Edição 216 | 23 Abril 2007

“É na reversão das relações de saber e poder que se encontra o principal fator da passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo”

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IHU Online

Carlo Vercellone, economista italiano, residente na França, concedeu, por e-mail, a entrevista exclusiva, que segue, à revista IHU On-Line. Nela, ele afirma que “o traço essencial da transformação atual do trabalho não consiste unicamente na dimensão imaterial do trabalho ou, mais precisamente, de seu produto. Ele se encontra também na reconquista, da parte do trabalho vivo, da dimensão cognitiva do trabalho, uma dimensão que o desenvolvimento histórico do capitalismo, sem cessar, tentou aniquilar”. Mestre de conferências na Universidade de Paris I Pantheón-Sorbonne, Vercellone, é membro da Unidade de Pesquisas Matisse-Isys (http://matisse.univ-paris1.fr).

Especialista da história econômica da Itália, é o organizador da obra coletiva Sommes-nous sortis du capitalisme industriel? Paris: La Dispute, 2003. Vercellone é membro do Comitê de Redação da revista Multitudes e também autor de Accumulation primitive du capital (1861-1980), industrialisation et rapport salarial: une application au cas italien. Paris: L'Harmattan, 1999. Vercellone concedeu outra entrevista na 161ª edição da IHU On-Line, de 24-10-2005, sob o título Um panorama sobre a nova divisão cognitiva do trabalho.

IHU On-Line - Na última entrevista concedida à nossa revista, o senhor afirma que o “trabalho imaterial” ajuda na compreensão da transição do “capitalismo industrial” ao “capitalismo cognitivo”; no entanto, o senhor considera esta categoria insuficiente para explicar o caráter da mudança que se opera na realidade do trabalho. Poderia falar um pouco mais sobre isso?
Carlo Vercellone -
A noção de trabalho imaterial, como a de trabalho informal, são, de fato, a meu ver, insuficientes para caracterizar a mutação atual do trabalho e podem dar lugar a interpretações redutoras da tese do capitalismo cognitivo. Explico. A categoria “trabalho imaterial” permite, sem dúvida, identificar certas mudanças maiores intervindas na organização atual da produção e ligadas à montagem dos serviços e à maneira pela qual a informação conduz a um distanciamento do trabalho em relação ao seu objeto.

No entanto, o acento posto unicamente sobre a desmaterialização da produção corre o risco de ocultar outros elementos cruciais da mutação atual da relação capital/trabalho. Em particular, o sentido desta mutação está longe de se reduzir somente à montagem do setor terciário e ao uso crescente de novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC), como o sugere certo número de teorias em termos de sociedade pós-industrial ou de revolução informacional.

Contrariamente a estas teorias, a meu ver, o traço essencial da transformação atual do trabalho não consiste unicamente na dimensão imaterial do trabalho ou, mais precisamente, de seu produto. Ele se encontra também, para utilizar a linguagem de Marx, na reconquista, da parte do trabalho vivo, da dimensão cognitiva do trabalho, uma dimensão que o desenvolvimento histórico do capitalismo sem cessar tentou aniquilar. Ora, é nesta reversão das relações de saber e de poder que caracterizam a organização fordista da produção que se encontra o principal fator da passagem do capitalismo industrial ao capitalismo cognitivo. Por este conceito eu designo um sistema de acumulação no qual o poder produtivo do trabalho intelectual e científico se torna dominante e o cacife central da valorização do capital conduz diretamente ao controle e à transformação do conhecimento numa mercadoria fictícia. Temos aí uma mutação da relação capital/trabalho de sentido inverso, mas comparável por sua importância àquela que Gramsci , durante os anos 1930, antecipara em Américanisme et fordisme.

Trabalho cognitivo

É por isso que o conceito de trabalho cognitivo me parece mais rico e preciso que o de trabalho imaterial. Ele permite uma análise mais rigorosa e completa do novo capitalismo e isso por três razões estreitamente interligadas.

A primeira é que o trabalho, como atividade cognitiva, se manifesta em toda atividade produtiva, material ou imaterial (estas duas dimensões eram, aliás, freqüentemente inextricáveis). O conceito de trabalho cognitivo permite dar melhor conta de uma mutação que atravessa o conjunto das atividades e dos setores produtivos.

A segunda razão é que o conceito de trabalho cognitivo permite estabelecer uma clara distinção entre conhecimento e informação, desembaraçando-se de todo fetichismo referente ao papel das novas tecnologias da informação e da comunicação (NTIC). É preciso insistir a este respeito num ponto crucial contra toda tentação de uma leitura de determinismo tecnológico. Os NTIC permitiram, sem dúvida, uma baixa formidável dos custos de transmissão da informação e favoreceram o desenvolvimento duma economia de redes. No entanto, a informação, sem a mobilização das faculdades intelectuais dos trabalhadores que interpretam e elaboram esses fluxos de informação para produzir e criar novos conhecimentos, permanece como recurso improdutivo, como o capital sem o trabalho.

A terceira razão é que o conceito de trabalho cognitivo permite compreender melhor a origem, o sentido e os desafios da formação do capitalismo cognitivo. Seu ponto de partida encontra-se num processo de difusão do saber engendrado pelo desenvolvimento da escolarização de massa e a alta do nível médio de formação. O conhecimento é sempre mais coletivamente compartilhado e esta evolução fez mudar a relação tradicional de subordinação do saber vivo incorporado na força de trabalho para um saber morto incorporado no capital fixo.

Transformação da organização social

Duas tendências mostram a amplitude desta transformação da organização social do trabalho nos países desenvolvidos.

A primeira remete à dinâmica pela qual a parte do capital nomeada intangível (educação e formação, saúde), incorporada essencialmente nos homens, ultrapassou a do capital material no estoque do capital e se tornou o fator principal do crescimento. Esta mudança significa que as condições da formação e da reprodução da força de trabalho são agora diretamente produtivas e que a principal fonte da “riqueza das nações” repousa cada vez mais numa cooperação produtiva situada em direção à organização das empresas. Disso também resulta – e estes elementos nos remetem à questão sobre a remuneração garantida – que não seja mais possível, por exemplo, considerar o estatuto da força de trabalho dita em formação com os antigos binóculos do modelo fordista, fazendo do estudante um inativo exercendo uma atividade improdutiva indigna de ser remunerada.

Enfim, temos aí outro elemento sistematicamente omitido pelos economistas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Isso significa que os setores mobilizadores do novo capitalismo do conhecimento correspondem sempre mais aos serviços coletivos assegurados historicamente pelo Welfare State. Trata-se de atividades nas quais a dimensão intelectual e afetiva do trabalho é dominante e que poderia ser o suporte dum modo de desenvolvimento alternativo fundado sobre as produções do homem pelo e para o homem (saúde, educação) e sobre o papel central de serviços universais fornecidos segundo uma lógica não mercadológica.

Uma divisão cognitiva do trabalho
A segunda tendência diz respeito à passagem, para grande número de atividades produtivas, de uma divisão tayloriana para uma divisão cognitiva do trabalho. Neste quadro, a eficácia não repousa mais sobre a redução do tempo operacional necessário para cada tarefa, mas se funda sobre os saberes e a polivalência de uma força de trabalho capaz de maximizar a capacidade de aprendizagem, de inovação e de adaptação a uma dinâmica de mudança contínua.

IHU On-Line - Na entrevista precedente, o senhor afirma que o novo modelo produtivo se fundaria sobre a “prescrição da subjetividade”. Como se caracteriza esta “prescrição da subjetividade” no novo modelo de organização social do trabalho e o que a diferencia do “trabalho fordista”? 
Carlo Vercellone -
Para responder a esta questão, é preciso compreender como o aumento da dimensão cognitiva e imaterial do trabalho conduziu a uma verdadeira desestabilização dos fundamentos sobre os quais, no capitalismo industrial, repousava a relação salarial.

No paradigma energético do capitalismo industrial, o salário era a contrapartida da compra, da parte do capital, de uma fração de tempo humano bem determinado posto à disposição da empresa. O empregador, no quadro deste tempo de trabalho, devia a seguir ocupar-se em encontrar as modalidades mais eficazes do uso desse tempo pago, a fim de destacar, para dizê-lo com Marx, do valor de uso da força de trabalho a maior quantidade possível de mais valia. E que, evidentemente, não ocorria por si, pois capital e trabalho têm, por essência, interesses contraditórios. Assim, como o reconhecia Taylor , os trabalhadores profissionais tinham interesse em minimizar a intensidade de seu trabalho, pondo em seu lugar o que ele chamava de ociosidade sistemática. Os princípios da organização científica do trabalho, graças à expropriação dos saberes laborais e à prescrição estrita do tempo e das modalidades operacionais, foram em seu tempo uma resposta dada a esta questão decisiva. Numa usina fordista, o tempo efetivo de trabalho, a produtividade das diferentes tarefas, bem como o volume da produção eram, na prática, planejados e conhecidos previamente pelos engenheiros dos escritórios de planejamento.

O valor é a criatividade
Mas tudo muda quando o trabalho, tornando-se cada vez mais imaterial e cognitivo, já não pode ser reduzido a um simples dispêndio de energia efetuado num tempo dado. De fato, no capitalismo cognitivo, a principal fonte do valor reside, agora, na criatividade, na polivalência e na força de invenção dos assalariados e não no capital fixo e no trabalho de execução rotineira.

O velho dilema referente ao controle do trabalho reaparece sob novas formas. O capital não só tornou-se novamente dependente dos saberes dos assalariados, mas ele deve obter uma mobilização e uma implicação ativa do conjunto dos conhecimentos e dos tempos de vida dos assalariados.

Desta situação inédita resultam duas conseqüências, que são também a fonte de novas contradições e de novos conflitos. De uma parte, o capital é constrangido a reconhecer aos assalariados uma autonomia crescente na organização do trabalho, mesmo se esta autonomia se limita à escolha do modo de atingir objetivos hétero-determinados. De outra parte, o trabalho cognitivo se apresenta como a combinação complexa de uma atividade intelectual de reflexão, de comunicação, de partilha e de elaboração dos saberes que se efetua tanto para fora, como no próprio quadro do trabalho imediato, direto, de produção no âmbito da empresa. Por isso, a eficácia do trabalho cognitivo necessita, do ponto de vista do capital, que os trabalhadores aceitem pôr à disposição suas dificuldades subjetivas por um tempo que, com muita freqüência, ultrapassa o oficialmente previsto pelo contrato de trabalho e que repercute nocivamente sobre sua vida privada.

Neste quadro, compreendem-se as razões pelas quais o controle sobre o trabalho já não pode mais seguir, na maioria dos casos, as modalidades diretas da prescrição taylorista das tarefas. Ele deve ceder lugar a mecanismos indiretos centrados no que eu chamo de prescrição da subjetividade e interiorização dos objetivos da empresa.

Esses mecanismos de controle indireto, orientados para a implicação da subjetividade, podem assumir diferentes formas. A obrigação do resultado, a pressão do cliente, a negociação por projetos, bem como a sujeição pura e simples ligada à precariedade, constituem as principais formas exploradas pelo capital para responder a este problema inédito. A precarização crescente da relação salarial que caracteriza hoje em dia os países desenvolvidos de fato nada tem de uma fatalidade econômica objetiva. Trata-se também e, sobretudo, de um instrumento pelo qual o capital, ante uma autonomia crescente do trabalho cognitivo ao nível da organização da produção, tenta impor e beneficiar-se gratuitamente desta implicação/subordinação total, e isso sem reconhecer e sem pagar o salário que corresponda a esse tempo de trabalho não integrado e não mensurável pelo contrato oficial de trabalho.

IHU On-Line - O senhor é um dos defensores de uma “remuneração social garantida”. Em que bases teóricas o senhor se apóia para defender esta proposição?
Carlo Vercellone -
Como acabo de mostrar, a nova condição salarial no capitalismo cognitivo nada tem de idílico. A proposta da remuneração ou renda social garantida (RSG) se propõe justamente opor-se ao desenvolvimento dessas novas formas de exploração, colocando certas bases para um modelo de desenvolvimento alternativo. Assim sendo, a proposta de um RSG suficiente e independente do emprego se apóia sobre dois principais fundamentos teóricos. O primeiro fundamento consiste em pensar, no sentido de K. Polanyi, o RSG como um instrumento de re-socialização da economia e de atenuação da coação monetária que é a relação salarial, ou seja, pensar condições sócio-institucionais que façam de modo que a força de trabalho se apresente como mercadoria fictícia. Dessa visão resultam dois corolários essenciais que caracterizam a formulação da proposta de RSG:

* o montante do RSG deveria ser idealmente estabelecido a um nível suficientemente elevado, para permitir pelo menos a cada um recusar a degradação das condições de emprego e de remuneração que, na França, por exemplo, fazem atualmente do salário mínimo em tempo parcial a norma referencial que regula o montante dos mínimos sociais, como o RMI (Renda Mínima de Inserção);

* em sua própria definição, o direito ao RSG pressupõe a manutenção e implica a expansão do sistema atual de garantias ligadas às instituições do Welfare  (pensões, indenização de greve, saúde).

O segundo fundamento consiste em pensar o RSG não como uma retribuição assistencial (como o RMI), mas como uma remuneração primária, isto é, como um salário social fundado sobre o reconhecimento de uma contribuição produtiva, atualmente não-remunerada. Esta concepção do RSG, enquanto remuneração primária, se apóia num reexame e numa extensão da noção de trabalho produtivo, e isso de um duplo ponto de vista:

* O primeiro se baseia no conceito de trabalho produtivo, concebido segundo a tradição dominante no seio da economia política, como o trabalho que gera um lucro e/ou participa na criação de valor. Trata-se aí da constante segundo a qual nós assistimos hoje em dia a uma extensão importante dos tempos de trabalho, fora da jornada oficial do trabalho, que estão diretamente ou indiretamente implicados na formação do valor captado pelas empresas. O RSG, como salário social, corresponderia, neste ponto de vista, à remuneração desta dimensão cada vez mais coletiva de uma atividade criadora de valor que se estende sobre o conjunto dos tempos sociais, dando lugar a uma enorme massa de trabalho não-reconhecido e não-retribuído.

* O segundo ponto de vista remete ao conceito de trabalho produtivo pensado como trabalho produtor de valor de uso, fonte de uma riqueza que escapa à lógica mercadológica e do trabalho assalariado subordinado. Trata-se, em síntese, de afirmar que o trabalho pode ser improdutivo de capital, sendo produtivo de riquezas e podendo encontrar sua contrapartida numa remuneração.

Para concluir, é preciso notar simultaneamente a relação de antagonismo e de complementaridade que essas duas formas contraditórias de trabalho produtivo entretêm no desenvolvimento do capitalismo cognitivo. A expansão do trabalho livre (trabalho benévolo, logicamente livre etc.) vai, de fato, de par com sua subordinação ao trabalho social produtor de valor, em razão precisamente das tendências que impelem para um esboroamento da separação entre trabalho e não trabalho, esfera da produção e esfera da reprodução.

A questão posta pelo RSG é não apenas aquela do reconhecimento desta segunda dimensão do trabalho produtivo, mas também e, sobretudo, aquela de sua emancipação da esfera da produção de valor e de lucro. Nesta visão, para retomar uma expressão de A. Gorz , “somente a incondicionalidade da remuneração poderá preservar a incondicionalidade das atividades que não têm todo o seu sentido, a não ser que elas sejam cumpridas por elas mesmas”, favorecendo, desta maneira, a transição para um modo de desenvolvimento não produtivista e socialmente sustentável, fundado sobre a primazia de formas de cooperação não mercadológicas. 

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