Edição 215 | 16 Abril 2007

Uma coisa é certa: a Terra continuará com o ser humano, ou sem ele.

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IHU Online

“Estamos numa crise de padrão civilizatório. Temos de mudar nossos modos de viver. Eles não são compatíveis com as possibilidades do Planeta, que é finito”, afirma o jornalista Washington Novaes, especializado nas questões ambientais. E completa: “A Terra tem limite”. A constatação foi feita em entrevista concedida por telefone para a redação da revista IHU On-Line na última semana, na qual ele reflete sobre a crise ambiental da Terra a partir dos dados apresentados no relatório do IPCC lançado em fevereiro desde ano. 

Bacharel em Direito e jornalista há mais de 45 anos, Novaes já foi repórter, editor, diretor e colunista em várias das principais publicações brasileiras. Ganhou diversos prêmios, entre outros, O Prêmio de Jornalismo Rei de Espanha, o troféu Golfinho de Ouro e o Prêmio Esso Especial de Meio Ambiente. Também foi consultor do primeiro relatório nacional sobre biodiversidade. Participou das discussões para a Agenda 21 brasileira. Atualmente, é colunista dos jornais O Estado de São Paulo e O Popular, de Goiânia. Entre suas publicações destacam-se A década do impasse: da Rio-92 à Rio + 10. São Paulo: Estação Liberdade, 2002 e Xingu: Uma flecha no coração. São Paulo: Brasiliense, 1985.

Washington Novaes já concedeu diversas entrevistas para a IHU On-Line. A mais recente foi publicada no dia 11 de janeiro de 2007 no sítio do IHU.

IHU On-Line - Quem são os reais culpados por esta mudança climática?
Washington Novaes -
As mudanças climáticas se devem fundamentalmente à acumulação de gases na atmosfera, que intensificam o efeito estufa, e provocam o aquecimento da Terra. Nas últimas décadas, a temperatura da Terra aumentou quase 0,8ºC. Isso tem várias conseqüências muito graves. A previsão do IPCC é de que se as emissões continuarem no ritmo em que elas vão, ao longo deste século nós teremos um aumento de temperatura entre 1,8 e 4,5ºC, com probabilidade de ficar entre 2 e 3,5ºC. Isso terá conseqüências muito fortes na intensificação de secas, de inundações, de furacões e de elevação do nível do mar. Isso é o que o último relatório do IPCC diz, de certa forma reiterando o que ele vem alertando desde 1988. A diferença agora é que só entraram no relatório afirmações que tem praticamente o consenso de todos os mais de 2 mil cientistas que participam da elaboração desse relatório. E que afirmam que o que o relatório diz tem mais de 90% de probabilidade de acontecer. Essa é a diferença do relatório em relação aos relatórios anteriores. Tanto que não foram incluídas ainda no relatório questões como o derretimento de gelos polares e dos gelos da Groenlândia, principalmente, porque ainda há algumas divergências entre os cientistas quanto à extensão desse problema. Mas eles estão acontecendo e provavelmente vão entrar em um relatório do grupo 2 de trabalho do IPCC, que deve sair agora em abril e que provavelmente vai causar nova agitação, como causou esse de fevereiro.

IHU On-Line - O que politicamente e economicamente está envolvido neste relatório?
Washington Novaes -
Praticamente junto com o relatório do IPCC, saiu um outro relatório coordenado pelo ex-economista chefe do Banco Mundial, Sr. Nicholas Stern. Esse relatório diz que as mudanças já estão acontecendo e que se não forem enfrentadas com muita decisão e muita urgência nós poderemos ter uma recessão econômica maior do que a recessão do início da década de 1930, que poderá implicar uma redução do produto bruto mundial em até 20%. Nós só temos uma década para enfrentar essas questões. Mas, para isso, será preciso aplicar, a cada ano, em torno de 1% do produto bruto mundial. Isso significaria uns 400 bilhões de dólares por ano. Ou, então, as conseqüências serão aquelas indesejáveis.  

IHU On-Line - Mas temos como conciliar crescimento econômico com desenvolvimento sustentável?
Washington Novaes -
Depende do formato de crescimento. Com um crescimento descuidado, que não leve em conta essas questões, certamente não é possível conciliar. Há algum tempo, Edward Wilson , que é considerado o “papa” da biodiversidade, fez o seguinte cálculo: vamos admitir que o crescimento econômico seja a solução para o mundo e que esse crescimento seja de 3,5% ao ano, que é relativamente modesto, porque se pede de 7 a 10%, como a China. O produto bruto mundial hoje é da ordem de 40 trilhões de dólares anuais. Se ele crescer 3,5% ao ano, diz Edward Wilson, nós chegaremos, até o fim desta década, com um produto bruto mundial de 158 trilhões de dólares. Só que isso não é possível. Não há recursos e serviços naturais capazes de suportar esse crescimento. Então, é preciso repensar os formatos de desenvolvimento. Não podemos pensar em pura e simplesmente crescer o produto bruto, da forma como nós estamos fazendo, com o consumo de recursos que, segundo o relatório Planeta Vivo 2006, que é do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e do WWF, já está 25% além da capacidade de reposição da biosfera terrestre. Ele é insustentável. Não há como sustentar um crescimento nesse formato. É preciso pensar em formatos de desenvolvimento que economizem recursos, que os reutilizem e que mudem os formatos existentes.

IHU On-Line - Um cientista chamado Tad Murty disse que a ação humana não tem qualquer relação com a mudança climática. O que o senhor pensa disso?
Washington Novaes -
Não é exatamente isso que ele disse. O que ele disse é que uma grande parte do aquecimento se deve à ação do sol. Mas, nisso, ele é uma minoria insignificante. Porque no painel estão mais de 2 mil cientistas do mundo inteiro que foram unânimes no que está dito ali, que mesmo que haja alguma influência do sol no aquecimento, não se descarta a colaboração humana para isso. O acúmulo de gases na atmosfera aumentou de 280 partes por milhão, antes da revolução industrial, para perto de 390. Isso certamente tem um efeito grande no aquecimento da Terra.  

IHU On-Line - O senhor acredita que o controle de natalidade possa ser uma solução?
Washington Novaes -
A curto prazo ele não muda nada. Nós já temos na Terra cerca de 6 bilhões e meio de pessoas. A taxa de crescimento populacional está hoje praticamente zerada. Ela diminuiu muito no mundo inteiro e está próxima da taxa de reposição. O que acontece é que, por efeito do forte crescimento que houve, principalmente nas décadas de 1960, 1970 e 1980, hoje há um número muito grande de mulheres em idade fértil. Então, a previsão mais otimista dos demógrafos da ONU é de que se chegue a 2050 com 8 bilhões e meio de pessoas ou até 9 bilhões e meio. Isso, no curto e no médio prazo, não terá grande influência. No entanto, se for reduzida a população da Terra, certamente o consumo de recursos diminuirá, mas isso pode ser feito também por outros caminhos, não necessariamente só por meio do controle de natalidade.   

IHU On-Line - Que caminhos seriam esses?
Washington Novaes -
Os caminhos são modelos de desenvolvimento que poupem recursos. Por exemplo, nós podemos mudar as matrizes energéticas. Hoje, a matriz energética do mundo depende 80% do petróleo, do gás e do carvão mineral, que são altamente poluidores. É possível mudar essa matriz para formatos que deixem de emitir esses gases para a atmosfera ou que os reduzam substancialmente. O que os especialistas recomendam é que haja uma redução de, pelo menos, 50% nas emissões que temos hoje. E o que está previsto, ao contrário, é que elas aumentem 50% nas próximas décadas. É possível pensar em modelos de crescimento que poupem recursos, que reduzam o desperdício. Recentemente saiu um estudo mostrando, por exemplo, que nos EUA de todos os recursos naturais que são utilizados na transformação industrial seis meses depois só 1% deles ainda continua sendo utilizado. É uma vida muito curta. Nós estamos jogando tudo fora. Estamos descartando um milhão de sacos plásticos por minuto. Isso é uma barbaridade! Estamos desperdiçando tudo, até o lixo tecnológico. Na Europa são 14 quilos por pessoa, por ano. A quantidade de lixo que nós produzimos no Brasil é uma barbaridade. Temos que mudar nossos modelos de crescimento. Não precisa ser, necessariamente, um crescimento econômico que implique maior consumo de recursos naturais. Porque isso é insustentável. Recentemente, também saiu um estudo da Organização para Alimentação e Agricultura, da ONU, a FAO, que se chama “La sombra Alongada de La Ganaderia”, ou seja, a sombra alongada das culturas de carne, que mostra que é absolutamente insustentável essa situação. Ela tem um efeito ambiental terrível, e é preciso reduzir a metade do impacto, conforme relata esse estudo da ONU. O que está previsto é que dobre esse impacto até 2020. Tudo isso precisa ser repensado, mudado.

IHU On-Line - O que cada um pode fazer a partir dessas informações?
Washington Novaes -
Pode consumir menos energia, menos recursos, pode deixar de usar sacos plásticos, pode produzir menos lixo, pode usar produtos que não exijam muito da biosfera terrestre. Pode economizar com seu carro, manter o carro regulado ou preferir um transporte coletivo, andar de bicicleta, ou andar a pé. São muitos caminhos pelos quais cada um pode contribuir.

IHU On-Line - O senhor concorda que a questão ambiental não entrou na agenda deste governo?
Washington Novaes -
Eu acho que ela não é prioritária. A ministra, Marina da Silva, do meio ambiente falou muito em transversalidade, ao se referir ao fato de a questão ambiental permear todas as áreas do governo. Mas isso não aconteceu. As outras áreas não tomaram conhecimento disso. A ministra foi derrotada na questão dos transgênicos, no Congresso, numa ação comandada pela própria Casa Civil da Presidência da República e pelo partido dela, o PT. Ela foi derrotada na questão de importar pneus usados do Uruguai, foi derrotada na questão de exportar álcool para outros países para reduzir a poluição deles e reduzir a proporção de álcool na gasolina aqui, aumentando a poluição aqui. E agora na questão desse plano de aceleração do crescimento que vai ambientalmente na direção oposta que ele deveria ir. Por exemplo, prevê a construção dessas megahidroelétricas. Há um estudo da Unicamp, recente, que mostra que podemos economizar, pelo menso, 30% da energia que estamos consumindo. Se fizermos repotenciação de usinas que já estão com seu prazo vencido, ganhamos mais 10%, mas não se toma conhecimento disso. Não há um plano de eficiência energética nem sequer se discute a matriz energética com a sociedade. É a cultura da megaobra, e a convicção de que isso leva a um crescimento do produto interno bruto. Isso sempre faz lembrar muito o professor José Lutzemberger , que dizia que não há nada melhor para o crescimento do PIB do que um terremoto, porque a destruição não é contabilizada e a reconstrução faz aumentar o PIB. Então, é um crescimento que não considera limites. O Kofi Annan , que até poucas semanas atrás era o secretário geral da ONU, cansou-se de dizer que hoje o problema fundamental da humanidade não está no terrorismo, como parece. Está nas mudanças climáticas e nos padrões insustentáveis de produção e consumo, que já estão 25% além da capacidade de reposição da biosfera terrestre. Essas é que são as questões reais que ameaçam a própria sobrevivência da humanidade.

IHU On-Line - Alguma vez a questão ambiental entrou na agenda de algum governo? Ela foi prioridade?
Washington Novaes -
Em países bem pequenos. Por exemplo, o Butão, na Ásia, faz o que ele chama de o cálculo do PIB verde. Tudo o que é perda de recurso é contabilizado diminuindo o PIB. Aqui não acontece isso. Os serviços e recursos naturais não entram na contabilidade. Há alguns anos, um grupo na Universidade da Califórnia, coordenado por um economista argentino chamado Robert Constanza, fez um estudo propondo que os recursos e serviços que a natureza proporciona tivessem o seu valor contabilizado a partir do seguinte cálculo: quanto custaria substituir a fertilidade natural do solo por insumos químicos? E quanto custaria substituir os serviços prestados gratuitamente pelos recursos hídricos, ou pelo equilíbrio do clima proporcionado pela vegetação? Chegou-se à conclusão de que os recursos e serviços naturais teriam um valor até três vezes maior que o produto bruto mundial. Só que isso não é contabilizado. Os recursos e serviços naturais não têm um valor econômico. Só contabilizamos o que esgota esses recursos. 

IHU On-Line - O ser humano é uma espécie letal?
Washington Novaes -
Não sei se é letal, mas ele está se metendo em altas enrascadas. E terá que lutar muito para que elas não tragam situações ainda mais insustentáveis. Já estamos em uma situação muito difícil, e vamos ter que trabalhar muito para impedir que as mudanças climáticas sejam ainda mais graves, para nos adaptarmos às mudanças que já estão ocorrendo, para construir sistemas de defesa que precisam ser construídos, para mudar nossos padrões de consumo. Tudo isso nós já vamos precisamos fazer. E se o ser humano não for capaz, ele vai sofrer muito. Não sei se ele vai ser extinto um dia, ou não. Não tem como prever isso. Uma coisa é certa: a Terra continuará com o ser humano, ou sem ele. Nós não somos a única possibilidade de existência na Terra. Ao contrário. É preciso que tenhamos consciência disso e mudemos a nossa maneira de viver. Estamos numa crise de padrão civilizatório, por isso é necessário que mudemos nossos comportamentos. Esses não são compatíveis com as possibilidades do Planeta, que é finito. Voltando ao Lutzemberger, “a Terra não é um lugar que tenha, de um lado, um buraco do qual se possa extrair infinitamente recursos, e de outro lado, um outro buraco imenso, no qual possamos colocar todo o nosso lixo, nossos dejetos e resíduos”. Não é assim: a Terra tem limite.     

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