Edição 214 | 02 Abril 2007

Bach e a dramaturgia da conversão

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IHU Online

Márcia Junges, uma das integrantes da equipe de redação da revista IHU On-Line, do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), escreveu o breve texto a seguir a partir da leitura do Cadernos Teologia Pública nº 27, de Christoph Theobald, Música e teologia em Johann Sebastian Bach.

Sobre o compositor alemão se destacam os eventos promovidos pelo IHU semana passada, na programação Páscoa 2007: Cultura, arte e esperança. Tratam-se das audições comentadas 1) A expressão musical da fé em Bach e Mozart – audição comparada do Credo das Missas BWV 232, de Bach, e K 427, de Mozart, 2) Himmelfarhtsoratorium (Oratório de Ascensão) BW 11, de Bach e 3) A paixão de Cristo segundo São João – BWV 245, de Bach, todas conduzidas pela Prof.ª Dr.ª  Yara Borges Caznok, da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Theobald é teólogo jesuíta, professor de Teologia Fundamental e Dogmática na Faculdade de Teologia do Centre-Sèvres, em Paris, em questões de teologia fundamental e de história da exegese. É redator-chefe adjunto da revista Recherches de Science Religieuse. Ele é autor, entre outros livros, La Revélation. Paris:Atelier, 2006 e está para sair pelas Du Cerf, o livro Le christianisme comme style une manière de faire de la théologie en post-modernité (O cristianismo como estilo. Uma maneira de fazer teologia a pós-modernidade).

Jornalista graduada pela Unisinos, Junges cursou pós-graduação em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e mestrado em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) com a dissertação A crítica de Nietzsche à democracia: a grande política como tentativa de superação do niilismo. Em 16-10-2006 apresentou o IHU Idéias baseado nas conclusões de sua pesquisa de mestrado. Sobre o tema, concedeu entrevista à IHU On-Line edição 204, de 13-11-2006. A edição 143 da IHU On-Line, de 30-05-2005, traçou o perfil de Junges no IHU Repórter, disponível para download na página do IHU, www.unisinos.br/ihu.

De acordo com Martin Lutero, depois da palavra de Deus, a única coisa a ser exaltada legitimamente era a música. A definição luterana de fé como escuta faz-nos pensar na importância da música para além do fenômeno estético em si, mas como uma forma de transcendência, de estabelecer uma ponte com o “incomunicável”, com o incomensurável, com o infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Para usar uma das idéias desenvolvidas por Theobald, a monadologia de Johann Sebastian Bach , em seu discurso musical, “exige do ‘ouvinte implícito’ que ele entre no mundo sonoro fortemente estruturado e perfeitamente fechado” . Esse mundo sonoro consegue despertar em nós a consciência de que existe uma tensão paradoxal entre “o Espírito realmente dom, e a fraqueza, sempre persistente, da carne” . Essa tensão permanente só pode ser unificada pela fé, e a música é o veículo dessa unificação. Mais do que ouvir a música, é preciso fruí-la, quando as experiências estética e religiosa se conectam. Uma hospitalidade ilimitada é o que o ouvinte pode esperar.

A experiência de escuta como ato de fé “é a chave teológica de um deslocamento no âmago da estética que, no luteranismo, valoriza sobretudo o ouvido e a música, fazendo passar a vista e as práticas visuais para um segundo plano” . Música é presença, e Theobald enfatiza a impossibilidade de tentar fixá-la, “frustrando qualquer desejo indiscreto de ver ou apoderar-se do ser de Deus” . A teologia do estilo de Bach situa-se nesse contexto. Compositor barroco luterano, esse Cantor  proporciona uma “abertura” ao mundo sonoro. Aí estamos prontos para participar da metamorfose do que é uma verdadeira obra de arte, não aquela que se propõe uma representação do mundo, mas sim a sua fluidez, sua mutabilidade expressa pelo som, pela palavra, pelo dito e por podermos “ouvir o que os ouvidos próprios jamais haviam escutado” .

Theobald explica que o discurso musical bachiano tem como característica “dar lugar ao ouvinte e propor-lhe algo, não uma manifestação sensível de visão exuberante da graça como no barroco católico, mas uma dramaturgia de conversão, tornando-o participante da concepção de um novo imaginário ao mesmo tempo estético e espiritual” . Ouvir é entrar em comunhão através dos sons, e a circularidade característica do universo barroco produz um efeito que abre-se à “presença do infinito pelas descontinuidades que introduzem especialmente os silêncios, as quebras de ritmo, a alternância de movimentos ascendentes e descendentes, os cromatismos ou as relações harmônicas surpreendentes, ou, ainda, os contrastes de estilos” .

Mas engana-se quem pensa que apenas um cristão ou um luterano pode fruir a experiência do belo de forma desinteressada, kantianamente, pois como afirma Theobald, “se o dom que a música representa é realmente gratuito, é possível relativizá-lo por referência ao despojamento último de uma existência, o qual permanecerá para sempre como seu segredo: ‘a música é a única coisa que deve ser exaltada após a Palavra de Deus” . A música como “expressão carnal do dom absolutamente desinteressado de Deus”  comunica a gratuidade super-abundante, que nos possibilita nela entrar como ouvintes livres. Para finalizar com um intrigante questionamento de Theolbald: “Não ficaria assim bem claro que a distinção entre a experiência do belo e a eventual conversão do ouvinte resulta de razões teológicas” ?

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