Edição 216 | 23 Abril 2007

O mercado de trabalho assalariado na agricultura brasileira

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IHU Online

Na opinião do engenheiro agrônomo Otávio Valentim Balsadi, um dos pontos centrais no mercado de trabalho assalariado na agricultura brasileira é “a grande discrepância na qualidade do emprego entre os empregados permanentes e os temporários”. Por essa razão, Balsadi acredita que “uma atenção especial deveria ser dada para melhorar as condições de trabalho dos empregados temporários agrícolas, de modo a se reduzir as desigualdades nas relações trabalhistas”. As idéias foram desenvolvidas na entrevista que segue, realizada por e-mail pela IHU On-Line.

Pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Balsadi é graduado em Engenharia Agronômica pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ) e especialista em Análise e Formulação de Políticas Agrícolas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nessa mesma instituição, cursou mestrado em Desenvolvimento Econômico e doutorado em Economia Aplicada. Sua dissertação de mestrado transformou-se no livro Características do emprego rural no Estado de São Paulo nos anos 1990. São Paulo: Annablume, 2002. Sua tese de doutorado chama-se O mercado de trabalho assalariado na agricultura brasileira no período 1992-2004 e suas diferenciações regionais.

Balsadi escreveu inúmeros capítulos de livros e artigos técnicos, sendo também um dos autores de Abastecimento alimentar e ação pública municipal: o caso de Piracicaba. Piracicaba: Prefeitura Municipal de Piracicaba/Esalq-USP, 1992; Força de trabalho na agricultura paulista. São Paulo: Fundação Seade, 1996 e Dinâmicas regionais e questão agrária no Estado de São Paulo. 2. ed. São Paulo: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Superintendência Regional de São Paulo, 2006.

IHU On-Line - Quais os maiores desafios em relação à desigualdade nas relações trabalhistas?
Otavio Balsadi -
Quando se olha mais especificamente o mercado de trabalho assalariado na agricultura brasileira, que é o tema que tenho mais familiaridade, parece-me que um dos pontos centrais é a grande discrepância na qualidade do emprego entre os empregados permanentes e os temporários. Essa discrepância pode ser vista por indicadores ligados, por exemplo, ao grau de formalidade e ao rendimento recebido pelos empregados. Em 2005, 51,2% e 46,1%, respectivamente, dos empregados permanentes com residência urbana e rural tinham registro em carteira, contra apenas 14,7% dos temporários urbanos e 4,6% dos temporários rurais. Vejamos agora os indicadores de rendimento: para os empregados temporários, as participações dos que recebiam mais de um salário mínimo mensal também ficaram bem abaixo das médias observadas para os permanentes. Em 2005, 25,1% e 35,5%, respectivamente, dos empregados temporários com residência rural e urbana recebiam mais de um salário mínimo mensalmente, contra 53,0% e 59,9%, respectivamente, dos permanentes rurais e urbanos.  Ainda em relação aos rendimentos, em números de Brasil, os temporários rurais recebiam 72,3%, 55,8% e 45,4% do que recebiam, respectivamente, os temporários urbanos, os permanentes rurais e os permanentes urbanos. Os rendimentos, em valores reais de dezembro de 2005, registrados para estas categorias foram, respectivamente: R$ 214,34; R$ 296,55; R$ 384,28; R$ 472,37. Por isso, acredito que uma atenção especial deveria ser dada para melhorar as condições de trabalho dos empregados temporários agrícolas, de modo a se reduzir as desigualdades nas relações trabalhistas.
 
IHU On-Line - O senhor afirma que os trabalhadores temporários na cana são as maiores vítimas da desigualdade nas relações trabalhistas, sendo que metade deles não possui carteira assinada. Essa realidade é reflexo de que fatores? Como chegamos a isso?
Otavio Balsadi -
Na realidade, na minha tese de doutoramento, intitulada “O mercado de trabalho assalariado na agricultura brasileira no período 1992-2004 e suas diferenciações regionais” e defendida recentemente no Instituto de Economia da Unicamp, chamo a atenção para o elevado nível de precarização das condições de trabalho dos trabalhadores temporários agrícolas em geral. Não somente na cana, mas também nas culturas de arroz, café, mandioca, milho e soja. Inclusive, é interessante notar que, pelos indicadores que utilizei para medir a qualidade do emprego, os quais estão ligados ao grau de formalidade do emprego, ao nível educacional dos empregados, ao rendimento e aos principais auxílios recebidos, a situação dos empregados temporários ocupados na cana-de-açúcar era bem mais favorável do que a verificada para os temporários ocupados nas culturas do arroz, do milho e da mandioca, por exemplo. Um exemplo: em 2005, 47,1% dos empregados temporários rurais e 73,9% dos temporários urbanos ocupados na cultura da cana tinham carteira de trabalho assinada. São valores que estão muito acima da média nacional e das culturas citadas. Um dos motivos para isso é que há um importante histórico de luta e organização dos trabalhadores da cana, que melhorou bastante as condições de trabalho. A cana sempre chama muito a atenção pelos casos de exploração do trabalho, de graves acidentes de trabalho e até mesmo de mortes que ocorreram em canaviais, mas não podemos esquecer que as demais atividades agrícolas também oferecem condições muito precárias para os seus trabalhadores temporários.

Esta situação mais desfavorável dos empregados temporários não é nova e é fruto de vários fatores, dentre os quais podemos citar: a importância dos empregados temporários na agricultura brasileira ainda é muito grande, mesmo em termos numéricos; a organização sindical desta categoria é muito fraca no Brasil (com exceção dos trabalhadores da cana em São Paulo, que criaram a Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (Feraesp), são poucos os exemplos de organização sindical dos empregados temporários); a dificuldade de boa parte dos contratantes cumprir a legislação trabalhista; e a baixa rentabilidade das atividades agrícolas domésticas, que têm enormes dificuldades em formalizar e remunerar bem a força de trabalho. Ou seja, há um conjunto de causas que precisariam ser mais bem estudadas para se tentar reverter a situação precária dos empregados temporários agrícolas.

IHU On-Line - Como podemos definir a situação do trabalhador rural, do cortador de cana, que é migrante, está longe de casa e é transformado em instrumento a serviço do capital?
Otavio Balsadi -
Com a forte expansão da cana em áreas tradicionais de cultivo e também em áreas novas, devido à onda da agroenergia, e com o início da colheita da safra em algumas regiões, é muito comum serem vistas, nos jornais e na televisão, as reportagens abordando as condições precárias de moradia, de higiene, de saúde e as denúncias, dos órgãos públicos encarregados pela fiscalização, de abusos e exploração dos trabalhadores temporários ocupados no corte da cana, boa parte deles migrantes de regiões muito pobres. Como o cenário futuro é de forte expansão da demanda nacional e internacional pelo etanol, acredito que as exigências, principalmente dos importadores, por certificações que levem em conta a responsabilidade social das empresas, levarão a uma significativa alteração deste quadro. As empresas que não mecanizarem a colheita, com o fim das queimadas, e continuarem utilizando mão-de-obra temporária no corte da cana certamente terão que rever o padrão de qualidade de emprego e de condições de vida de seus trabalhadores, sob pena de perderam espaço no mercado.

IHU On-Line - Como funciona o mercado de trabalho assalariado na agricultura? Ele tem futuro ou a tendência é “largar a enxada”? Quais seriam as conseqüências disso? Como se regulamenta o trabalho rural nos dias de hoje?
Otavio Balsadi -
O mercado de trabalho assalariado na agricultura é composto pelos empregados, que, pela definição do IBGE, são pessoas que trabalham para um empregador (pessoa física ou jurídica), geralmente obrigando-se ao cumprimento de uma jornada de trabalho e recebendo em contrapartida uma remuneração em dinheiro, mercadorias, produtos ou benefícios (moradia, alimentação, roupas etc.). Em função das relações de trabalho, eles podem ser permanentes ou temporários. Apesar de haver uma tendência histórica de redução dos postos de trabalho agrícolas, no período 2001-2005 foram criados cerca de 450, 500 mil novos empregos, boa parte deles com carteira assinada. Desde 2001, os empregados são a principal categoria de ocupados na agricultura brasileira (participação entre 28% e 30% do total, ou cerca de 5,0 milhões de trabalhadores). Tudo isso em função do período bastante favorável para a agricultura brasileira, particularmente para as commodities internacionais.

Ou seja, os dados mais recentes indicam não só um crescimento do emprego agrícola como também uma recomposição do mercado de trabalho formal, evidenciando que o desenvolvimento da agricultura e as políticas públicas possam ter um papel pró-ativo na geração de empregos de qualidade. De acordo com os dados do IBGE, penso que a categoria de membros não remunerados da família é que terá muita dificuldade de inverter o movimento de redução das pessoas ocupadas: entre 1992 e 2005, cerca de 1,3 milhão deixaram a agricultura. Portanto, não são os empregados os mais atingidos pela queda do número de ocupados na agricultura brasileira.

Para finalizar a resposta, acho que ainda é preciso melhorar muito a atuação dos órgãos responsáveis pela formação e qualificação da mão-de-obra para a agricultura brasileira, pois as mudanças tecnológicas, as inovações institucionais e as alterações no processo produtivo que estão em curso têm exigido um novo perfil de trabalhador. Quanto à regulamentação do mercado de trabalho agrícola, não sou especialista no tema, que, aliás, é muito complexo e polêmico, mas há iniciativas para se tentar melhorar a situação: os consórcios de produtores rurais para contratação formal e conjunta da mão-de-obra; a permissão de contratos por tempo determinado e a tempo parcial; além das reformas sindical e trabalhista, que estão sendo elaboradas e discutidas pelo governo, pelo congresso nacional, pelos trabalhadores e empresários.

IHU On-Line - Como você entende que será o futuro do trabalho? A forma de trabalho como a conhecemos está em extinção? Que alternativas podemos vislumbrar em sua substituição?
Otavio Balsadi -
Falar de futuro sempre envolve cenários alternativos e subjetividades. Quanto ao futuro do trabalho, penso que devemos levar em consideração que não há um mundo do trabalho em geral, senão vários mercados de trabalho distintos. Há situações muito distintas entre países e mesmo no interior de cada país. Por isso, penso que devemos ter certa cautela nos exercícios de futurologia. A mecanização, as novas tecnologias de produção, certamente vão provocar fortes mudanças no trabalho, mas não vejo o emprego agrícola em fase de extinção, pelo menos no Brasil e em vários países em desenvolvimento. No futuro, poderemos ter menos pessoas ocupadas diretamente na agricultura, mas que poderão empregar-se nas mais diversas atividades não- agrícolas, tanto no meio rural quanto no urbano, ligadas ao comércio, à indústria e aos serviços. Acredito que, por mais transformações que estejam à vista, ainda há necessidade de se colocar o tema do emprego no centro das atenções, como um ponto fundamental na manutenção de um tecido social mais justo e equilibrado. No caso específico da agricultura, há enormes potencialidades com o desenvolvimento de novas atividades em áreas que atualmente estão fora do circuito produtivo (inclusão social e produtiva), o que certamente poderia trazer para o mercado de trabalho assalariado um contingente nada desprezível de trabalhadores.

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