Edição 545 | 18 Novembro 2019

Além do que se vê

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João Ladeira

“Parasita fala sobre o mundo – desemprego, crise e pobreza – ou sobre o próprio cinema?”, indaga João Ladeira sobre o filme vencedor da Palma de Ouro 2019.

Cena do filme

Eis a resenha.

Só um cego não enxergou o que Parasita (Gisaengchung, 2019, de Bong Joon-ho) pretendia dizer. A Palma de Ouro de 2019 se revelou uma alegoria potente sobre a crescente desigualdade, com uma perspicácia que Bong mal arranhara em seus trabalhos anteriores.

Impossível ignorar a menção ao desemprego na história sobre o moleque que, baseado numa matrícula universitária que não tem, descola um serviço de professor de inglês para uma menina rica; e, em seguida, põe na gig a irmã, fingindo-se de terapeuta; o pai, de motorista; e a mãe, de governanta.

Há pitadas da ironia no paralelo sul-coreano entre realidade e ficção: o impeachment de Park Geun-hye mesclado à relação com Choi Soon-sil. A farsa dá o tom de Parasita, transformando seu comentário social num cinema exemplar.

Há muitos hustlers nessa arte, e o gênero que desabrochou desde Golpe de Mestre (The Sting, 1973, de George Roy Hill), volta e meia produz espécimes hilários. Mas a família Kim se destaca com folga da multidão.

Cartas na manga

Esses vigaristas fazem alguém acreditar em algo, e sua melhor estratégia reside no disfarce. Assumem o lugar de outrem, e, com truques de mão, acenam com aquilo que o outro espera para obter o que pretendem.

Após os Kim se infiltrarem na vida dos Park, os ricaços do filme, eles experimentam na mansão o sabor da riqueza – literalmente. Quando os patrões viajam por uns dias, trocam a vista da cave onde moram pela do jardim chique.

Mas, quando Moon-gwang (Jeong-eun Lee), a governanta recém-despedida, ressurge numa visita inesperada, começa um absurdo: um bunker e o marido da ex-empregada refugiado no subsolo.
Geun-se (Myeong-hoon Park) tem dívidas impagáveis: ele e o patriarca dos Kim, Ki-taek (Kang-ho Song), investiram num mesmo negócio frustrado. É didático o paralelo entre companheiros de classe: duas famílias proletárias, dois buracos no solo. Tudo nos lembra dos sacos de batatas que não ficam de pé.

Risadas disparatadas

Mas Parasita é mais que acenos fáceis. Há um diálogo entre gêneros mais denso que clamores por unidade proletária. Os pobres têm seu quinhão de vigarice, e essa malandragem diz muito. Curioso, mas o que se desdobra daí são momentos dignos das melhores screwball comedies.

Nesses filmes, há pilantras do porte da Jean (Barbara Stanwyck) de As Três Noites de Eva (The Lady Eve, 1941, de Preston Sturges). Mas também, cruzamentos inauditos entre ricos e pobres: Tracy (Katharine Hepburn) e Mike (James Stewart) de Núpcias de Escândalo (The Philadelphia Story, 1940, de George Cukor).

Importante é que tudo acabe em perseguições, tropeços e embates, e os de Parasita são dignos da conclusão de Levada da breca (Bringing Up Baby, 1938, de Howard Hawks).

Bong se aproximaria da comédia maluca, mas há um caminho não percorrido. Seria necessário um romance para essa conexão, mas Parasita o evita. Existe uma brevíssima alusão ao affair de "Kevin" (Woo-sik Choi) e Da-hye (Jung Ziso), mas isso rapidamente desaparece.

A comédia maluca continha um embate entre potências, do qual a relação entre sexos era consequência, e não causa. Os casais se constituíam por sua escolha de tornarem-se tudo que poderiam ser – afinal, não é para isso que homens e mulheres deveriam ficar juntos?

Foi o diagnóstico brilhante de Stanley Cavell em Pursuits of Happiness, deslocando o entendimento banal desses filmes como histórias da Depressão. Ressurgia uma tensão extensa, indo de Conto do Inverno até as falas de Hepburn e Cary Grant.

Nisso, Parasita dá um passo atrás. Não escapa nem um tanto da Crise de 2008 – simplesmente porque não quer. Eram fantasias dos anos 1940 os intercâmbios entre diferenças inconciliáveis, quando se concedia soluções oníricas às tensões mais extremas.

Bong está no extremo oposto do cavalheirismo de Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night, 1934, de Frank Capra). A Muralha de Jericó não vai se desfazer nem existe um Peter Warne (Clark Gable), digno a ponto de ater-se a seus US$ 39,60.

Artistas do mesmo

Na comédia maluca, a luta por palavras permitia ultrapassar limites prévios em direção a outro encontro. Mas os personagens de Parasita – ao menos os do ramo proletário – não se inventam, apenas se adaptam ao que encontram pela frente.

Esses artistas desconhecem outro jogo – e a narrativa se apropria dessa incapacidade. O romance entre classes dos casais da screwball comedy era apenas um indício do renascimento que envolvia as escolhas sobre como amar.

Parasita toca o tema, negando-se tal solução. Para os pilantras, Bong poderia seguir o cinismo de Sturges. Seu final conseguiria flertar com a ingenuidade de Capra, no paralelo "Kevin"/Da-hye – Warne/Ellie (Claudette Colbert). Mas tudo leva de volta ao bunker.

Muita coisa mudou desde a última, longa jornada à cave – nossa e deles. As escadas do filme – e são várias – convergem para a descida até a casa alagada. Há degraus na chegada da mansão e no caminho do subsolo, mas essa passagem é diferente.

Logo depois, o filme se volta à matança digna dos filmes de horror. O sangue na festinha de aniversário provoca outro riso, o da violência B. Desde o esconderijo sob a mesa de centro dos Park, os Kim terminam diferentes do que começaram.

Ignorar a rotina enriquece Parasita: basta pensar nas impossibilidades do exílio na conclusão do filme, esse que vai durar até o fim dos tempos. A complexidade do nosso tempo vai além do que se vê.■

Ficha técnica

Cartaz do filme

Título original: Gisaengchung
Ano: 2019
Direção: Bong Joon-ho
Gênero: Comédia | Drama | Thriller
Nacionalidade: Coreia do Sul


Assista o trailer

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