Edição 214 | 02 Abril 2007

A Teologia da Libertação: será que ela não crê demasiadamente nas promessas modernas e na sua gramática hermenêutica?

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Luiz Felipe Pondé, filósofo, em entrevista concedida por e-mail, afirma que “a teologia na América Latina deve ocupar espaços na academia, na mídia, e para isso ela precisa sair do gueto semântico e hermenêutico em que a (justa) luta social e política a acabou colocando”. E continua: “a formação dos teólogos deve sair do repertório dependente da análise sociopolítica e ler os pais fundadores do cristianismo e não só aquilo que reforça sua semelhança com a militância política na América Latina”.  E levanta uma questão: será que a teologia da libertação não “peca por crer demasiadamente nas promessas modernas e na sua gramática hermenêutica”?

Pondé leciona no Departamento de Teologia da PUC-SP e na Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Álvares Penteado. Graduado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia e em Filosofia Pura pela USP, é mestre em História da Filosofia Contemporânea pela USP e em Filosofia Contemporânea pela Université de Paris VIII, França. Doutor em Filosofia Moderna pela USP e pós-doutor pela Universidade de Tel Aviv, Israel, escreveu O homem insuficiente (São Paulo: Edusp, 2001); Crítica e profecia. Filosofia da religião em Dostoievski (São Paulo: Editora 34, 2003); Conhecimento na desgraça. Ensaio de epistemologia pascaliana (São Paulo: Edusp, 2004); e Do pensamento no deserto, que será em breve lançado pela Edusp.

Na 133ª edição da IHU On-Line, de 21-03-2005, cujo tema de capa foi Delicadezas do mistério. A mística hoje, Pondé concedeu com exclusividade a entrevista “A mística judaica”. Suas contribuições mais recentes à IHU On-Line aconteceram com a entrevista Parricídio, niilismo e morte da tradição, quando falou sobre Dostoiévski, na edição 195, de 11-09-2006, e na edição especial do Natal/2005, número 209, de 18-12-2006, sobre as razões de ainda ser cristão, hoje.

IHU On-Line - A recente notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre duas obras de Jon Sobrino coloca novamente em pauta a Teologia da Libertação. Por que motivo esta teologia, que alguns chegam a considerar defunta, continua provocando tanta inquietação?
Luiz Felipe Pondé -
Porque ela é muito representativa da teologia latino-americana e do terceiro mundo em geral. As últimas décadas formaram muitas gerações do clero e do laicato ativo sob a tutela da Teologia da Libertação. Não tem nada de caduca em termos práticos e da microfisiologia do cotidiano teológico nas comunidades religiosas, de leigos, ou acadêmicas. A Teologia da Libertação continua hegemônica, pelo menos no seu viés de análise socioanalítico.

IHU On-Line - Uma das grandes dificuldades da ortodoxia católica com respeito à Teologia da Libertação é a afirmação de uma “nova hermenêutica” que envolve uma ortopraxis. Jon Sobrino fala em “hermenêutica da práxis”. Para ele, não há como compreender Jesus fora da prática de seu seguimento. Qual o alcance dessa reflexão teológica e em que medida ela provoca uma mudança na reflexão cristológica em curso?
Luiz Felipe Pondé -
Toda hermenêutica fundada na prática pode soar excessivamente aberta e relativa para quem observa a pós-modernidade como locus essencial do niilismo hermenêutico e ético. Uma hermenêutica muito dependente da prática pode soar dissolutiva das identidades em questão (social, política ou teológica). Por exemplo, o judaísmo é uma religião muito aberta a uma hermenêutica fincada na prática, mas isso se dá num universo de uma religião que se move no campo étnico, o que a protege da dissolução hermenêutica. E mais: sendo uma religião marcada por rituais e ritos mínimos que cobrem o cotidiano inteiramente, o avanço da prática é todo o tempo parametrizado pelos fundamentos "litúrgicos dos leigos em seu dia-a-dia" e étnicos. O cristianismo sempre foi fonte de controvérsias teológicas e cristológicas. Vejo esse caso como um exemplo nessa longa história.

IHU On-Line - Na recente notificação sobre as obras de Jon Sobrino há um questionamento aos pressupostos metodológicos utilizados pelo teólogo de El Salvador, em particular a idéia da “Igreja dos pobres” como lugar teológico fundamental.
Luiz Felipe Pondé -
Na recente notificação sobre as obras de Jon Sobrino há um questionamento aos pressupostos metodológicos utilizados pelo teólogo de El Salvador, em particular a idéia da "Igreja dos pobres" como lugar teológico fundamental.

IHU On-Line - Como situar a centralidade da questão dos pobres na Teologia da Libertação?
Luiz Felipe Pondé -
Os pobres são a face do Cristo que sofre. Neste sentido, os pobres carregam uma espécie de estigma de Cristo. Esse processo é construído a partir de uma corrente interpretativa que encontra raiz nas discussões do próprio cristianismo nascente, seja em Antioquia, seja no viés 'revolucionário-político' de um certo judaísmo do Segundo Templo. Acho que não podemos esquecer a influência, ainda que hoje quisesse ser esquecida, do ideário marxista na hermenêutica na América Latina nas últimas décadas. Está aí, inclusive, a aliança entre setores católicos da Teologia da Libertação e a chamada "esquerda" política. Para o Vaticano não se pode situar socialmente a face de Cristo como sendo fruto de um lócus econômico específico. Penso também que uma vantagem perigosa de uma teologia dos pobres é que ela propicia a natureza humana situar o problema do mal numa estrutura exterior a si mesma, isto é, 'culpa' a estrutura social pelo mal e pelo sofrimento de Cristo, o que vai contra a grande linhagem cristã que suspeita da natureza humana como mentirosa e alienada com relação a sua própria maldade. Em poucas palavras: aqueles que vêem a face de Cristo nos pobres se sentem como que liberados do fato de serem maus porque o mal está na exploração pela elite. Acho que se faz necessário uma análise dos desdobramentos da Teologia da Libertação para além de sua identidade no corpo da tradição cristã, e ver com que setores ela dialoga na pós-modernidade. Acho que, com esse olhar, a veremos como um corpus um tanto ingênuo com relação à ameaça de transformarmos toda reflexão em pastoral auto-ajuda e baratear o debate conceitual, típico da má pós-modernidade. Isso nada tem a ver com recusa da prioridade em lutarmos contra a pobreza em si (isso é profetismo hebraico justo). Esse ponto é central para o Vaticano. O erro estaria em concentrar o pensamento teológico na face dos pobres e não da face de Cristo, que pode surgir de modos inesperados, por exemplo, no processo de querermos identificar culpados sociais pela pobreza e nas alianças que essa luta pode exigir ao longo da história.

IHU On-Line - Em recente artigo, o teólogo Clodovis Boff assinalou que a Conferência de Aparecida não poderá ser a repetição, ainda que atualizada, das Conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo, mas deverá, sim, inovar em sua forma e acento, face aos novos “sinais dos tempos”. Será o caso? Por quê?
Luiz Felipe Pondé -
Não será igual porque hoje o Vaticano e parte do clero da América Latina estão em tensão com a teologia sócio-analítica. Penso que poderá haver um conflito entre um viés antropológico-moral (do Vaticano) e um viés político-social da América Latina. Não acho que será simplesmente crise. A Igreja tem histórico de crises. Se souber acessar via seu corpo de integrantes à sabedoria milenar e não se deixar rasgar excessivamente pelo viés sociopolítico, penso que o resultado será muito positivo em termos de equilibrar uma sensibilidade da periferia do capitalismo com uma sensibilidade do centro do capitalismo. Os determinantes econômicos da vida são evidentes. Não creio que o Vaticano desconheça isso, mas ele opta por ser fiel à tradição que antecede a leitura das raízes de crítica social do judaísmo e cristianismo em chave teo-sociológica. Esta vertente, creio, peca por crer demasiadamente nas promessas modernas e na sua gramática hermenêutica.

IHU On-Line - Quais são as possibilidades e os limites da criação de novos espaços para o exercício da reflexão teológica latino-americana, para uma teologia cada vez mais pública?
Luiz Felipe Pondé -
Acho que a teologia na América Latina deve ocupar espaços na academia, na mídia etc., e para isso ela precisa sair do gueto semântico e hermenêutico em que a (justa) luta social e política a acabou colocando. A formação dos teólogos deve sair do repertório dependente da análise sociopolítica e ler os pais fundadores do cristianismo e não só aquilo que reforça sua semelhança com a militância política na América Latina. Nesse sentido, penso que uma idéia seria, por exemplo, além da preocupação com o diálogo inter-religioso, uma concentração na discussão que usa o vocabulário religioso clássico, como falar diretamente de autores que se identificam com a existência de Deus e pô-los em contato com problemáticas atuais e cotidianos. A teologia tem que deixar de ter medo de falar no mundo da 'inteligência' sem se esconder na barra da saia da sociologia de sensibilidade marxista ou neomarxista. Isso nada tem a ver com ser anti-sofrimento social. Só a dicotomia da leitura sócio-analítica vê o mundo dividido em dois de modo tão banal. O cristianismo não pode ser reduzido a uma leitura de pobres contra ricos ou uma religião da terra.

IHU On-Line - Quais são as perspectivas para a 5ª Assembléia da Conferência Episcopal Latino-Americana em Aparecida, depois da “notificatio” sobre a obra de Jon Sobrino?
Luiz Felipe Pondé -
Acho, como disse acima, ainda que haja tensão, não acho que isso será destrutivo. A Igreja na América Latina já está em processo de conscientização dos limites da América Latina. Os determinantes políticos podem atrapalhar muito, principalmente enquanto a Igreja se deixar contaminar por essas manias bobas de 'direita e esquerda', 'reacionário e progressista', termos hoje em dia apenas retóricos. Penso que a Igreja deve evitar essa polarização entre América Latina dos pobres e oprimidos e Igreja da Europa do opressor, inclusive porque o Mal não é estruturalmente social e a Igreja é mais sábia, se souber acessar sua tradição reflexiva, do que as modas intelectuais dos últimos 200 anos. Acho que um passo importante será a superação do repertório da militância política em favor de um discurso mais profundo e que não se esconde atrás da promessa de que as soluções são simplesmente econômicas. Mas estamos no início do debate. Muito ainda vai acontecer e vai durar anos, como tudo na história da Igreja. Acho que a Teologia da Libertação não é uma caduca inútil. Temos muito a aprender com sua sensibilidade concreta sobre o sofrimento localizado. Acho que o Vaticano se preocupa com os desvios teológicos que ela implica em termos da identidade católica. O debate é bom e salutar, contanto que não fujamos dos impasses.

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