Edição 216 | 23 Abril 2007

“O que mudou foi a divisão do trabalho”

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IHU Online

Enquanto muitos pensadores do mundo do trabalho atual discutem a tendência do trabalho imaterial e cognitivo, a pesquisadora inglesa Ursula Huws dispara: “o conceito de uma ‘sociedade do conhecimento’ parece quase inteiramente uma construção ideológica que serve como cortina de fumaça para esconder a realidade de que nunca houve na história do trabalho mais trabalho ‘material’ do que há precisamente agora”. A afirmação foi feita em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.

Huws é professora de Estudos do Trabalho Internacional no Working Lives Research Institute na Universidade Metropolitana de Londres. Escreveu os livros Telework: Towards the Elusive Office. John Wiley, Chichester and New York, 1990 e The making of a cybertariat: Virtual work in a real world. New York: Monthly Review Press & London: Merlin Books, 2003 – ambos sem tradução para o português. Huws já foi entrevistada pela IHU On-Line na 177ª edição, de 24 de abril de 2006, com o título A nova divisão global do trabalho.

IHU On-Line - Os seus estudos apontam para uma reorganização da alocação do trabalho mundial. Quais são as principais características da nova divisão internacional do trabalho?
Ursula Huws -
A nova divisão internacional do trabalho trouxe uma decisiva mudança no poder dos trabalhadores para com os empregadores, dando aos empregadores a opção de transferir trabalho entre regiões e nações. Embora o trabalho não seja transferido, a ameaça de que ele possa ser pode ser utilizada para disciplinar os trabalhadores nos locais de trabalho. Isso possibilitou o desenvolvimento de uma nova reprodução de multinacionais que estão se expandindo numa taxa fenomenal, mas não tanto pelo método tradicional de recrutar trabalhadores diretamente do mercado de trabalho, como pela transferência de pessoal. Quando o trabalho é deslocado de uma companhia existente ou da organização de um setor público para uma das novas companhias globais de origem externa (tais como Accenture, EDS, Siemens Business Services, Manpower, Serco etc.), os termos do contrato de transferência (outsourcing ) envolvem, com freqüência, uma transferência dos empregados que prestaram previamente este trabalho à nova companhia global. Estes trabalhadores se defrontam, então, com mudanças nos seus termos e condições de trabalho e, com muita freqüência, com uma necessidade de adaptação à cultura de uma corporação global na qual eles terão que trabalhar, não precisamente para seu velho empregador, mas também para outros clientes que podem estar localizados em algum outro lugar do mundo, e no qual as únicas possibilidades de avanço podem envolver a mobilização para outras regiões.

Uma nova “classe média”
Já estamos vendo sinais de uma convergência nos salários como resultado desses desenvolvimentos. Isso criou uma forte pressão para baixo nos níveis de remuneração dos trabalhadores nas economias mais desenvolvidas da Europa e da América do Norte, porém trouxe algum “nivelamento para cima” para a minoria dos trabalhadores que trabalham para essas corporações globais em algumas regiões em desenvolvimento (por exemplo, em partes da Índia). Isso está conduzindo ao desenvolvimento de uma nova “classe média” em alguns países, mas há pouca evidência de que isso esteja conduzindo a uma melhoria geral em salários e condições através de toda a economia. Pelo contrário, parece estar criando novas formas de polarização entre os mesmos, com uma taxa de crescimento entre esta nova “classe média” e aqueles que trabalham no setor informal, especialmente em áreas rurais.

Eu uso o termo “classe média” com reservas, porque, embora esta seja em geral a percepção dos próprios trabalhadores e represente objetivamente uma melhora maior em sua posição prévia, não me parece que oferece para a maioria deles alguma real segurança a longo prazo, como membros de uma burguesia permanente. Há, no entanto, também uma rápida emergência de amplas corporações globais na Índia, na China e em outras nações em desenvolvimento, cujo bem-estar está crescentemente indistinguível daquele de corporações similares localizadas nos Estados Unidos ou na Europa.

