalhador em condições aviltantes e degradantes de trabalho e, ao lado dele, outro trabalhador que pilota as sofisticadas colheitadeiras com altíssima tecnologia de bordo. Juntam-se aqui, no mesmo espaço geográfico, o trabalho de características do século XIX e do século XXI.
É bastante provável que o cortador de cana tenha a consciência de que está na rabeira da cadeia produtiva, da aceitação do trabalho que sobrou e o piloto da colheitadeira, a consciência que está na “dianteira”. Mas isso é uma hipótese. Sob a perspectiva da subjetividade, diria que o que os diferencia é o fato de trabalharem com instrumentos diferentes que os remetem para códigos e simbologias diversos na organização social do trabalho: um com o facão e o outro com o computador de bordo. Um situa-se nos primórdios da sociedade industrial, o outro já está na sociedade informacional, com todas as implicações do que isso significa, como já destacado anteriormente.
Essa situação os diferencia, mas outras certamente os aproximam como exigência de índices de produtividade e o stress a que estão submetidos no trabalho. Os aproxima ainda - por mais paradoxal que possa ser - que ambas as “tarefas” exigem habilidade e destreza. Ambos precisam ser exímios no que realizam. Por aqui há uma pista de uma subjetividade que pode os aproximar.