Edição 551 | 09 Mai 2022

Compreender o modernismo no Brasil implica sair do saudosismo e da celebração ufanista

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Rafael Cardoso, historiador e pesquisador da história da arte, sustenta que compreender a pluralidade dos vários movimentos de vanguarda no país passa por problematizar os fatos e os relatos

 

Pensar o Modernismo no Brasil significa levar em conta a multiplicidade dos diferentes movimentos de vanguarda, sob diferentes óticas e objetivos e superar o ramerrão estridente que sequestrou boa parte da discussão na mídia hegemônica sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. “Há questões muito mais importantes a serem discutidas. Como e quando o modernismo cultural conseguiu se desvincular da luta pela modernidade social? Por que a historiografia do modernismo brasileiro continua a se recusar a olhar para a produção cultural não-erudita? Como podemos pensar um projeto de modernização cultural que aposte na diversidade identitária e não na identidade plasmada em moldes nacionalistas?”, provoca o professor e pesquisador Rafael Cardoso em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Ao estudar o tema partindo da cultura midiática, Cardoso sublinha como a cultura erudita acabou bebendo esteticamente das várias transformações ocorridas nas linguagens artísticas desses produtos voltados à cultura de massas.

Outro aspecto importante para superar um debate raso sobre o Modernismo é examinar suas questões de modo não binário. “Não gosto dessa dicotomia, Rio versus São Paulo. Ela obscurece o cerne verdadeiro da discussão. Precisamos pensar a questão de modo transversal. Há diferenças entre as duas experiências, mas há igualmente pontos de contato. A Semana de 1922 foi feita também por gente do Rio. Vejo a evolução do eixo Rio-São Paulo ao longo do século XX mais como um diálogo do que uma oposição”, explica.

Neste ano, em que se comemora o bicentenário da independência do Brasil e o centenário da Semana de 1922, é preciso estar atento ao ufanismo típico, e não raro etnocêntrico, dessas efemérides. “A tarefa histórica é problematizar os fatos e os relatos. No fundo, trata-se de compreender que foram vários os modernismos, e que tiveram objetivos distintos. O caminho para repensar a cultura brasileira hoje passa por compreender que nossa força está na diversidade e pluralidade de experiências, não no triunfalismo da narrativa única”, complementa.

 

 


 

Rafael Cardoso é PhD em História da Arte pelo Courtauld Institute of Art/Universidade de Londres. Membro da AICA-Deutschland e do Verband Deutscher Kunsthistoriker. Atua como membro colaborador do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e como pesquisador associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin, na Alemanha. É autor de vários livros sobre história da cultura, da arte e do design no Brasil, dos quais o mais recente é Modernidade em preto e branco. Arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945 (São Paulo: Companhia das Letras, 2022).

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quando se trata de pensar o Modernismo no Brasil, qual a importância de superarmos o mito de 1922?

Rafael Cardoso – Superar o mito de 1922 possibilitaria repensar o legado do modernismo, sem ficar rodando em círculos em torno de debates tautológicos ou historicistas. Agora no centenário, por exemplo, a grande mídia foi sequestrada por um bate-boca raso de São Paulo versus Rio de Janeiro. Há questões muito mais importantes a serem discutidas. Como e quando o modernismo cultural conseguiu se desvincular da luta pela modernidade social? Por que a historiografia do modernismo brasileiro continua a se recusar a olhar para a produção cultural não-erudita? Como podemos pensar um projeto de modernização cultural que aposte na diversidade identitária e não na identidade plasmada em moldes nacionalistas? Essas são as perguntas que devíamos fazer, mas o binarismo de torcer contra a Semana ou a favor dela nos impede de aprofundar a reflexão.

 

IHU On-Line – Qual foi o papel da cultura midiática no surgimento do modernismo no começo do século XX?

Rafael Cardoso – A cultura midiática – litografia, fotografia, cinema, propaganda, revistas de grande circulação, rádio – é a vida pulsante da modernidade cultural no Brasil. Ela é o principal meio e o objeto das transformações de linguagem ocorridas entre as décadas de 1890 e 1940. As primeiras propostas modernistas surgiram de dentro dela. Isso é uma característica interessante dos modernismos no Brasil. Aqui, foi a cultura midiática que deu o impulso inicial, ao qual a cultura erudita reagiu depois.

 

IHU On-Line – Por que muitos dos artistas cariocas e fluminenses das primeiras décadas do século XX foram durante muito tempo (e ainda hoje) eclipsados quando se tratou de discutir o modernismo?

