Edição 214 | 02 Abril 2007

“É necessário que a teologia saia à praça pública. As possibilidades são imensas”

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IHU Online

De acordo com o teólogo José Maria Vigil, em entrevista à IHU On-Line concedida por e-mail, “enquanto houver pobres ou injustiçados no mundo e houver simultaneamente fé, terá de haver ‘fé libertadora’, e sua auto-reflexão será a teologia da libertação”.

Vigil é licenciado em Teologia pela Universidad Pontificia de Salamanca. Na Universidade de Santo Tomás de Roma, obteve a licenciatura em Teologia Sistemática. Foi ordenado sacerdote em 1971. Seu livro Espiritualidad de la liberación foi escrito em parceria com Pedro Casaldáliga (Sal Terrae: Santander, 1992). Vigil costuma dizer que nasceu uma vez em Zaragosa, Espanha, e uma segunda vez em Manágua, Nicarágua. Durante treze anos, trabalhou na Nicarágua e, atualmente, mora e trabalha no Panamá.
José Maria Vigil é autor do livro Teologia do Pluralismo Religioso. Para uma releitura pluralista do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006. O livro é apresentado por Andrés Torres Queiruga e tem um posfácio de José Comblin. Ele publica há treze anos, anualmente, a Agenda latino-americana (em seis idiomas e em 18 países).

Faz parte da Comissão Teológica da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo) e é o idealizador e realizador dos "Servicios Koinonía", um site que serve de ponto de encontro com a Teologia e a Espiritualidade da Libertação Latino-americanas (www.servicioskoinonia.org). Vigil foi entrevistado sobre o lugar da Igreja na sociedade contemporânea em função dos 40 anos da Encíclica Gaudium et Spes, tema do número 157 da IHU On-Line, de 26-09-2005.

IHU On-Line – A recente notificação da Congregação para a Doutrina da Fé sobre duas obras de Jon Sobrino coloca novamente em pauta a Teologia da Libertação. Por que motivo esta teologia, que alguns chegam a considerar defunta, continua provocando tanta inquietação?
José Maria Vigil –
Obviamente, porque não está morta. Mesmo que alguns tenham proclamado, nos anos 1990, que já teria morrido, o novo Papa tem tido que se preocupar com ela nestes últimos dias, e eu penso que não é que tenha ressuscitado: a teologia em questão talvez seja dessa classe de “mortos que nunca morrem”. Porque, como temos dito tantas vezes, enquanto houver no mundo pobres (ou “injustiçados”, mais ampla e profundamente) e houver simultaneamente fé, haverá, terá de haver, “fé libertadora”, e sua auto-reflexão será a teologia da libertação, com esse ou qualquer outro nome.

IHU On-Line – Uma das grandes dificuldades da ortodoxia católica com respeito à teologia da libertação é a afirmação de uma “nova hermenêutica” que envolve uma ortopraxis. Jon Sobrino fala em “hermenêutica da práxis”. Para ele, não há como compreender Jesus fora da prática de seu seguimento. Qual o alcance dessa reflexão teológica e em que medida ela provoca uma mudança na reflexão cristológica em curso?
José Maria Vigil –
Sim, não é Sobrino quem dá essa relevância à praxis; é toda a teologia da libertação que o diz e que o pratica, e toda a Igreja latino-americana (a que é verdadeiramente latino-americana, não a que está na América Latina, mas pensa e sente e vive com padrões forâneos ). Foi já Medellín que introduziu essa “interpretação do cristianismo a partir da práxis”. Com o qual não introduzia nada novo; simplesmente recuperava um traço muito original do cristianismo, que foi silenciado e esquecido quando o cristianismo passou pelo filtro da cultura grega.

Veja, até nos dias de Pio XII , nos anos imediatamente anteriores ao Concílio, na encíclica “Mystici Corporis”  desse Papa, por exemplo, se você não mexe com a doutrina oficial, não acontece nada grave a respeito da sua identidade cristã; você pode ser um criminoso, mas não deixa de ser cristão; será um mau cristão, mas indiscutivelmente cristão. Pelo contrário, se você é um “santo” e entrega diariamente sua vida para os irmãos, mas duvida que se possa afirmar que “Maria é Mãe de Deus”, aí você caiu no abismo, e de nada lhe servirá a sua santidade, porque nem cristão poderá ser considerado. É que na visão tradicional (mais de milênio e meio) o importante era a opinião, o pensamento, a aceitação intelectual da doutrina, ou seja, a “orto-doxia”, a “correta-opinião”. O compromisso na vida, o amor efetivo... podia ser desculpado. A Teologia da Libertação resgatou, entre outras muitas coisas, a primazia da “orto-praxis”, da “correta-prática”.

Então, ser cristão já não é, sobretudo, crer em uma doutrina, mas viver uma prática. Já não é recitar o credo, mas “viver e lutar pela Causa de Jesus”, conforme expressão de Boff . O mais importante não é “crer em Jesus”, mas “crer como Jesus”, se virar na vida como ele se virou...

Esta guinada da interpretação do cristianismo, da doutrina para a prática, é também outra das coisas pelas quais a Teologia da Libertação “continua provocando tanta inquietação”, como dizia a pergunta anterior.

IHU On-Line – Na recente notificação sobre as obras de Jon Sobrino há um questionamento aos pressupostos metodológicos utilizados pelo teólogo de El Salvador, em particular a idéia da “Igreja dos pobres” como lugar teológico fundamental. Como situar a centralidade da questão dos pobres na teologia da libertação?
José Maria Vigil –
Jon diz que, mais do que as outras acusações da notificação – que parecem mais dogmáticas, mais susceptíveis de clássicas heresias -, é a centralidade que a Teologia da Libertação reclama para os pobres, o que no fundo mais inquieta em Roma. Com efeito, a Teologia da Libertação reclama que na Bíblia, no evangelho, em Jesus, na sua mensagem, os pobres, como símbolo de todos os “injustiçados”, ocupam não um lugar importante, derivado ou secundário, senão um lugar central, primário e onipresente. De forma que não entende bem o cristianismo quem acha que os pobres, o comportamento para com eles, pertence à segunda parte, à parte moral, às conseqüências da identidade cristã, não a sua própria essência. A Teologia da Libertação pôs em prática algo que tinha sido descoberto nos estudos bíblicos e teológicos universitários mais avançados várias décadas antes: que o amor-justiça apaixonado é característica de Deus, do nosso Deus bíblico. Não capta corretamente a Deus quem não inclui os pobres nessa mesma experiência religiosa. Só um Deus que tem um projeto e uma exigência de amor-justiça para os pobres é Deus cristão e bíblico.

A experiência religiosa é diferente nas diversas religiões do mundo: umas descobrem o caminho a Deus na natureza, outras na interioridade silenciosa da consciência. A peculiaridade, o “carisma” da corrente religiosa do judeu-cristianismo é esse amor-justiça pelos pobres. Isso é central para, nós, cristãos. Então, essa recuperação da centralidade dos pobres, não só na prática moral, mas na própria concepção de Deus, ou seja, uma centralidade total, transversal a todo o patrimônio simbólico do cristianismo, recuperada agora e reivindicada pela Teologia da Libertação, depois de milênio e meio de esquecimento em favor de uma centralidade teórico-espiritualista, não é uma pedrinha no sapato, mas a lembrança constante de que a teologia da qual falamos pertence a “outro paradigma”, a outro tipo de cristianismo – que é o cristianismo original, “o jeito de toda a igreja ser”, como temos dito tantas vezes. Eis aí, novamente, mais um motivo pelo qual “a Teologia da Libertação continua provocando tanta inquietação”, como dizia a primeira pergunta.

IHU On-Line – Ainda na notificação sobre as obras de Jon Sobrino há uma inquietação sobre a ênfase dada pelo autor no Jesus histórico, bem como na sua relacionalidade. Na visão de Sobrino, torna-se problemática a “absolutização absoluta de Cristo”, ou seja, o esquecimento da dupla relacionalidade de Jesus: “com o reino de Deus e o Deus do reino”. Está havendo um certo risco de cristomonismo, na tendência em curso de questionamento do "reinocentrismo” da teologia da libertação e o que isso significa para a Igreja na América Latina?
José Maria Vigil –
Eis aqui um ponto que, mesmo que seja partilhado por todos nós, acho que foi Sobrino quem mais ou melhor o elaborou e explicitou, penso eu. Ele diz: Mesmo que confessemos como divino a Jesus, Ele continua sendo “relacional” a Deus, o Deus do Reino, e ao Reino, o Reino de Deus. Mesmo que Jesus seja “o Filho”, é absolutamente “o Filho”, relacional ao Pai e ao Reino. Bom, dito com palavras simples: Jesus “veio” para nos manifestar o projeto de Deus, a sua Utopia, que então era chamada de Reino, e essa Utopia foi o seu sonho, a Causa da sua vida, o centro da sua mensagem. Quem olhando a Jesus fica enamorado dos seus olhos, e esquece o projeto do Reino, porque já tem a Jesus como absoluto, erra. Absolutiza indevidamente a Jesus. Concentra personalisticamente em Jesus sua vivência cristã, deixando fora aquilo que foi, precisamente, o absoluto para Jesus: o Reino, a utopia, a Causa pela qual viveu e morreu.

Isto tudo não é uma teoria sem conseqüências, mas a desqualificação de um tipo de cristianismo que tem sido muito comum, também durante séculos: um cristianismo muito centrado e fechado em Jesus (o Jesus esposo da minha alma, o Jesus do sacrário, o Jesus mestre só espiritual...), mas em um Jesus sem Reino, um Jesus sem projeto, sem Utopia, sem Causa, um Jesus só para a espiritualidade, mas não para viver no mundo e construir o amor-justiça na história.
E estamos novamente noutro ponto pelo qual a Teologia da Libertação “continua provocando inquietação”: porque desqualifica esse tipo de cristianismo que adora um Deus (ou um Jesus) sem Reino, que, obviamente, não é o Deus cristão. O mundo ficou dividido entre uma Igreja que tinha um Deus sem Reino, e um mundo que acreditava num Reino sem Deus. A Teologia da Libertação serviu de ponte de fato, porque só acreditava num Deus do Reino, e achava que ubi Regnum, ibi Deus, ou seja, onde as pessoas lutam pela utopia, aí está o Reino de Deus e o Deus do Reino. Por isso foi que nos difíceis anos 1970 e 1980, dizíamos que nos sentíamos mais unidos àqueles que lutavam pela libertação do povo do que àqueles que, às vezes, em nome do Cristo, se opunham a essa libertação.

IHU On-Line – Quais são os desafios do pluralismo religioso hoje, para o fazer teológico na América Latina?
José Maria Vigil –
Esse é outro terreno. Porque é campo de outro paradigma. A Teologia da Libertação foi feita e construída nos anos pós-conciliares, quando o paradigma era o “inclusivismo” (que ainda hoje é o único pensamento oficialmente admitido). Inclusivismo é quando eu penso que há, sim, outras religiões, mas inferiores, talvez naturais intentos humanos de procurar a Deus, isto é, “crenças” religiosas que não chegam à altura da “fé”, que só nós, os cristãos, temos; e que as outras religiões são chamadas a ficar incluídas no cristianismo. Digo que este pensamento inclusivista era o âmbito no qual todos estávamos naquele tempo, e nem tínhamos capacidade de imaginação para pensar outra coisa.

Mas veio um novo paradigma, e penso que veio para ficar. É o paradigma pluralista. Não é só o “pluralismo” religioso no sentido de pluralidade de religiões. É, sobretudo, “pluralismo” no sentido de compreensão ou releitura “pluralista” do cristianismo. Repensar o cristianismo todo a partir da aceitação sincera do pluralismo de Deus: é de Deus mesmo de quem provém a pluralidade de religiões e de caminhos. Isto apresenta uma quantidade enorme de desafios, de pensamentos e doutrinas que precisam mudar. Inclusive algumas colocações da cristologia.

Nossa Teologia da Libertação era, foi, e, em boa parte, ainda é, inclusivista. Ainda não se confrontou com o paradigma pluralista. A ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo) tem feito um esforço grande por celebrar o matrimônio entre a Teologia da Libertação e a teologia pluralista. Está na rua há vários anos a série “Pelos muitos caminhos de Deus” (veja-se em www.latinoamericana.org/tiempoaxial). A ASETT também conseguiu da revista CONCILIUM  publicar um número monográfico (o primeiro de 2007) sobre o tema, a partir da perspectiva latino-americana precisamente. Aí ficam expostos por extenso os muitos desafios e algumas respostas, ainda provisionais.

IHU On-Line – Quais são as perspectivas para a 5ª Assembléia da Conferência Episcopal Latino-Americana em Aparecida, depois da “notificatio” sobre a obra de Jon Sobrino?
José Maria Vigil –
A Notificação certamente justifica as piores previsões. Porque já eram passados quase dois anos sem condenações nem desqualificações, nem para a Teologia da Libertação nem para outras teologias, e muitos diziam: “os tempos mudaram; Bento XVI não é João Paulo II”. Eu, pessoalmente, nunca acreditei, mas os fatos pareciam desmentir os temores. Lamentavelmente, no passado dia 14 de março, com a Notificação mudou tudo. Fomos retro-trazidos à etapa dos últimos 29 anos, de condenação de teólogos, especialmente da Teologia da Libertação. Aprendemos que, em efeito, Bento XVI não é João Paulo II, mas que continua sendo Joseph Ratzinger. Não houve mudança; estamos na mesma época.

Tenho alguns amigos fora da igreja que dizem para mim: só podem ter esperança os desmemoriados ou desinformados. Nesse contexto, prefiro não fazer previsões. Devo ser sincero e confessar que não tenho muita esperança em Aparecida: minha esperança salta por cima de Aparecida.

IHU On-Line – Quais são as possibilidades e os limites da criação de novos espaços para o exercício da reflexão teológica latino-americana, para uma teologia cada vez mais pública?
José Maria Vigil –
Sim, atualmente, muitos “lugares teológicos” clássicos (não os de Melchor Cano ) são lugares pouco evangélicos. Todo lugar onde não interessa procurar sinceramente a verdade, mas só repetir a doutrina oficial, sem questionar, sem criar, poderá ser um lugar muito acadêmico e muito oficial, mas será pouco teológico, porque pouco ou nada evangélico.
Penso, muitas vezes, que João anotou no seu evangelho só metade do que Jesus realmente quis dizer. Talvez, com os anos de aprendizado grego, João acabou só lembrando parte do que disse Jesus. Segundo João, Jesus teria dito que “só a Verdade os fará livres”, mas, para mim, é seguro que quis dizer também a outra metade: “só a liberdade os fará verdadeiros”. Só se conseguirmos nos libertar do medo, dos interesses institucionais, da rotina, da dependência do poder, do temor a dizer e publicar o que realmente vemos, só então poderemos ser verdadeiros e alcançar a Verdade.
A teologia, se for como deve querer ser, uma forma de “viver e lutar pela Causa de Jesus”, precisa dizer a verdade, goste ou não goste, e precisa denunciar todas as formas de fixidez, de idolatria. A teologia tem a obrigação de acompanhar a tantos homens e mulheres que procuram a verdade e o sentido das suas vidas, muitas vezes abandonados pelas igrejas e pelas pessoas oficialmente religiosas. É necessário que a teologia saia à praça pública, para falar ao homem e mulher da rua, acompanhando a reflexão dos lugares mais vivos do pensamento e da procura atual, que não são precisamente os lugares eclesiásticos. As possibilidades são imensas.

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