Edição 549 | 10 Agosto 2021

Entre o concretismo e a contracultura, Caetano Veloso fez de sua arte uma política sempre atual e contestadora

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Frederico Coelho perpassa obra do artista articulando diferentes dimensões da multifacetada história cultural do Brasil do século XX e deste músico, um dos mais icônicos de sua geração

Caetano Veloso jamais abriu mão de dar corpo – o seu próprio e de sua produção artística – à riqueza cultural de um Brasil múltiplo, plural, sendo capaz de articular de forma crítica e criativa projetos antagônicos. “Ele [Caetano] sempre foi amigo de um grupo sui generis de intelectuais, pensadores que ele mesmo chamou de hiper-racionalistas (os concretos) e irracionalistas (o grupo ligado às ideias da contracultura). Nesse sentido, Caetano sempre soube articular saberes e práticas de diferentes campos de interesse em uma obra popular e, ao mesmo tempo, sofisticada”, pontua o professor e pesquisador Frederico Coelho, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“A proposta de uma música que fosse aberta às inovações estéticas e poéticas do rock internacional, que utilizasse o componente elétrico – guitarras e baixos – como forma de ampliar as possibilidades da canção popular feita no Brasil, fez com que os compositores baianos e seus parceiros paulistas demarcassem um novo espaço. Nem eram os engajados acústicos das canções de protesto, nem eram os inocentes da jovem guarda que agitavam a garotada nas tardes de domingo. Eles eram jovens, pops e políticos”, descreve.


 

Da crítica social em muitas canções, especialmente “Tropicália”, que descreve com precisão os problemas estruturais do país, ao compromisso político com as utopias, Caetano apresenta as contradições do Brasil. “É conhecida a veia sebastianista de Caetano nesse período, e ‘Tropicália’ liga Pero Vaz de Caminha a Brasília, projeta justamente o paradoxo que nos impede de atingir um horizonte que podemos chamar de ‘primeiro mundo’ ou seja lá o horizonte utópico que pode ser projetado para o país”, pontua o entrevistado.

Frederico Coelho (foto) é professor do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Possui graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestrado em História Social pela UFRJ e doutorado em Literatura Brasileira pela PUC-Rio com Bolsa-Sanduíche da Capes por um ano na New York University. Entre 2001 e 2009 foi pesquisador do Núcleo de Estudos Musicais - NUM da Universidade Cândido Mendes e pesquisador do Núcleo de Estudos de Literatura e Música - Nelim da PUC-Rio entre 2009 e 2012. Tem experiência nas áreas de História, Literatura e Artes Visuais, com ênfase em cultura brasileira.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância de Caetano Veloso no contexto cultural brasileiro?

Frederico Coelho – Caetano é um dos principais nomes da cultura brasileira no século XX. Nascido em 1942, é um “filho do Modernismo”, ao incorporar o papel de intelectual público a partir do campo da música popular. Sua relação com o pensamento e a arte no Brasil o fazem privilegiado em poder articular no formato de canções uma visão singular do país. Além disso, criou uma relação estratégica com a imprensa brasileira, sendo sempre referência para debates e polêmicas que abordem assuntos dos mais diversos campos de interesse. Nesse sentido, Caetano acaba tendo importância constante entre diferentes classes, gostos e contextos sociais.

IHU On-Line – Até que ponto sua obra transcende a dimensão musical e literária e por que isso acontece?

Frederico Coelho – Mais do que transcender, a grande força de sua obra é justamente articular dimensões – musical, literária, mas também cinematográfica, visual, filosófica, sociológica e outras camadas. E isso acontece porque a formação intelectual e estética de Caetano se deu no Brasil dos anos 1950/1960, quando um amplo repertório cultural de diferentes fontes circulava pelo país. Mesmo em Santo Amaro da Purificação, ele acessou esse repertório ligado à urbanização cosmopolita do país e fez da música popular um espaço de ação estética ampliada. Além disso, ele sempre foi amigo de um grupo sui generis de intelectuais, pensadores que ele mesmo chamou de hiper-racionalistas (os concretos) e irracionalistas (o grupo ligado às ideias da contracultura). Nesse sentido, Caetano sempre soube articular saberes e práticas de diferentes campos de interesse em uma obra popular e, ao mesmo tempo, sofisticada.

IHU On-Line – De que maneira a obra de Caetano Veloso, desde seu primeiro disco Domingo e no seguinte com a icônica canção “Tropicália”, no disco homônimo com outros artistas, apontava para um Brasil e um pensamento independente e crítico?

Frederico Coelho – Creio que não só ele, mas também muitos outros músicos de sua geração foram agentes transformadores da canção popular brasileira. Os nomes e trabalhos que surgiram entre 1965 e 1968 no Brasil formaram aquilo que conhecemos como MPB, um formato em que a canção precisava partir de premissas que pensassem o Brasil – a música precisava ser popular e brasileira. Caetano foi um dos que conseguiram fazer letras de música cujo teor poético também se revelava político. Mas é justamente a relação entre poesia e política que diferenciava os projetos sonoros e estéticos daquela geração. Edu Lobo, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Jorge Ben ou Caetano Veloso tinham visões singulares para pensar e inventar um Brasil em suas composições.

O que se convencionou chamar de “tropicalismo” foi uma dessas formas de intervenção crítica e criativa no meio musical desse período. Dessa perspectiva, Caetano, Gil , Torquato Neto , Rogério Duarte , Capinam , Tom Zé , Rogério Duprat e outros participantes conseguiram criar uma nova imagem e um novo pensamento sobre um Brasil que atravessava um processo autoritário de modernização em meio a uma brutal desigualdade social. Ao reivindicar os signos de uma cultura de massas precária e globalizada, produziram, sim, através de sua arte uma visão singular do país que reverbera até hoje.

IHU On-Line – Aliás, qual a importância da obra de Caetano para atualizar o sentido do Modernismo brasileiro?

Frederico Coelho – Essa pergunta precisa ser pensada na sua dimensão mais ampla, isto é, a premissa de que movimentos culturais funcionam a partir de uma continuidade linear, com legados passando entre gerações. Acho que muitos além de Caetano sempre atualizam o sentido do Modernismo – mas também teríamos de precisar melhor qual o sentido que ele atualizaria. O Modernismo em seu período heroico foi um movimento cujas premissas articulavam ideias como invenção formal, ruptura com estéticas estabelecidas, mergulho nas temáticas urbanas e rurais do Brasil, atualização da informação cultural internacional etc. Se pensarmos por esses princípios gerais do Modernismo, sem dúvida que o trabalho de Caetano Veloso atualiza o que a geração do Modernismo da década de 1920 apresentou em seus trabalhos. Se pensarmos como a “formação da literatura brasileira” de Antonio Candido, o tropicalismo musical seria um dos “momentos decisivos” dessa linhagem que passa pelo Modernismo. Só que é preciso lembrar que as informações que alimentaram a formação de Caetano não passam necessariamente por essas fontes, mas sim por outras que já vinham do cinema norte-americano, francês, italiano, das canções de João Gilberto , Dorival Caymmi , Chet Baker e Ray Charles , da literatura de Clarice Lispector e Guimarães Rosa ... Portanto, é claro que o Modernismo é parte disso tudo, dessa abertura cultural do Brasil para o mundo, da possibilidade de termos um país que se pensa em perspectiva cosmopolita e popular, mas a obra de Caetano não é necessariamente uma continuidade ou atualização do Modernismo.

IHU On-Line – Como a obra musical de Caetano dialogava, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, com outros movimentos artísticos do período, tais como a poesia concretista de Oiticica e Pignatari?

Frederico Coelho – Essas ligações ocorreram durante esse período pelos contatos que esses grupos de artistas e intelectuais travavam na época. São trajetórias que vão se encontrando, como as de Hélio Oiticica e os Irmãos Campos , que se conheciam desde a década de 1950, de Caetano com os irmãos Campos e Décio Pignatari a partir da aproximação que Augusto de Campos promove com suas críticas musicais (publicadas no livro Balanço da Bossa e outras bossas), de Oiticica e Caetano através de uma amiga em comum, a jornalista e fotógrafa Marisa Alvarez Lima , e obviamente pelas afinidades que suas visões artísticas apresentavam. Mesmo que o uso da obra “Tropicália”, de Hélio Oiticica, tenha virado título da música de Caetano por acaso (eles nem se conheciam na época), logo depois os artistas se tornaram próximos. Caetano nunca foi um adepto das vanguardas construtivistas brasileiras – como os concretos e Oiticica foram –, mas sempre compartilhou da visão experimental e internacionalista que eles promoveram no final dos anos 1950. Esse laço seguiu por diversos outros caminhos, como na relação de Caetano com Waly Salomão, Lygia Clark , Paulo Leminski ou Cid Campos.

IHU On-Line – Como a chamada “Marcha contra as guitarras elétricas” e a resposta de Caetano com os Beat Boys (e Gil com os Mutantes), no Festival de Música da Record, foi um momento importante na história da cultura brasileira?

Frederico Coelho – Foi importante porque se tornou relevante naquele contexto e momento do debate sobre música e cultura brasileira de então. A guerra fria, a ditadura civil-militar e a tradição nacionalista da esquerda brasileira faziam com que boa parte da intelectualidade do período visse, nos valores de uma “cultura popular” ligada aos ideários que o CPC da UNE e outros grupos da época promoviam (como o Teatro Opinião ou o Arena), o caminho “sério” e “consciente” dos artistas que tinham espaço e lançavam seus trabalhos. A proposta de uma música que fosse aberta às inovações estéticas e poéticas do rock internacional, que utilizasse o componente elétrico – guitarras e baixos – como forma de ampliar as possibilidades da canção popular feita no Brasil, fez com que os compositores baianos e seus parceiros paulistas demarcassem um novo espaço. Nem eram os engajados acústicos das canções de protesto, nem eram os inocentes da jovem guarda que agitavam a garotada nas tardes de domingo. Eles eram jovens, pops e políticos. Usavam guitarras, mas também berimbau, cantavam a Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, sertão e espaço sideral. Isso, naquele momento, redefiniu as fronteiras do que seria uma música feita no Brasil, permitiu novas abordagens estéticas, novas leituras do cotidiano brasileiro e incorporou definitivamente na canção popular temáticas ligadas à juventude urbana do pós-guerra em suas contradições, impasses, esperanças, horrores, consumismos e rebeldias.

IHU On-Line – Em que sentido Caetano Veloso incorporava o modelo de “Superastro” da geração setentista brasileira, como descreveu Silviano Santiago, e o que significa tal adjetivo?

Frederico Coelho – O Superastro é um termo criado por Silviano Santiago para abordar a persona pública de Caetano Veloso em um dos seus momentos definitivos na construção da idolatria ao redor de seu nome. Era 1972, Caetano retornava ao Brasil depois de quase três anos de exílio, e o público brasileiro e, principalmente, a imprensa alimentavam uma expectativa imensa sobre qual seriam suas opiniões, suas ideias, suas músicas ao retomar seu trabalho no Brasil. Ali, se rompia a fronteira entre a vida pública e a vida privada do cantor, fazendo dele uma espécie de símbolo geracional. Suas opiniões eram demandadas na mesma medida em que suas roupas eram comentadas, seus hábitos, seu corpo. É como se o corpo do artista fosse uma síntese de sua obra. Isto fez de Caetano tanto um astro no sentido pop quanto um nervo exposto de impasses da cultura brasileira após os anos 60.

IHU On-Line – Qual a atualidade da canção “Tropicália” em um Brasil cuja eterna promessa de futuro não cessa de nunca chegar?

Frederico Coelho – “Tropicália” é uma canção sempre atual porque ela fala de situações estruturais do país e de sua história. Os contrastes sociais, os impasses sobre nossa condição colonial e o desejo permanente de modernidade, o comentário sobre ícones da cultura popular e erudita, tudo isso faz com que a canção de Caetano fale de todas as temporalidades – inclusive desses futuros que nunca chegam. É conhecida a veia sebastianista de Caetano nesse período, e “Tropicália” liga Pero Vaz de Caminha a Brasília, projeta justamente o paradoxo que nos impede de atingir um horizonte que podemos chamar de “primeiro mundo” ou seja lá o horizonte utópico que pode ser projetado para o país.

IHU On-Line - Quais são as principais semelhanças e diferenças entre o “jovem” Caetano e o “velho” Caetano do ponto de vista artístico e político?

Frederico Coelho – Acho que as diferenças são naturais para qualquer artista que atravessa mais de cinco décadas de carreira em constante produção. As exigências vanguardistas que percorreram o seu trabalho entre as décadas de 1960 e 1980 passaram aos poucos a se adaptar às demandas de uma indústria fonográfica que se tornou imensa, densa e tensa. Após uma fase de projetos que mostravam a “maturidade” de Caetano – discos em diferentes línguas visando o mercado internacional –, ele retoma uma série de trabalhos ao lado da banda Cê, com canções inéditas que marcaram uma renovação de público no século XXI. Paralelamente aos seus diferentes caminhos sonoros, sua personalidade pública foi sendo deslocada do “superastro” para uma personalidade cada vez mais famosa, porém com outras formas de se colocar em público de acordo com as fases de sua vida. Afinal, estamos falando de um artista que, apesar de ainda inquieto, incorpora cada vez mais a presença dos seus filhos, se tornou avô e já não precisa seguir expectativas sobre sua “tradição da ruptura”.

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição