Edição 216 | 23 Abril 2007

“Os cortadores de cana me deram uma lição de vida”

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Um depoimento de Silvério Ferreira dos Santos, agente pastoral

Silvério Ferreira dos Santos, 29 anos, é licenciado em Letras Português- Inglês e pós-graduado em Ciências da Religião. Atualmente, trabalha na Casa do Migrante, em São Paulo, mas acaba de chegar da cidade de Uruana, interior de Goiás, sua terra natal, que fica no centro do Estado, onde trabalhou como agente da pastoral do migrante, atuando diretamente com cortadores das usinas de cana-de-açúcar. Silvério conta que, há cerca de cinco anos, a região se tornou uma grande produtora de cana-de-açúcar. Em função disso, foram aparecendo alguns problemas na cidade, de ordem social, econômica e de saúde. Silvério ficou interessado em trabalhar como agente pastoral na área do corte de cana. “No início foi difícil encontrar pessoas para criar uma pastoral voltada para os cortadores de cana, porque essa é uma população discriminada”, conta ele.

Os cortadores são nordestinos que vão para Goiás, e a população local tem preconceito em relação a esse pessoal. A idéia inicial era fazer uma acolhida para os migrantes que chegavam a Goiás, nas cidades onde há lavouras de cana. Mas, aos poucos, foram surgindo problemas que ampliaram as funções da pastoral. Os problemas era em relação a alojamento, comida, salário, horário de trabalho e contratação. “Os cortadores não tinham informação sobre seus direitos. Se sentiam coagidos, pois são contratados pelo chamado ´gato´, uma pessoa que vai para o Nordeste, contrata-os e passa-os para a usina. É algo bem informal. Carteira assinada, nem pensar”, descreve Silvério. Ele abre o jogo e afirma que as usinas fazem pressão e suborno aos movimentos, principalmente à Pastoral do Migrante. “Eles não gostavam que a gente dava apoio aos cortadores. Quanto menos esclarecido esse pessoal, melhor é para a usina. Eles diziam para nós: ‘Olha, quando vocês detectarem algum problema com os cortadores de cana, ao invés de acionar a Justiça, venham conversar com a gente. Se vocês precisarem de álcool para o carro de vocês, nós temos aqui’, aquela coisa de suborno”, conta. Até o irmão de Silvério, que era empregado da usina, foi demitido. “Depois de muita ameaça, foi rescindido o contrato com ele, só porque eu atuava na pastoral e auxiliava os cortadores de cana”.

Aprendizado para toda a vida

Silvério conviveu de perto com essas pessoas. Ele sabe que esses trabalhadores saem de sua terra natal com uma boa proposta de vida e vêm para Goiás, esperando ganhar muito dinheiro. Quando chegam, se deparam com outra realidade. “Normalmente os ‘gatos’ das usinas prometem pra eles uma estrutura e quando chegam, ficam desiludidos”. Silvério diz que a maioria dos cortadores volta para os estados de origem no fim da safra. Mas muitos também ficam. “Na cidade de Uruana mesmo, eu acompanhei várias famílias, em torno de 15, que não quiseram voltar para o Nordeste. Mas mudaram de atividade, não trabalhando na cana, produzindo outras culturas, como a melancia”.
A questão de solidariedade entre os cortadores é o que mais marcou Silvério no convívio com esses guerreiros. “Eles sofrem juntos, são muito humildes e unidos. São uma lição de vida para mim”.

Uma história cruel
Das tantas experiências de Silvério entre os cortadores de cana, uma o marcou especialmente. Foi no último dia 5 de fevereiro, quando recebeu uma ligação informando que havia um alojamento com 42 homens, que estavam há mais de cinco dias sem comida, em condições precárias. “Estavam passando fome juntos. O que tinham, eles dividiram entre si. Fui até lá providenciar comida. E depois fui saber um pouco da história deles. A usina que os contratou era de uma cidade vizinha a Uruana, mas os colocou em um alojamento em Uruana, para ficar distante da usina. Depois dos exames médicos, a usina os dispensou, não quis mais contratar esses 42 homens e os deixou em uma casa velha, onde chovia dentro, sem comida, sem as mínimas condições de sobrevivência. E mandou que eles procurassem seus direitos no Ministério do Trabalho, em Brasília”. Silvério conta que esses homens, sem informações, estavam tentando juntar, entre eles, uma quantia em dinheiro para que um representante do grupo fosse a Brasília. “Eu disse a eles que bem perto deles havia o Ministério Público. Eles estavam a 200 metros do Fórum, não precisavam ir tão longe. Marquei uma audiência com a promotora, que acionou o Ministério do Trabalho, que, por sua vez, acionou a Polícia Federal, e a usina teve que assinar a carteira deles desde o dia em que eles saíram de Pernambuco, além de pagar todos os direitos trabalhistas, dar um alojamento decente e pagar todas as despesas”, explica o agente pastoral.

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