Edição 549 | 10 Agosto 2021

A alegria como a consciência de que “tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso”

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Ricardo Machado

Miguel Jost traça um panorama da história de Caetano Veloso, pontuando como sua obra propõe um Brasil que reúne em um só território político, mas sobretudo estético, muitos brasis

O Brasil de Caetano Veloso reúne os muitos brasis que atravessam e vivem em sua produção artística, quer seja ela musical ou não. “O Brasil é para ele uma experiência de um mundo possível no qual o deslizamento se sobrepõe à identidade dura, onde o deslocamento é mais importante do que aquilo que se fixa, onde a travessia desorienta a estabilidade seja ela qual for”, descreve o professor e pesquisador Miguel Jost, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Embora o senso comum tenda a tomar a “alegria” como um afeto ingênuo, quando não cínico, diante de um Brasil marcado por tantas e distintas violências, o sentido do termo trazido pela obra de Caetano assume outro significado. “A alegria como manifestação da potência de estar vivo, mas sempre como a percepção clara de que ‘tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso’ é uma espécie de bússola para essa linha que conecta tantos artistas brasileiros”, afirma Jost.


 

A geração tropicalista, da qual Caetano é um dos integrantes, reinventou completamente o sentido do que é a cultura brasileira e o faz de forma muito mais aberta. “Essa ‘tradição delirante’ seria marcada pela capacidade desses artistas de investir contra uma ideia conservadora de cultura brasileira sem, com isso, cair em um território de ruptura ou em uma postura iconoclasta perante os elementos constituintes da nossa tradição. Seria a capacidade de olhar a fresta, o desvio, o deslize, o entre-lugar e a diferença como traço decisivo para escaparmos de uma identidade cultural fixa, excludente e com baixa capacidade de afirmar a brasilidade como contágio e não como dado natural e estável”, destaca.

Miguel Jost Ramos é formado em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestre e doutor em Estudos de Literatura por esta mesma instituição. Tem experiência nas áreas de literatura e sociologia, com ênfase em cultura Brasileira, música popular e políticas públicas de cultura. É membro do grupo de pesquisa Textualidades Contemporâneas: Processos de Hibridização, que é composto por pesquisadores da UnB, PUC-Rio, UFES, UFU e UMCE (Chile), e membro do grupo de trabalho Intérpretes do Brasil, que se reúne regularmente nos congressos do Brasa.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi e quem é Caetano Veloso para o Brasil e o Mundo?

Miguel Jost – Somente o fato de nos sentirmos aptos a fazer essa pergunta nos dá uma dimensão do que esse artista representa para a cultura brasileira. Porém, entendo que escapando dessa pergunta ou, pelo menos, deslocando-a para outro território, posso contribuir mais com a produção de uma reflexão crítica consistente sobre a produção artística de Caetano Veloso.

Nesse sentido gostaria de propor aqui, como abertura para nossa conversa, pensar sobre o Brasil que Caetano canta, desenha, escreve, ensaia, dança e imagina. Curiosamente pensei em escrever na linha anterior “os brasis” ao invés de “o Brasil”. Contudo, se assim o fizesse, estaria sendo traído por uma perspectiva contemporânea pouco coerente com o que entendo da obra de Caetano. De fato sua obra é permeada de brasis diversos, e talvez esse seja um dos pontos nevrálgicos de sua produção estética quando emerge o movimento da Tropicália. Mas esses muitos brasis ainda são ali orientados e organizados como ideia de um Brasil. E não vejo como pensarmos a obra de Caetano sem fazê-la roçar em um corpo coletivo de criadores brasileiros do século XX que foram contagiados pela possibilidade de uma utopia Brasil. De Araripe Júnior a Glauber Rocha , de Tarsila do Amaral a Augusto Boal , de Gilberto Freyre a Hélio Oiticica , entre tantos outros exemplos possíveis, existiu de forma permanente entre pensadores e artistas brasileiros no século passado essa ambição de delinear e afirmar um lugar original da cultura brasileira. E Caetano é parte decisiva da forma como muito dessa produção foi organizada e traduzida no território da canção popular. Mais que isso, foi e é um personagem que mantém insistentemente essa ideia de uma utopia de Brasil como algo que pode determinar mais do que um lugar nosso no mundo, uma verdadeira lição nossa para o mundo.

A título de exemplo recente, em debate realizado pela FLIP em 2020 no qual Caetano dividiu um painel do evento com Paul B. Preciado , o compositor afirmou sobre o papel da história brasileira perante o mundo de hoje: “não podemos não assumir a responsabilidade de dizer que temos a oportunidade de criar um mundo novo, de mudar esse negócio todo a partir do que somos. [...] Nós temos aqui uma oportunidade de contribuir de uma maneira que ninguém tem as ferramentas que nós temos para fazer. [...] e eu tenho um otimismo programático de manter a responsabilidade de tentar fazer.” Caetano no contexto dessa conversa procurava dizer justamente sobre as especificidades que nossa experiência como país do hemisfério sul, com o português como língua, um "gigante anômalo”, país de dimensões continentais, de enorme diversidade cultural, poderia oferecer para o mundo contemporâneo. O exemplo recente é somente para iluminar que a obra de Caetano, dos seus primeiros textos como crítico cinematográfico ainda estudante em Salvador até hoje, está continuamente atrelada à ideia de que o mundo precisa se “brasilificar”, como nas palavras de seu amigo e parceiro Jorge Mautner .

Mesmo não tendo muito espaço para aprofundarmos os principais elementos internos de sua obra que indicam de forma aguda essa perspectiva de uma utopia brasileira, podemos abrir algumas questões gerais que nos ajudem a entender esse Brasil que Caetano afirma incessantemente. A maioria dessas questões já eram apontadas e problematizadas pelo artista desde seu surgimento no cenário cultural brasileiro. A ideia de uma geleia geral brasileira, capaz de aliar Rogério Duprat e Vicente Celestino , de fazer conversar a rádio nacional e as vanguardas internacionais, de amar Roberto Carlos e Fellini , de assumir a indústria cultural como espaço para uma produção brasileira moderna e popular, de ampliar os filtros de movimentos como a bossa nova e o concretismo, de afirmar a sensibilidade popular como dado decisivo da nossa originalidade, foram dados decisivos da constituição do movimento tropicalista mas, de certa forma, pavimentaram uma estrada pela qual Caetano se manteve até hoje. É esse Brasil da porosidade, da multiplicidade, do trânsito, da diferença, do indefinido como recitado por ele em “Americanos” no disco Circuladô de Fulô (1991).

Caetano não abre mão. O Brasil é para ele uma experiência de um mundo possível no qual o deslizamento se sobrepõe à identidade dura, onde o deslocamento é mais importante do que aquilo que se fixa, onde a travessia desorienta a estabilidade seja ela qual for.

IHU On-Line – Como Caetano Veloso tornou-se, também, a expressão do final dos anos 1960 e 1970 no Brasil, misturando discernimento intelectual e abertura a novas experiências, inclusive alucinógenas?

Miguel Jost – Eu entendo que seria melhor dizermos como Caetano interveio nesse cenário cultural do que como ele tornou-se expressão cultural daquele momento. Caetano Veloso, assim como diversos artistas do período, como Lygia Clark , Zé Celso , Tom Zé , Hélio Oiticica, José Agrippino de Paula , Glauber Rocha e outros, construíram uma abertura absolutamente decisiva para que a produção cultural brasileira daqueles anos pudesse escapar de modelos essencialistas dentro de debates como nacionalidade, tradição, alienação, imperialismo e outros que despertavam enormes paixões na virada dos anos 1960/1970. A compreensão da abertura produzida pela bossa nova para a cultura brasileira no mundo, a recuperação do conceito de antropofagia como pensado por Oswald de Andrade , a capacidade de lidar com os espaços da dita indústria cultural assim como a vontade de produzir novas chaves de leitura sobre a realidade brasileira, fizeram com que esse conjunto de artistas criasse um novo campo de referências sobre o que poderia ser uma cultura brasileira menos fechada em si e, ao mesmo tempo, intimamente conectada com a nossa sensibilidade e história.

O que talvez diferencie Caetano dos demais artistas citados dentro desse contexto seja o fato de como o compositor traduziu isso na sua produção não só cancional mas também nas suas intervenções no debate público daquele período. E, talvez, ainda mais que isso, como Caetano performou um corpo que expressava uma brasilidade não normativa, desviante, popular, sofisticada, provocadora e com um poder de afetar a perspectiva de mundo da juventude brasileira de então. Como diria um dos seus interrogadores no período em que Caetano esteve preso: mais do que as letras, o que era inadmissível era a forma como o artista rebolava e se comportava no palco. O corpo de Caetano, como estratégia narrativa, de fato impactou aquele período histórico do Brasil como um elemento desestabilizador da vida do país.

IHU On-Line – A propósito, qual a relação entre as primeiras obras de Caetano Veloso e a conjuntura política do Brasil à época, com a instauração dos Atos Institucionais, especialmente o AI-5?

Miguel Jost – Não acredito que articular conexões de causa e efeito entre a produção do compositor e golpe militar no Brasil seja o campo mais produtivo para produzirmos reflexão crítica sobre a estética de Caetano nos anos 1960. Ao mesmo tempo, a emergência de sua voz dentro desse momento histórico torna esse diálogo incontornável e precisamos ter isso em vista para qualquer análise dos seus primeiros trabalhos. De forma muito óbvia, Caetano era um artista que afirmava o caráter libertário do momento em suas canções. Suas letras, os arranjos de suas músicas, sua performance nos palcos, seus figurinos, suas posições sobre sexualidade, sobre direitos civis e tantos mais temas eram extremamente ousados e disruptivos naquele contexto. Necessariamente, uma ditadura autoritária e conservadora precisava criminalizar e oprimir esse tipo de expressão. Caetano responderia a isso afirmando ainda mais sua música e seu comportamento como um território de liberdade e de ruptura com o conservadorismo.

Isso fez com que o compositor se tornasse alvo da ditadura e como consequência fosse preso e exilado com a promulgação do AI-5 e o recrudescimento do Regime Militar. E talvez aí tenha surgido o efeito mais direto e objetivo da ditadura em sua obra. O disco lançado após esse período é observado por muitos críticos como um trabalho no qual o compositor reverbera toda sua vulnerabilidade após o período na prisão. No repertório, nos arranjos, na interpretação vocal, na capa do disco e em outros elementos estaria refletida boa parte da dor do ocorrido e, para além disso, uma certa reorientação de rota pós-tropicalismo.

Mas eu entendo que, antes de tudo, as primeiras obras de Caetano se relacionam diretamente com expressões culturais nacionais e internacionais daquele momento que produziram um efetivo impacto sobre a produção subjetiva do compositor. Estou falando mais do jovem santo amarense que antes dos seus dezoito anos completos já era profundamente abalado pelos textos de Clarice Lispector , pelo violão de João Gilberto e pelo cinema de Fellini. Mais do adolescente que vivia entre festas populares e as informações que lia na Revista Senhor. Mais do apaixonado pelo cinema francês e que acreditava que Vinicius de Moraes era um poeta negro do Rio de Janeiro. Mais do jovem que sabia de cor todo o cancioneiro de sucesso da Rádio Nacional e que, ao mesmo tempo, olhava para a cultura pop internacional com um fascínio sem igual.

Certamente existem fios que conectam tudo isso: afirmar a potência criadora do Brasil em toda sua complexidade cultural, social e política talvez seja o mais importante deles.

IHU On-Line – Em seu mestrado você estudou a música popular brasileira nos anos 1970. Qual a importância da obra de Caetano neste contexto e como ele dialogava com outros artistas da época?

Miguel Jost – Bom, como já brinquei aqui estamos falando de alguém que estava disposto a organizar o movimento e orientar o carnaval né? E além disso inaugurar o monumento no planalto central do Brasil. Não é pouca coisa, obviamente. Caetano, e mais especificamente a Tropicália, funcionaram para a geração que surgiu nos anos 1970 de forma semelhante a como a bossa nova funcionou para os artistas surgidos nos anos 1960. Muito mais importante do que a influência sonora e poética foi sua capacidade de mover estruturas de mentalidade e remover barreiras estéticas. Estamos falando de movimentos que redefiniram o horizonte de possibilidades para artistas brasileiros não só da música. E esse é um aspecto fundamental para dimensionarmos a relevância desses movimentos num cenário mais amplo da nossa produção cultural. Quando observamos como Glauber Rocha se referia à bossa nova, quando entendemos o impacto da Tropicália para o surgimento da cena da contracultura, entendemos que a experiência de redefinir a liberdade de criação como esses movimentos fizeram são elementos muito mais decisivos em impactar as gerações seguintes do que propriamente uma batida de violão ou o uso de recursos da música erudita de vanguarda em canções pops.

Mas se ajustarmos o foco para mais próximo também podemos observar um impacto efetivo da produção de Caetano para a geração seguinte. O chorinho com rock dos Novos Baianos , o homoerotismo de Ney Matogrosso com Secos e Molhados , a liberdade do Clube da Esquina em aproximar música latina, The Beatles, o barroco mineiro e a canção moderna brasileira, a aproximação da MPB com os artistas do chamado brega, a eclosão do movimento Black Rio no fim da década, as diversas citações a Caetano em canções de outros artistas, são exemplos de uma influência profunda do artista só a partir de alguns poucos casos do campo da canção popular. Mas se desdobramos esse debate para as linguagens do cinema, do teatro, das artes visuais e da literatura podemos observar uma amplitude ainda maior do impacto que foi gerado por ele.

Um sintoma colateral dessa relevância que Caetano ganhou para a geração seguinte está nas polêmicas e na forma como suas entrevistas passam a reverberar na cena cultural do período. O próprio artista, a partir da percepção da força que sua voz havia ganho nesses espaços, passou a ser mais incisivo na recusa ao papel referencial que tentavam lhe conferir naquele momento. As inúmeras afirmações sobre o fim da Tropicália, sobre seu desejo de não desempenhar um papel de ícone da juventude ou sobre não se ver como liderança política denotam uma postura deliberada de escapar do papel de uma referência geracional na primeira metade da década de 1970. O lançamento de Araçá Azul (1973) e todas as suas intervenções públicas sobre o disco não deixam dúvidas desse desejo de sair do centro da cena.

IHU On-Line – Oswald de Andrade dizia que “A alegria é a prova dos nove”. Caetano compôs a célebre canção “Alegria, Alegria”. Como a valorização deste afeto nos ajuda a pensarmos o papel da cultura no Brasil em contextos tão difíceis como foi a ditadura e, infelizmente, é a atual conjuntura?

Miguel Jost – A alegria como manifestação da potência de estar vivo, mas sempre como a percepção clara de que “tudo é perigoso, tudo é divino e maravilhoso” é uma espécie de bússola para essa linha que conecta tantos artistas brasileiros que se "filiam” aos dois exemplos citados na pergunta. Digo isso com esse cuidado porque as lentes contemporâneas nos ajudaram a perceber como a alegria, quando associada a uma expressão de brasilidade, pode ser um elemento diluidor de toda violência que formou nossa história social. Mas é certo que nem Caetano nem Oswald pensaram essa alegria como um elemento que ameniza as mazelas sociais do país.

Nesse sentido, podemos nos apegar mais à forma como Nietzsche entende alegria. Estamos falando de afirmar nossa potência mais do que aquilo que reconhecemos como carência. Curiosamente, essa parece ser uma discussão que se faz novamente pertinente nos dias atuais. Quando enfrentamos o surgimento de uma máquina de aniquilamento do outro como acontece hoje diante do governo Bolsonaro, precisamos novamente trazer a alegria que é afirmada pela diferença, pela alteridade, pela celebração da vida e não do desejo de morte como se manifesta de forma tão brutal no Brasil em 2021.

IHU On-Line – A propósito, até que ponto a obra de Caetano Veloso – além de outros artistas – atualizou o sentido do Modernismo Antropofágico brasileiro?

Miguel Jost – Esse é um tema de enorme complexidade para aqueles que procuram entender as histórias das ideias no Brasil. Inicialmente, talvez seja importante refletirmos sobre um possível equívoco que cometemos nos espaços da academia ao lidar com essa relação. E digo cometemos no plural porque, por mais que possamos encontrar trabalhos que, ao longo do tempo, chamaram atenção para uma falta de rigor nessa associação, é um fato que na grande maioria dos debates, artigos, palestras e aulas que abordaram esse tema podemos observar uma relação muito direta e simbiótica entre o conceito de antropofagia de Oswald de Andrade e a obra de Caetano e outros tropicalistas.

O que tento propor aqui e em outros espaços é que se perceba que a forma usada pelos poetas concretistas, os tropicalistas, o trabalho do Teatro Oficina, de Lygia Clark, Hélio Oiticica, de Waly Salomão e de muitos outros como uma espécie de consolidação de uma certa ideia de antropofagia. E, de fato, de uma ideia consistente e forte de antropofagia. O que seria importante entendermos é que o conceito não era estável, fechado, coeso e muito menos era pactuado no nosso ambiente intelectual como um conceito relevante para interpretar o Brasil. De forma tangencial, inclusive, vale citarmos que os trabalhos publicados pelos principais autores do pensamento social brasileiro entre os anos 1930 e 1960 não se dedicam a refletir ou trabalhar em cima desse conceito. Em parte isso acontecia pela trajetória “acidentada” de Oswald nesse período, em parte pela prevalência das formulações de Mario de Andrade e outros autores modernistas nesse arco de tempo.

Fato é que a partir do movimento dos poetas concretistas em recolocar o pensamento de Oswald nos debates sobre a cultura brasileira, o conceito de antropofagia ganharia uma centralidade inédita nos dez anos seguintes. O conceito não só ajudou os artistas do período a pensarem seu lugar no contexto da produção daquele momento como também os incentivou a construir uma linha de interpretação da nossa história cultural bem distinta da que prevalecia no debate intelectual até então. Utilizando uma ideia formulada pelo ensaísta, professor e poeta Ericson Pires em seu livro Cidade Ocupada (Hunter Books, 2007), poderíamos pensar essa outra linha de interpretação inspirada pela antropofagia oswaldiana sob a perspectiva de uma “tradição delirante”, pela qual poderíamos construir uma conexão que passa por Oswald, Flávio de Carvalho , pela poesia concreta, pelo teatro de Zé Celso Martinez Corrêa, pelo cinema novo e pelo cinema marginal, pela literatura de José Agrippino de Paula e de Jorge Mautner, pelas obras de Lygia Clark e Hélio Oiticica, pela poesia de Waly Salomão e Chacal . Essa “tradição delirante” seria marcada pela capacidade desses artistas de investir contra uma ideia conservadora de cultura brasileira sem, com isso, cair em um território de ruptura ou em uma postura iconoclasta perante os elementos constituintes da nossa tradição. Seria a capacidade de olhar a fresta, o desvio, o deslize, o entre-lugar e a diferença como traço decisivo para escaparmos de uma identidade cultural fixa, excludente e com baixa capacidade de afirmar a brasilidade como contágio e não como dado natural e estável.

Reforçar a necessidade de olharmos com mais rigor para essa inscrição da antropofagia oswaldiana sobre a produção desses artistas se faz urgente como defesa da força do conceito. O que vimos nos últimos anos é um trabalho vasto de diluição e fragilização do conceito como dispositivo capaz de instigar nosso olhar sobre a relação da nossa cultura como aquilo que nos é externo. Mas para não me alongar aqui diria que reler a formulação desse conceito na fonte, no próprio Oswald, seria o mais fundamental para reagirmos a essa diluição de sua força.

IHU On-Line – Em um sentido mais amplo, qual a importância da música como dispositivo de mediação política no Brasil?

Miguel Jost – Essa importância é tão absolutamente gigante que fica difícil escolher um caminho para abordá-la em poucas linhas. Como a provocação posta na pergunta foi sobre um sentido mais amplo dessa mediação, pode ser interessante falarmos sobre o papel da nossa música popular para consolidação da ideia de Brasil. E nessa direção precisamos falar, necessariamente, do papel do rádio como primeiro instrumento capaz de conectar esse país de dimensões continentais. O fato de sermos um país de baixíssimo letramento, no qual a prensa chegou com enorme atraso e no qual o incentivo ao ato de leitura jamais foi compartilhado pelo conjunto mais amplo da população, criou um cenário que deixou ao rádio o papel de apresentar o Brasil para o Brasil. Como nos explica o professor e ensaísta José Miguel Wisnik o Brasil teria pulado da tradição oral para a tradição áudio/audiovisual, sem que vivêssemos a fase da difusão da letra e da leitura. Foi através do rádio, então, que estabilizamos o português falado no nosso território, que ouvimos os principais pronunciamentos políticos da república, que ouvimos as descrições sobre a geografia do país e que, principalmente, criamos uma ideia de cultura brasileira. E essa ideia, desde o início, esteve profundamente associada à nossa canção popular urbana. Foi através da nossa música que o brasileiro se reconheceu, se pensou, se descobriu e formou sua sensibilidade popular. Foi através da nossa música que o brasileiro se entendeu diverso, plural e potente.

Só esse papel determinante para nossa formação como sociedade já coloca nossa produção musical como elemento de uma centralidade ímpar no sentido político. A música no Brasil sempre foi um território de encontro dos brasileiros, de diálogo entre o que somos e o que desejamos ser, de formulação de uma utopia de país e de denúncia da realidade do país. Mas essa dimensão ainda seria mais amplificada pelo contexto que vivemos nos anos 1960, quando efetivamente se acreditou que o debate estético sobre a nossa canção popular poderia ser definidor do nosso futuro como país. Os acalorados debates entre os grupos do Centros Populares de Cultura - CPCs da União Nacional dos Estudantes - UNE, entre os intelectuais marxistas e os artistas tropicalistas eram observados como embates que determinariam o desenvolvimento da nossa sociedade e que iriam orientar um sentido de cultura brasileira na segunda metade do século passado. Foi a partir desse momento que os artistas da música popular passaram a ser interpelados e cobrados pelas mais diversas questões políticas e sociais que surgiam no país. Até então dificilmente você veria artistas da música sendo cobrados por darem opiniões sobre questões de direitos civis, direitos humanos, questões de política partidária e outras dessa natureza. Hoje, cerca de seis décadas depois, ainda é recorrente no Brasil a existência dessa cobrança por posicionamento e participação política de artistas da música.

IHU On-Line – Como compreender que Caetano, tão aberto e progressista, tenha apoiado um movimento que tentava barrar a publicação de biografias não autorizadas pelos biografados?

Miguel Jost – Eu não teria mais do que algumas poucas opiniões sobre isso. No geral, me parece, é possível que se trate pouco da liberdade e muito mais sobre o papel desses conteúdos no nosso ecossistema cultural. O Brasil tem pouca circulação de biografias muito mais por características do nosso consumo literário do que por censuras e proibições. Porém, naquele momento, era evidente que a ação no Supremo Tribunal Federal era bancada por uma indústria muito mais forte do que a das editoras de conteúdo impresso. O que se pretendia com aquela ação era a abertura de um novo mercado internacional para o audiovisual brasileiro. A partir da enorme força da nossa música, produtoras de cinema e televisão, pretendiam abrir um nicho muito valioso de produção para consumo interno e externo. Era isso que estava por trás daquela ação judicial e que Caetano, muito criterioso com o aspecto comercial de sua obra, se contrapôs. Eu acredito, mas talvez seja meu lado fã falando mais alto aqui, que se a ação representasse outra gama de interesses – mais conectados à pesquisa e salvaguarda de memória da cultura brasileira –, a postura de Caetano seria em outra direção.

De qualquer maneira, me parece perigoso, em um ambiente tão repleto de controvérsias comerciais como é o ambiente da indústria cultural brasileira, contrapor uma obra aberta e progressista à defesa dos interesses econômicos do autor. Não sei se estamos sendo justos nessa oposição. O mercado tem interesses que justificam uma postura conservadora em disputas dessa natureza. Eu não vejo uma contradição nesse caso. De forma alguma acho que seja sobre ser a favor ou contra as biografias não autorizadas.

IHU On-Line – Olhando em perspectiva, quais são as principais semelhanças e diferenças entre o Caetano dos anos 1960/1970 e o Caetano do século XXI, seja do ponto de vista artístico, seja do ponto de vista político?

Miguel Jost – Acho que aquilo que o torna único muda pouco: Caetano é uma tecnologia capaz de mixar os muitos brasis e torná-los um Brasil ao mesmo tempo muito forte e muito plural. Leblon e Pernambuco, revólver e coqueiro, dinheiro e paixão, descanso e desejo, romântico e burguês, eunuco e garanhão, cowboy e chinês, lar e revolução, quaresma e fevereiro. Bruta flor do querer.

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