Rafael Cardoso – Porque se chegou com uma definição a priori do que era modernismo. Uma parte do grupo de 1922, que acabou se tornando hegemônica, chegou e afirmou: nós somos o modernismo. Demarcaram um espaço, uma postura e uma rede de relações, da qual excluíram todos que não eram seus aliados. Daí, conseguiram rebaixar proposições e práticas que eram esteticamente até mais ousadas do que as suas. Isso é normal na disputa entre grupos de vanguarda. O que não é aceitável é que a historiografia continue a ecoar essas disputas cem anos depois.

 

IHU On-Line – Um dos argumentos centrais do seu livro é o de que havia, na cultura de massa, especialmente nas revistas Kosmos, FonFon, O Malho e Para todos, entre outras, expressões artísticas que já eram modernistas e que vieram a inspirar o modernismo paulista. Qual foi a importância dessas publicações para o modernismo e por que estudá-las é relevante?

Rafael Cardoso – Elas foram importantíssimas porque disseminaram posturas e linguagens modernizadoras na sociedade. Os nomes canônicos do modernismo leram essas revistas na juventude e absorveram suas contribuições. Para além da influência direta sobre artistas, elas ajudaram a formar um público para as ideias e proposições modernistas. Elas criaram também um espaço de debate e reflexão, que foi essencial para levar os debates artísticos para além dos grupos fechados de vanguarda. Os modernistas canônicos buscaram avidamente espaço na grande mídia. Sem a revista Para Todos, por exemplo, a Antropofagia nunca teria tido o impacto que teve.

 

IHU On-Line – Como o surgimento das favelas foi representado pelo Modernismo, de um lado, na pintura de Eliseo Visconti e Gustavo Dall’Ara , mas, de outro, em caricaturas de diversas revistas e jornais, sob a pena de nomes como J. Carlos e Di Cavalcanti , entre outros?

Rafael Cardoso – Há uma tendência, entre alguns dos principais pintores modernistas, a olhar para a favela como simples motivo pictórico, exercício formal de cor e geometria. Não todos, claro, mas é uma corrente que abarca muitas obras. Tratavam a favela como se fosse uma natureza-morta, e não um lugar onde morava gente. Já em Dall'Ara e Visconti, entre outros, há uma manifesta preocupação social, um tom de denúncia.

J. Carlos e Di Cavalcanti são casos ainda mais complicados. Estavam inventando a iconografia da favela, os lugares-comuns visuais, os estereótipos tais quais os conhecemos hoje. Cada um numa direção diferente, claro. J. Carlos praticamente inventou a caricatura pejorativa e racista da favela. Di, ao contrário, ajudou a delinear os contornos daquilo que poderíamos chamar de uma consagração da favela. São linhas gerais. O assunto é bem intrincado. A formação de uma cultura visual nunca é simples.

 

IHU On-Line – De que maneira foi conduzida a representação da negritude no modernismo do Rio de Janeiro em perspectiva com a representação do modernismo paulista?

Rafael Cardoso – Não gosto dessa dicotomia, Rio versus São Paulo. Ela obscurece o cerne verdadeiro da discussão. Precisamos pensar a questão de modo transversal. Há diferenças entre as duas experiências, mas há igualmente pontos de contato. A Semana de 1922 foi feita também por gente do Rio. Muitos dos paulistas foram ao Rio buscar a consagração nacional. Vejo a evolução do eixo Rio-São Paulo ao longo do século XX mais como um diálogo do que uma oposição.

 

IHU On-Line – Neste contexto, até que ponto pode-se falar em representatividade da população negra no modernismo brasileiro?

Rafael Cardoso – É dura a luta das populações afrodescendentes por representação na sociedade brasileira. Começou na década de 1830 e continua até hoje. Cada pequena conquista custou sangue, suor e lágrimas. Eu diria que não há quase representatividade da população negra no modernismo brasileiro. É um dos motivos por que precisamos questionar o mito de 1922.

 

IHU On-Line – Dois artistas afrodescendentes ocuparam papel de destaque no modernismo do Rio de Janeiro das primeiras décadas do século passado, os irmãos João e Arthur Timótheo da Costa . Quais são suas principais obras e por que elas, em certo sentido, não fazem parte do imaginário social do Modernismo Brasileiro?

Rafael Cardoso – O Museu Afro Brasil, em São Paulo, fez uma exposição sobre eles e um livro, organizado por Emanoel Araújo. Há bons trabalhos de pesquisa sobre eles, incluindo a tese de doutorado do Kleber de Oliveira Amâncio e a dissertação de mestrado da Simone de Oliveira Souza. Ou seja, não sou a pessoa mais qualificada para dar essa opinião. Duas obras muito importantes do Arthur Timótheo, a meu ver, são o retrato do Lúcio, contínuo da Escola Nacional de Belas Artes, que foi exposto no Salão da ENBA em 1906, e o autorretrato de 1908, pertencente à Pinacoteca do Estado de SP.

 

IHU On-Line – Como a questão racial aparece no movimento antropófago, que foi, também, um importante movimento de crítica à Semana de 1922? Em que sentido sua grande força era também sua grande fraqueza?

Rafael Cardoso – A Antropofagia tem uma relação complexa com a questão racial. A maior parte do tempo, evitou tratar dela, tentando escapar pela tangente do humor. Os antropofagistas queriam superar as distinções raciais, que não lhes interessavam, para chegar na questão fundamental para eles: o selvagem. Isso foi proveitoso porque permitiu que escapassem das fórmulas nativistas e nacionalistas em que tropeçou grande parte do modernismo egresso de 1922. "Só me interessa o que não é meu" é uma formulação interessantíssima para se pensar a alteridade, conforme apontou Frederico Coelho . Por outro lado, era muito ingênuo da parte deles achar que podiam simplesmente contornar a questão numa sociedade como a nossa, fundamentada no escravismo e no racismo. Ingênuo, e também comodista. Podiam-se dar o luxo dessa ingenuidade, porque pimenta no olho dos outros é refresco.

 

IHU On-Line – Alguns artistas modernistas passaram a trabalhar em diferentes níveis de governo após a Revolução de 1930. Ao longo desse período, e depois no Estado Novo, tentou-se forjar uma certa “identidade brasileira”. Quais foram os artistas modernistas em torno do Ministério da Educação e Saúde e de Gustavo Capanema engajados nesse projeto? Quais são as principais obras ligadas a esse período?

Rafael Cardoso – Carlos Drummond de Andrade , Cândido Portinari , Mário de Andrade e mais uma lista longa de coadjuvantes e figurantes. É quase mais fácil fazer a pergunta contrária: quem não colaborou com o Ministério da Educação e Saúde e/ou o Departamento de Imprensa e Propaganda durante o Estado Novo? Quais obras não foram realizadas com apoio do MES e do DIP? Tirando os perseguidos pelo Estado Novo diretamente, sobraram muito poucos. Isso é uma discussão complicadíssima. Há excelentes trabalhos a respeito da relação entre intelectuais e o Estado Novo por Helena Bomeny e Lúcia Lippi , entre outros.

 

IHU On-Line– Quem foi Dimitri Ismailovicht e por que, como o senhor apresenta em seu livro, foi o migrante que melhor entendeu o Brasil? Qual a importância de Sodade do Cordão para a arte modernista brasileira?

Rafael Cardoso – Dimitri Ismailovitch foi um pintor de origem russa, imigrado para o Brasil em 1927. Morreu no Rio de Janeiro em 1976. Foi um dos retratistas mais requisitados do Brasil entre os anos 1930 e 1950. Era famoso, conheceu todo mundo, pintou muita gente. Hoje, quase ninguém se lembra mais dele. Há um tríptico dele no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, chamado Sodade do cordão, pintado em 1940. É uma homenagem a um cordão carnavalesco, organizado por Heitor Villa-Lobos e Zé Espinguela , do qual ele participou. O meu livro analisa essa obra e discute ela em termos da relação entre modernismo, identidade e questão racial. Não vou dar spoiler. Quem quiser, pode ler o livro! Só vou adiantar que é um quadro de importância ímpar para se entender a arte brasileira do século XX.


IHU On-Line – Por fim, como discutir o modernismo hoje nos permite compreender melhor o Brasil do século XXI?

Rafael Cardoso – Compreender o modernismo nos permite sair do saudosismo e da celebração ufanista. O movimento modernista fracassou em muitos sentidos e se superou em outros. A tarefa histórica é problematizar os fatos e os relatos. No fundo, trata-se de compreender que foram vários os modernismos, e que tiveram objetivos distintos. Não se trata de atacar ou defender o modernismo, mas de entender que o problema é bem maior. O caminho para repensar a cultura brasileira hoje passa por compreender que nossa força está na diversidade e pluralidade de experiências, não no triunfalismo da narrativa única.

 

 

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição