Edição 215 | 16 Abril 2007

Uma injustiça do tamanho do mundo. África é vítima de uma agressão global

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“O governo americano, por exemplo, espera solidariedade de todos na luta contra o terrorismo internacional que o ameaça. Ao mesmo tempo, recusa limitar as emissões de gases, contribuindo para apressar o desaparecimento físico de ilhas do Pacífico ou regiões de Bangladesh, povoadas por centenas de milhões de pessoas”, escreve Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, ex-secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco) em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 15-04-2007. Eis o artigo.

Os Estados Unidos e a Europa respondem por dois terços dos gases causadores da mudança climática, enquanto os 840 milhões de africanos mal atingem 3%. Em compensação, as secas e as inundações decorrentes do aumento da temperatura castigarão muito mais os africanos, inocentes de culpa, do que os ocidentais, vilões históricos do aquecimento global desde que a Revolução Industrial desencadeou o processo, dois séculos e meio atrás.

Ninguém é insensível à disparidade tão monstruosa entre causa e efeito. É sugestivo, porém, como a nacionalidade ou a classe fazem ver coisas diferentes ao olharem para o mesmo fenômeno.
Para um intelectual da conservadora Hoover Institution, ouvido por jornal americano, é como o naufrágio do Titanic. A natureza não seria democrática: os imigrantes da terceira classe dos porões do navio têm chance muito menor de se salvarem do que os passageiros da primeira no convés de cima. A comparação é duplamente pérfida ao insinuar não só que a culpa é da natureza, não dos homens, mas ao acentuar de lambuja que também as diferenças de classe e riqueza são uma fatalidade “natural”.

Já o presidente de Uganda, ao discursar em reunião da União Africana, sustenta que a África está sendo vítima de uma “agressão global”. É a única descrição que se ajustaria ao processo humano pelo qual o Alasca e a Sibéria se tornariam talvez aptas à agricultura às custas de acelerar a desertificação da África.

Quem tem mais razão é o africano. O flagelo que nos assola não é uma cega catástrofe da natureza, como a queda de meteorito que não se pode evitar ou desviar. Trata-se de alteração ocasionada pela ação humana, a primeira vez em que os homens se tornaram capazes de afetar o que parecia fora do alcance de nossas forças, a atmosfera e o clima.

Aí se encontra o caráter único do processo, a marca humana que permite falar em injustiça, e não em fatalidade. Não surpreende por essa razão que o governo dos Estados Unidos, responsáveis por mais de 30% das emissões, tenha teimado tanto em negar a evidência científica de que a mudança do clima não se devia a causas naturais, mas sim a humanas.

Reconhecer que a alteração é causada por homens e por alguns, mais que outros, é ter de admitir o princípio da “responsabilidade diferenciada”, consagrada na Convenção sobre Mudança Climática. É, portanto, direito internacional positivo, que não se pode discutir nem negar.

Da mesma forma, o compromisso assumido pelos signatários da Convenção (também os Estados Unidos) de ajudarem os mais vulneráveis com os custos da adaptação é questão de justiça, não só de solidariedade. Assim como a paz, a justiça e a solidariedade serão indivisíveis ou não serão nada. Isto é, não podem ser parciais, discriminatórias, egoisticamente seletivas.

O governo americano, por exemplo, espera solidariedade de todos na luta contra o terrorismo internacional que o ameaça. Ao mesmo tempo, recusa limitar as emissões de gases, contribuindo para apressar o desaparecimento físico de ilhas do Pacífico ou regiões de Bangladesh, povoadas por centenas de milhões de pessoas.

A agenda internacional é injusta, estúpida e ilegítima pois privilegia o terrorismo, a proliferação de armas (apenas de alguns), o Iraque, o Irã, e relega a tratamento secundário à mãe de todas as ameaças, a que afeta o planeta inteiro, até mesmo os ricos. Os britânicos admitiram sua responsabilidade histórica e estão dando um exemplo ao mundo. É uma tragédia que, nesse ponto, tenham tão pouca influência sobre seus aliados americanos.

Mas os Estados Unidos não são os únicos em dívida com a Terra. O Brasil, apesar do etanol e de equação energética mais limpa, é réu de culpa tríplice: pelas queimadas na Amazônia, quarta ou quinta maior fonte de gases causadores de efeito estufa; pela destruição das matas ciliares e desrespeito dos 20% da reserva legal de Mata Atlântica em muitos canaviais; por sistema desumano que obriga 200 mil colhedores de cana à exaustão, chegando às vezes à morte, a fim de alcançarem paga condigna.

Nessa injustiça do tamanho do planeta, o Brasil é vilão e vítima. Tem de fazer sua parte pois, como dizia Chesterton do pecado original, “estamos todos no mesmo barco e todos com enjôo”.

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