Edição 545 | 18 Novembro 2019

Reinscrever no mundo uma estética e uma ética Comunicação

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Ricardo Machado

Luis Mauro Sá Martino analisa os fenômenos culturais e comunicacionais em perspectiva com a possibilidade de pensarmos nosso estar no mundo pautado na relação com as alteridades

Pensar a Cultura Pop no âmbito da pesquisa em Comunicação significa, antes de tudo, pensar os seres humanos em sua complexidade e sua capacidade de fazer circular e midiatizar afetos. “Se [a Cultura Pop] é uma prática cultural, humana, merece ser objeto de reflexão. A meu ver, não existem objetos de pesquisa ‘nobres’ ou ‘fúteis’, existem abordagens mais ou menos profundas ou superficiais de qualquer objeto”, pondera o professor e pesquisador Luis Mauro Sá Martino, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

Nesse sentido, pensar as epistemologias da Comunicação em uma perspectiva mais aberta, implica “um gesto em direção à alteridade, esforço no sentido de encontrar algo parecido – não idêntico – que permite construir vínculos, interações, percepções comuns. É um esforço no sentido de chegar ao outro, esse ‘semelhante dessemelhante’, como define o poeta mexicano Octávio Paz. Nessa articulação entre o comum e o diferente, acredito, há um dos espaços possíveis para a Comunicação”, pontua o entrevistado.

A alta permeabilidade da Comunicação nas mais diversas esferas da vida humana e social permite com que seus objetos e as teorias ofereçam discussões éticas e estéticas profundas. “A comunicação ligada à estética como parte da construção da relação com o outro, seja mediada ou não pelo meio técnico. Isso demanda abertura, tempo, interesse – no sentido do ‘inter-esse’ o que está ‘entre os seres’, na diferença”, sustenta Martino. “Tendo a pensar a comunicação como uma ética da alteridade, trabalhando a partir, entre outros, de Emmanuel Lévinas e Edith Stein”, complementa.

Luis Mauro Sá Martino é doutor em ciências sociais pela PUC-SP. Foi pesquisador-bolsista na School of Political, Social and International Studies na University of East Anglia, Inglaterra. É professor no mestrado, na graduação e na pós-graduação lato sensu na Cásper Líbero. Também leciona no curso de música da Faculdade Cantareira.

Coautor de O habitus na Comunicação (Paulus, 2003) e autor de Mídia e Poder Simbólico (Paulus, 2003), Comunicação: troca cultural (Paulus, 2005), Estética da Comunicação (Vozes, 2007), Teoria da Comunicação: ideias e conceitos (Vozes, 2009) e Comunicação e Identidade (Paulus, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a Cultura Pop mergulha no mundo da epistemologia da Comunicação?

Luis Mauro Sá Martino – Essa articulação pode acontecer de várias maneiras. Uma delas é trazendo novos objetos de pesquisa para a Área de Comunicação, relacionados ao entretenimento e à cultura pop. Isso pode incluir referências bem amplas, desde séries de tv, filmes blockbusters, super-heróis, memes de internet, sagas como Harry Potter, Star Wars e O Senhor dos Aneis, música pop, passando pelos estudos sobre fãs e assim por diante. Esse universo, no qual muitas e muitos de nós estão inseridos desde que nascemos, participando de maneira mais ou menos ativa, traz vários desafios epistemológicos para a Comunicação – como estudar esses novos objetos? A partir de quais teorias? Como eles nos desafiam a pensar a comunicação e, em particular, as interações que estabelecemos uns com os outros?

IHU On-Line – Qual a importância política e de produção do conhecimento realizar aproximações entre a teoria e os objetos culturais da vida cotidiana?

Luis Mauro Sá Martino – Do ponto de vista acadêmico, penso que é muito importante realizar esse tipo de aproximação. Se é uma prática cultural, humana, merece ser objeto de reflexão. A meu ver, não existem objetos de pesquisa “nobres” ou “fúteis”, existem abordagens mais ou menos profundas ou superficiais de qualquer objeto. E há espaço, na academia, para vários tipos de saber. Eles podem caminhar paralelos, entrar em diálogos, iluminar uns aos outros – e também mostrar as potências e os limites de cada um.

Mas há, a meu ver, outro ponto.

O conhecimento e sua busca podem ser entendidos como um modo de vida. Não no sentido, às vezes um pouco imediato, de “aplicar” esta ou aquela ideia, mas, antes, de “viver” o conhecimento. Assim como temos nosso filme preferido, podemos ter nossas teorias, conceitos e métodos favoritos – ser “fã” desta autora ou autor. Isso pode ajudar a ler melhor o cotidiano. E também, nas muitas dimensões da vida humana, saber que há o momento de assistir como fã e outro como pesquisadora ou pesquisador – uma atividade não desmerece ou anula a outra. Se posso dizer isso em tom mais leve, quero que os jedi restaurem a justiça na Galáxia quando assisto Star Wars, mas em outro momento quero analisar os significados políticos da trama.

IHU On-Line – Nos termos que o senhor tem pensado as epistemologias da Comunicação, como compreende o conceito de Comum?

Luis Mauro Sá Martino – Quantos anos eu tenho para responder essa pergunta, rsrs? Há várias acepções da palavra, e não sei se é o momento – ou o caso – de retomá-las aqui. Uma dessas dimensões é a ideia de um gesto em direção à alteridade, esforço no sentido de encontrar algo parecido – não idêntico – que permite construir vínculos, interações, percepções comuns. É um esforço no sentido de chegar ao outro, esse “semelhante dessemelhante”, como define o poeta mexicano Octávio Paz . Nessa articulação entre o comum e o diferente, acredito, há um dos espaços possíveis para a Comunicação.

Há também uma dimensão política na palavra – e aqui retomo a argumentação de várias autoras e autores, sem pretensão de ser original. A palavra “comum”, do latim “communis”, pode ser pensada em pelo menos duas vertentes. De um lado, relacionada ao grego antigo “koinos”, que definia o espaço público, da conversa, em oposição ao “oikos”, o espaço particular. Mas também, como lembra Roberto Esposito , liga-se a “com-munus”. “Munus” é uma palavra de difícil tradução direta, mas implica a relação de troca e confiança que se estabelece entre pessoas. Penso que o “comum” pode ser pensado em todas essas dimensões.

Em todos esses casos, um possível ponto de contato me parece ser justamente esse movimento na direção do outro, um ponto de partida para a interação.

IHU On-Line – Que tipo de experiência estética tende a ser produzida pela Cultura Pop?

Luis Mauro Sá Martino – Tendo a ver a experiência estética como algo – paradoxalmente, dada a etimologia da palavra – produtivo, relacionada mais à interação da pessoa com o objeto do que no objeto, de maneira exclusiva. Certamente há especificidades na estética da cultura pop, mas penso que isso só poderia ser respondido examinando as condições de recepção, leitura e reelaboração da cultura pop. Até porque, vale lembrar que essas definições – “cultura pop”, “entretenimento”, “cultura clássica” – são relativas, e valem até certo ponto: algo “popular” no século XIX talvez hoje seja incluído entre a cultura “clássica”. Podemos pontuar isso também.

IHU On-Line – Nesse sentido, como o delineamento das experiências estéticas podem contribuir para a construção de uma epistemologia da Comunicação?

Luis Mauro Sá Martino – Outra pergunta para alguns anos de conversa, rsrs. Penso que isso está ligado ao entendimento que temos de “comunicação”. O que chamamos de “comunicação”? Essa pergunta, talvez sem resposta única, é uma das possibilidades abertas em nossa área. É possível, por exemplo, entender a comunicação como uma experiência estética, pautada na aesthesis, na sensibilidade em relação ao outro. Particularmente, entendo que essa sensibilidade é um dos elementos importantes para a comunicação – mas não o único. Nesse ponto, tendo a pensar a comunicação ligada à estética como parte da construção da relação com o outro, seja mediada ou não pelo meio técnico. Isso demanda abertura, tempo, interesse – no sentido do “inter-esse” o que está “entre os seres”, na diferença. Mas não vejo uma maneira única disso acontecer: a pluralidade contraditória me parece ser uma das marcas do humano.

IHU On-Line – De que forma o encontro com o Outro passa a operar como vetor fundamental para pensar a Comunicação em seu sentido epistemológico, desta vez sem recorrer aos meios de comunicação como vetores de análise?

Luis Mauro Sá Martino – Nesse ponto, retomando, tendo a concordar com colegas para quem a comunicação se delineia como um fenômeno estético, cognitivo e afetivo, que pode se dar em vários tipos de meio – inclusive os técnicos. Do outro lado da tela existe um ser humano, e mesmo as disposições técnico-algorítmicas de alguma maneira se apresentam como meios, não fins em si. Tomo cuidado para não considerar o meio como centro, do processo de comunicação, no que chamam de “midiacentrismo”.

Quando às vezes ouço perguntas como “as redes sociais fazem isto?” ou “os meios fazem aquilo?” procuro lembrar que redes e meios não fazem – seres humanos fazem.

Isso não significa diminuir a importância e o poder de agenciamento de atores não-humanos. A questão é recordar que eles estão inseridos em uma história e uma sociedade com a qual interagem, sem relação de precedência, muito menos de causa e efeito, entre qualquer um dos termos. Procuro pensar nisso como um cuidado epistemológico para pensar a comunicação.

IHU On-Line – Como converter a alteridade em vetor de constituição de um conceito de comunicacional?

Luis Mauro Sá Martino – Acrescente mais uns anos na conversa por favor, rsrs. Se posso arriscar a auto-referência a um texto (situação amenizada pelo fato de ter sido escrito em parceria com a professora Angela C. S. Marques, da UFMG), tendo a pensar a comunicação como uma ética da alteridade, trabalhando a partir, entre outros, de Emmanuel Lévinas e Edith Stein . Comunicamos com alguém, ou, jogando com as palavras, comunicamos junto-com alguém, algum ser que percebe isso – podemos incluir os animais? – e se apresenta como um segundo em relação a nós. O encontro com o outro também tem a potência de nos deslocar em relação a nós mesmos – e temos, aí, um delineamento da relação de comunicação.

IHU On-Line – De que forma as questões do campo religioso e da Cultura Pop convergem? Em quais pontos divergem?
Luis Mauro Sá Martino – Acho importante destacar que são campos diferentes, com lógicas próprias, modos de ser e de agir próprios. Cada um deles com seus objetivos, que convergem em alguns momentos e em condições específicas. Essa interação parece agir principalmente – mas não só – de duas maneiras.

De um lado, com a presença de temas religiosos nas produções da cutura pop. As primeiras representações religiosas, na mídia tecnológica, nascem praticamente junto com o cinema, mais de um século atrás, e se mantém com certa regularidade. Isso poderia também se aplicar a livros, músicas, filmes e séries de TV que encontram nas religiões e religiosidades – note que o espectro de “religião”, aqui, é bem amplo – material para suas produções.

De outro, essa convergência acontece quando denominações e instituições religiosas se articulam com as linguagens e os produtos da mídia para divulgar sua mensagem. Por exemplo, quando programas religiosos de TV ou canais religiosos no Youtube se valem da linguagem e códigos desses meios para veicular a mensagem institucional. Em uma de suas partes mais visíveis, encontramos produtos midiáticos – filmes, músicas, telenovelas – produzidas por instituições religiosas no sentido de levar sua mensagem em uma linguagem já familiar ao público.

Essa relação, no entanto, tem alguns limites. Por exemplo, e isso é um desafio para as denominações religiosas, até que ponto é possível articular uma mensagem religiosa com linguagens laicas da mídia. Ao transformar um tema religioso em uma série de TV, por exemplo, pensar em como manter a fidelidade ao texto ao mesmo tempo em que é necessário fazer adaptações para a teledramaturgia.

A relação é próxima, mas não linear.

IHU On-Line – Não haveria contradições em pensar aspectos do campo religioso atravessados pela Cultura Pop?

Luis Mauro Sá Martino – Ao menos na história do ocidente, as religiões e denominações religiosas sempre fizeram uso das linguagens disponíveis – ou, em termos mais teóricos, elas sempre se adaptaram ao ambiente midiático de sua época, de maneiras diferentes.

Em outro momento, procurei trabalhar uma metodologia para entender esse fenômeno em termos do que chamei de “alta mediação” e “baixa mediação”. Algumas religiões e denominações parecem ter, na ligação com o ambiente da mídia, uma de suas características fundamentais – o que denomino “alta mediação” – enquanto, para outras, a presença nesse ambiente é mínima – denominações de “baixa mediação”. Essa construção metodológica auxilia a pensar os termos dessa relação.

A articulação entre o ambiente midiático e práticas sociais – no caso, a religião – pode ser definido como um processo de midiatização. A midiatização da religião, em suas várias e diversas formas, pode ser entendida como uma articulação entre a mensagem institucional e um ambiente midiático em plena transformação. Essa articulação não é desprovida de tensões e conflitos, mas é também uma possiblidade de aumentar a visibilidade pública das denominações religiosas em uma linguagem com a qual somos todas e todos familiares. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição