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IHU Online
Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela afirma que “o moderno se concilia com o lado perverso do arcaico, numa mistura diabólica, que garante ainda mais o poder e a riqueza dos poderosos”.
Maria Aparecida de Moraes Silva é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UNESP, socióloga e pesquisadora do CNPq. Mestre e doutora em Sociologia do Desenvolvimento na Université de Paris I (França), há 30 anos, desenvolve pesquisas sobre as temáticas relacionadas ao trabalho e trabalhadores rurais na região de Ribeirão Preto, considerada uma das mais ricas do País. Suas pesquisas versam sobre a dura realidade dos migrantes nordestinos e mineiros do Vale do Jequitinhonha/MG, das mulheres, dos assentados e trabalhadores rurais nos canaviais e cafezais dessa região. É autora de, entre outros, Errantes do Fim do século. São Paulo: Edunesp, 1999. Na edição 188 da IHU On-Line, de 10-07-2006, concedeu a entrevista A superexploração no trabalho rural.
IHU On-Line - A senhora disse em outra entrevista à IHU On-Line que os pais cortadores de cana afirmam que desejam que os seus filhos não sejam trabalhadores rurais, que não sigam o mesmo destino. Mas essas crianças, hoje, têm outras opções de trabalho para o futuro ou estão destinadas a seguir a rotina de seus pais?
Maria Aparecida de Moraes Silva - As opções estão cada vez mais escassas, pois não há outras oportunidades de emprego para a grande maioria destes jovens. Por outro lado, os salários baixos, além do trabalho desqualificado, não são alternativa para eles.
IHU On-Line - O promotor público do trabalho, responsável pelo megainquérito para apurar negligências no setor de corte de cana de açúcar, Mário Antonio Gomes, disse ao jornal O Estado de São Paulo que o modelo de remuneração por produção é a base de todos os problemas no setor. Nesse modelo, o trabalhador ganha uma remuneração básica de R$ 400, valor que não é suficiente para atender as suas necessidades. Para ele alcançar uma remuneração melhor, que fica entre R$ 900 e R$ 1000, ele precisa cortar volumes de 10 a 20 toneladas de cana por dia. Para a senhora, qual seria o modelo de trabalho ideal ou um possível modelo alternativo para garantir alguma qualidade de vida para os bóias-frias?
Maria Aparecida de Moraes Silva - Concordo que o trabalho por produção deva ser abolido, pois é uma maneira de acentuar a superexploração. Em se tratando de um trabalho extremamente penoso, a solução seria a diminuição da jornada de trabalho, aliada à alimentação adequada e ao aumento de salários. Em Cuba, os cortadores de cana, os "macheteros", recebem atenção especial do sistema de saúde do estado, além de receberem os salários mais altos do país.
IHU On-Line - O aumento da terceirização no Brasil só vai prejudicar os trabalhadores temporários da cana, já que eles são as maiores vitimas da desigualdade nas relações trabalhistas, por não possuírem carteira assinada?
Maria Aparecida de Moraes Silva - Na verdade, boa parte deles possui carteira assinada por tempo determinado. A questão fundamental não é esta. A carteira assinada não significa que o trabalhador não sofrerá os efeitos desta superexploração. A questão gira em torno da imposição dos níveis de produtividade (hoje em torno de 12 a 15 toneladas cortadas por dia). Caso o trabalhador não atinja esta média, ele correrá o risco de ser despedido, mesmo com a carteira assinada.
IHU On-Line – A União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Única) estima que 260 mil trabalhadores irão cortar cana este ano. Segundo a Unica, 45% desses trabalhadores são migrantes do Norte de Minas Gerais e do Nordeste. A supersafra de cana poderá causar um “massacre” de trabalhadores nesse ano?
Maria Aparecida de Moraes Silva - Este trabalho, por ser extremamente penoso e perigoso, pois, além das mortes por excesso de esforço, o número de acidentados é muito elevado, causa um desgaste galopante da força de trabalho. Conheci um jovem do Maranhão que, após quatro safras, já não pôde mais trabalhar em função das dores nos pés, causadas por uma deformação óssea, em virtude do uso dos "sapatões". Os problemas de coluna, além dos respiratórios, causados pela inalação da fuligem da cana, são responsáveis por doenças que afetam os trabalhadores.
IHU On-Line – O cortador de cana-de-açúcar, José Pereira Martins, 51 anos, disse que “canavieiro é o pior serviço que existe”. A senhora já deve ter visto muitas coisas horríveis e tristes nas suas idas aos canaviais. Poderia nos contar algum caso que tenha presenciado e que retrate um pouco dessa afirmação do bóia-fria José Pereira Martins?
Maria Aparecida de Moraes Silva - Nestes 30 anos de experiência de pesquisa, vi e vivenciei muitos sofrimentos de homens e mulheres. Recentemente gravei várias imagens com homens e mulheres de várias cidades da região de Ribeirão Preto, que haviam trabalhado mais de 15 anos no corte de cana. Eram pessoas estropiadas. O caso mais dolorido era referente a um homem, que sofria com o encurtamento das cordas vocálicas, provocadas pelo trabalho. Não conseguia falar, não dormia, mal caminhava, em função das dores. No tocante aos migrantes, os sofrimentos afetam as famílias que ficam nos lugares de origem. Presenciei, há alguns dias, a saída de ônibus com trabalhadores de Timbiras (MA), para esta região. O momento da partida é seguido de cenas de choro, desespero e um indecifrável sentimento de impotência diante do destino, por parte de crianças e mulheres. Segundo alguns relatos, além da separação em torno de oito meses, período da safra, havia o medo da morte, de acidentes...
IHU On-Line – Por serem em geral nordestinos ou oriundos do norte de Minas Gerais, as pessoas acabam sofrendo preconceito ao migrarem para outras regiões, como São Paulo, e por isso a maioria só consegue trabalho informal como bóias-frias? Ou existem outras questões além do preconceito que levam essas pessoas a não conseguirem outro tipo de atividade?
Maria Aparecida de Moraes Silva - A questão é posta de outra forma. Os migrantes são preferidos porque, em função de estarem muito longe de suas famílias, suportam mais as imposições do que os trabalhadores locais. Se reclamarem, correm o risco de serem despedidos. Isso implicaria em sérios riscos para sua sobrevivência material e de suas famílias. Ademais, quando termina a safra, eles regressam para seus locais de origem, desobrigando, assim, as empresas de assumirem a reprodução dessa força de trabalho na entressafra.
IHU On-Line - Como a senhora avalia a questão de grandes empresas estarem evoluindo e investindo em tecnologia, como é o caso da Gol, que investiu cerca de US$ 20 mil na empresa, enquanto, ao mesmo tempo, o diretor da organização, Constantino de Oliveira, tinha 259 trabalhadores em condições precárias e eram obrigados a trabalhar sete dias por semana, sem folga, na fazenda em que ele era sócio, na Bahia?
Maria Aparecida de Moraes Silva - Este é o quadro "normal" neste país. O moderno se concilia com o lado perverso do arcaico, numa mistura diabólica, que garante ainda mais o poder e a riqueza dos poderosos.
IHU On-Line - A partir deste ano, será colhida a cana geneticamente modificada, que é mais leve. Além de pesar menos, ela elimina bastante água o que renderá mais lucros aos donos de usinas. Com esse novo tipo de cana, o trabalhador terá que cortar o triplo para produzir 10 toneladas. Será que é o fim dos cortadores de cana? Eles vão agüentar a essa pressão?
Maria Aparecida de Moraes Silva - Marx , em seus escritos, mostrou muito bem que a ciência no capitalismo está a serviço deste sistema. As pesquisas científicas referentes a este setor, jamais levam em conta o trabalhador. O que elas visam é a elevação dos lucros para as empresas. Este é o caso das pesquisas sobre novas variedades de cana. É bom lembrar aqui a frase de um outro pensador: para quê e a quem serve a ciência? (Rousseau).