IHU On-Line - Descrevendo as significativas mudanças na organização social do trabalho a partir da revolução tecnológica, a senhora fala num novo tipo de proletariado, o cybertariat (cybertariado). Poderia explicar o que caracteriza esse novo trabalhador?
Ursula Huws -
Eu uso o termo “cybertariado” para descrever trabalhadores que estão empregados em tarefas que envolvem o processamento de informação em negócios que têm o potencial de serem realocados, ou já o foram. Em alguns casos, foram negócios que foram encarados formalmente como tarefas “boas” para trabalhadores altamente educados (por exemplo, trabalhadores de tecnologia da informação no setor público), mas que deterioraram rapidamente quando se tornaram sujeitos desses processos de globalização. Estes trabalhadores estão se tornando tipicamente mais e mais intercambiáveis, quando perícias e processos se tornam mais estandardizados. Isso corrói sua posição de barganha e torna seu trabalho mais precário.

IHU On-Line - Como organizar o cybertariado numa realidade cada vez maior de fragmentação e divisão espacial do trabalho? 
Ursula Huws -
As mesmas forças que resultam na estandardização de tarefas e na universalização de perícias poderia, em princípio, tornar-se uma forma de unir esses grupos de trabalhadores que eram formalmente muito disparatados em termos de suas identidades ocupacionais e fidelidades classistas. De forma crescente eles compartilham dos mesmos processos laborais, trabalham para os mesmos empregadores e têm relações funcionais idênticas com o capital. A grande questão é se isso vai conduzir a uma comum identidade subjetiva de classe. Vemos alguns sinais encorajadores de que os sindicatos estão começando a desenvolver estratégias de organização através de cadeias de valor global. Um exemplo disso é a possibilidade, agora discutida, de fusões entre o maior sindicato britânico em manufatura (o Transport and General Workers Union, a fundir-se com Amicus) com contrapartidas nos Estados Unidos (o Steelworkers Union) e, possivelmente, também na Alemanha (Verdi).

IHU On-Line - A senhora fala que entramos na era de uma economia baseada no conhecimento. Na sociedade do trabalho, significa afirmar que entramos na “Era do trabalho imaterial”? O que caracteriza o “trabalho imaterial”?
Ursula Huws -
O conceito de uma “sociedade do conhecimento” parece para mim quase inteiramente uma construção ideológica que serve como cortina de fumaça para esconder a realidade de que nunca houve na história do trabalho mais trabalho “material” do que há precisamente agora. O consumo mundial de matérias-primas e a produção mundial de artefatos físicos nunca foram maiores e podemos ver, para onde quer que olhemos, as conseqüências disso na destruição do meio ambiente. O que mudou foi a divisão do trabalho. Há duas tendências contraditórias no âmbito do capitalismo: uma é a de gerar constantemente novos produtos, o que se torna cada vez mais complexo com o desenvolvimento da tecnologia; a outra é a de constantemente simplificar o processo de produção com o objetivo de reduzir o custo do trabalho. Quando estas duas tendências interagem uma com a outra, o que vemos é uma redução dos processos em ritmos cada vez menores, envolvendo uma cadeia cada vez mais elaborada de trabalho. Estas “cadeias de valor” são crescentemente extensas, tanto contratualmente (produzindo cadeias de subcontratantes [empreiteiros]), como espacialmente (produzindo uma expansão de produção e distribuição ao redor do mundo). Esta divisão do trabalho não se aplica só a processos manuais, mas também a mentais. Os assim chamados “trabalhadores cognitivos” são aqueles que processam unidades de informação da mesma forma como “os trabalhadores manuais” são aqueles que processam unidades de matéria física. Todos esses trabalhadores, sejam “mentais” ou “manuais”, estão intrinsecamente vinculados um ao outro pela lógica do capital, através de suas posições complementares nesta divisão do trabalho.

No entanto, há certos aspectos do trabalho “mental” que servem para camuflar esta realidade ante os próprios trabalhadores. Eles tendem a ser mais finamente educados e encaram a si mesmos como possuidores de uma classe mais elevada. Em alguns casos (por exemplo, daqueles que anteriormente trabalharam no setor público), seu trabalho só recentemente ingressou no mercado e eles ainda se identificam fortemente com aquilo que fazem e essa “racionalidade cuidadosa”, ou busca por “satisfação profissional”, gera uma tendência para a auto-exploração, por exemplo, trabalhando por longas horas. Tais tendências são particularmente evidentes entre “trabalhadores criativos”, e aqueles que ainda se encaram como intelectuais independentes, muitos dos quais são auto-empregados e são colhidos numa aguda contradição entre a necessidade, de um lado, de obter um modo de vida e, do outro, no sentido de expressar sua habilidade.

IHU On-Line - No novo modo produtivo ocorre o que a senhora chama de “destruição da identidade ocupacional”. O que quer dizer exatamente com isso e qual é sua conseqüência para os trabalhadores e trabalhadoras?
Ursula Huws -
Tradicionalmente, as identidades ocupacionais formavam os blocos formadores das identidades de classes. Os trabalhadores são definidos por outros e se definem a si próprios em relação a um setor específico de habilidades e competências que contribuem para estabelecer a identidade ocupacional. Muitos trabalhadores poderiam definir o que eles fazem, tanto em relação a peças particulares de maquinário quanto a funções particulares, em termos bastante precisos – “Minha tarefa é fazer isso, isso e isso”. De maneira mais incisiva isso também foi definido negativamente – “NÃO é fazer isso, aquilo ou aquela outra coisa”. A maioria dos discursos ideológicos circundando o conceito da “economia cognitiva” tende a minar as bases dessas identidades fixadas. Supõe-se que os trabalhadores são engajados num “aprendizado por toda a vida” a fim de estarem preparados para “tarefas múltiplas” ou para serem “flexíveis”. Em outros termos, supõe-se que eles estão preparados para aprender novas habilidades, assumir novas tarefas e substituir-se reciprocamente quando são solicitados a agirem assim pelo empregador. Além disso, em diversas situações, espera-se que eles cubram os custos de algum treinamento de seus próprios bolsos, ou se espera que o Estado o faça. Para que eles investiriam num treinamento oneroso, argumentam diversos empregadores, se, uma vez treinados, os trabalhadores vão embora e trabalham para uma empresa rival? A universalização dos crescentes padrões de habilidades [competências], como observei antes, é fator-chave na criação de um exército global de reserva de trabalhadores da informação – uma contribuição direta para a criação de um “cybertariado”. Isso também mina as bases tradicionais de organização para diversos sindicatos.

IHU On-Line – Em relação ao lugar da mulher na nova realidade mundial do trabalho, o que a senhora poderia destacar?
Ursula Huws -
As implicações de gênero desses desenvolvimentos são imensas e é difícil destacar somente alguns pontos. Aqui quero limitar-me a olhar para a posição das mulheres nas novas empresas globais que estão emergindo no trabalho da informação. Muitas das tarefas que são correntemente sujeitas à inserção no mercado, como a administração de serviços públicos, são atividades que desde os anos 1960 foram, em muitos países, o tipo de trabalho em que as mulheres fizeram os maiores avanços. Ele não emprega somente os tipos de habilidades que as mulheres são em geral mais capazes de desenvolver no sistema educacional (habilidades de linguagem, clericais, administrativas etc.). É também a área onde elas mais tenderam a criar sindicatos e a negociar razoavelmente bons acordos para iguais oportunidades (ganhando, por exemplo, bons acordos de licença maternidade, direitos iguais para trabalhadores em tempo parcial, facilidades para cuidar de filhos etc.). Agora, essas tarefas estão sendo eliminadas e alguns desses ganhos estão sendo corroídos. Por exemplo, as novas empresas globais tendem a ter uma rígida “cultura de longas horas” e fazem altas exigências laborais nesses empregos para trabalharem nos fins de semana, para serem removidos, para ganharem promoções etc. Muitas dessas empresas apresentam uma “face corporativa”, que superficialmente parece ser pró-mulheres. Há, freqüentemente, mulheres em posições administrativas claramente inferiores, como supervisoras de telefonia [call-centers]. No entanto, para assumir tais funções, elas devem, com freqüência, pagar altos preços. Para aquelas que ingressaram no serviço público porque desejaram fazer algum bem no mundo, há um forte choque emocional envolvido na transferência de um ambiente, onde o objetivo ostensivo da tarefa é garantir um serviço público, para outro, onde o objetivo é maximizar os lucros dos acionistas. Por uma variedade de razões, são preferencialmente mulheres que trabalham em tais funções. Mas também há, por exemplo, mulheres que preferem estar na linha de recepção desses novos desenvolvimentos – como consumidoras e usuárias de serviços.

 

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