Edição 544 | 04 Novembro 2019

Os riscos da “gourmetização” na Educação 4.0

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João Vitor Santos

Roberto Dias da Silva traz questionamentos sobre as transformações que a Revolução 4.0 leva à Educação, reconfigurando a sala de aula de um espaço de pensamento para um ‘quiz’

O mundo já não é mais como era, as crianças e jovens também não; logo, a escola precisa se transformar. Em si, não há problema nessa afirmação. O problema está em pensar no que consiste essa transformação da escola. O professor Roberto Dias da Silva traz algumas provocações nesse sentido. Segundo ele, a emergência de trazer para a sala de aula um ambiente revolucionário e tecnológico, típico da Revolução 4.0, tem proporcionado algumas distorções. “Com a finalidade de formar os novos líderes globais, assistimos ao advento de novos dispositivos de estetização pedagógica marcados pela personalização, pela customização e pela gourmetização dos fazeres escolares”, aponta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

O maior problema, pontua o professor, é quando, na sala de aula, se relega o espaço do pensar em prol de grandes performances educativas. Em muitos casos, como ele aponta, a preocupação parece estar só na performance. “Em termos pedagógicos, tenho interrogado sobre o futuro da aula – não com uma atitude nostálgica –, mas procurando delinear possibilidades para as escolas e as universidades. O que fazer quando a aula deixa de ser um ‘espaço de pensamento’ e se converte em um ‘quiz’?”, questiona.

Para Roberto, “o desafio que precisamos tratar com cautela refere-se à necessidade de preservar as possibilidades de uma pauta formativa comum e, mais que isso, posicionar o conhecimento escolar (acessível a todos) como uma ferramenta de combate às desigualdades”. Por isso, indica que “as articulações entre educação e tecnologias digitais, em termos curriculares, implicam em seguir valorizando a escola como um espaço em que se aprende a pensar”. Afinal, como resume, “inovação metodológica desprovida de um debate sobre os propósitos formativos resvala facilmente para certo utilitarismo”.

Roberto Rafael Dias da Silva é doutor em Educação, professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos, onde atua na linha de pesquisa “Formação de professores, currículo e práticas pedagógicas”. Recentemente, publicou os seguintes textos: Curricular policies for Secondary Education in Latin America: Between capacities and opportunities (revista European Journal of Curriculum Studies), Currículo e conhecimento escolar na sociedade das capacitações: o Ensino Médio em perspectiva (revista E-Curriculum) e Investir, inovar e empreender: uma nova gramática curricular para o Ensino Médio brasileiro (revista Currículo sem Fronteiras).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a Revolução 4.0 impacta os processos de ensino e aprendizagem?

Roberto Rafael Dias da Silva – Minhas investigações recentes centram-se nas relações entre estetização pedagógica, aprendizagens ativas e práticas curriculares no Brasil. Examino alguns relatos de experiências exitosas, de práticas nomeadas como inovadoras e interativas, e por meio deles procuro descrever e analisar suas implicações para a composição de uma agenda formativa no século XXI. Desenvolvo uma leitura marcada pelas ambivalências, uma vez que questiono a incapacidade destas novas práticas em produzir dispositivos de governança escolar democrática e de enfrentamento das desigualdades; mas, ao mesmo tempo, reconheço sua potencialidade para produzir novos arranjos formativos, com design inovador e capaz de mobilizar nossas subjetividades. Em minha última obra, lançada pela editora Cortez no decorrer deste mês , argumento em favor de novas formulações pedagógicas, capazes de ampliar nossos horizontes de reflexão por meio da promoção de leituras críticas e criativas para as demandas emergentes deste nosso tempo. Foi neste contexto investigativo que acabei construindo uma aproximação ao conceito de Revolução 4.0 que comentarei neste momento.

Quando nos propomos a um exercício de pensar sobre a Contemporaneidade, seja em termos políticos e econômicos, seja em termos culturais ou pedagógicos, certamente estaremos diante de uma grande variedade de desafios, perspectivas e controvérsias. No que tange a tais desafios, em termos econômicos adquiriu relevância na última década a hipótese de que estaria emergindo uma “quarta revolução industrial”. A partir dos escritos sistematizados por Klaus Schwab , preparados para o Fórum Econômico Mundial, toma forma a perspectiva de que “em sua escala, escopo e complexidade, a quarta revolução industrial é algo que considero diferente de tudo aquilo que já foi experimentado pela humanidade” (SCHWAB, 2016, p. 11). De acordo com o autor, a amplitude e a velocidade das mutações em curso produzem significativos impactos não apenas no mundo produtivo, mas também nas formas de comunicação, nas tecnologias e em nossas subjetividades. Em suas palavras, que têm adquirido ampla circulação em nosso país, “as mudanças são tão profundas que, na perspectiva da história humana, nunca houve um momento tão potencialmente promissor ou perigoso” (p. 12).

Questões como a inteligência artificial, a internet das coisas, a nanotecnologia, a robótica, dentre outras, parecem induzir mudanças também nas instituições, nas empresas e na sociedade civil, promovendo (com velocidade) novas formas organizativas e de produção de conhecimento. Destaca Klaus Schwab (2016), acerca deste aspecto, que “o conhecimento compartilhado passa a ser especialmente decisivo para moldarmos um futuro coletivo que reflita valores e objetivos comuns” (p. 12). Todavia, o autor privilegia compor uma justificativa para explicar por que estaríamos diante de uma “quarta revolução industrial”, procurando demonstrar que não se trata apenas de ufanismo tecnológico, mas a demarcação de uma efetiva coexistência entre tecnologia e sociedade.

Educação no contexto da Revolução 4.0

O conceito de Revolução 4.0, apesar de sua potencialidade, na teoria social contemporânea tem se mostrado insuficiente para explicar como único princípio de inteligibilidade as condições sociais emergentes em nosso tempo. Para caracterizar as mudanças em curso na escolarização juvenil, por exemplo, tenho lançado mão de uma literatura crítica, de caráter heterodoxo, que me permite maior mobilidade analítica. As noções de “nova morfologia do trabalho”, do brasileiro Ricardo Antunes , de “cosmocapitalismo”, de Christian Laval e Pierre Dardot , de “novo capitalismo” de Richard Sennett e de “estetização ilimitada do mundo” de Gilles Lipovetsky , têm me ofertado novas ferramentas conceituais para ampliar o diagnóstico acerca da educação no contexto da nomeada quarta revolução industrial.

No que tange aos desdobramentos para as questões do ensino e da aprendizagem, ainda careceremos de estudos com maior profundidade, uma vez que ainda predomina uma linguagem pouco crítica e com poucas incursões empíricas em milhares de escolas espalhadas pelo país. Os arautos das pedagogias inovadoras, com suas reconhecidas boas intenções, fazem apologias a determinadas concepções que somente repercutem nas escolas privadas das principais regiões metropolitanas brasileiras.

IHU On-Line – No que consiste a estetização pedagógica e quais as influências da Revolução 4.0 nesta prática?

Roberto Rafael Dias da Silva – Gostaria de começar a responder a esta pergunta por meio de outra indagação: você deseja que seus filhos cresçam e se desenvolvam como líderes e cidadãos globais? Por meio desta interrogação, o editorial de uma importante revista do mundo corporativo desafiava seus leitores, em novembro do ano passado, a pensar sobre as possibilidades de uma “educação 4.0”. Sob o título “Formando os líderes do futuro”, o periódico, por meio de uma longa reportagem, atribuía ênfase às proposições educacionais das escolas de elite, aos grandes empreendimentos no setor, aos avanços tecnológicos, à necessidade de inovações metodológicas e às novas potencialidades emergentes da educação digital. O escopo argumentativo da reportagem sugeria que “as novas escolas de elite se propõem a preparar os alunos desde cedo para serem cidadãos do mundo, capazes de resolver problemas globais e de gerir seus próprios empreendimentos”.

A nomeada “educação 4.0”, tal como esboçada nos discursos pedagógicos contemporâneos, sugere a proposição de novos modos de organização do trabalho escolar e, ao mesmo tempo, outros saberes e perspectivas para a formação humana no século XXI. Ainda de acordo com o texto jornalístico mencionado, “fluência digital, empreendedorismo, sustentabilidade, autonomia e habilidade para enxergar a necessidade do outro hoje são matérias tão importantes na formação desse futuro líder quanto os conhecimentos de ciências e matemática”. Como podemos constatar, parece projetar-se uma reorganização dos currículos escolares visando a formação de competências para estes novos líderes globais.

Associa-se a este cenário o processo de emergência de um novo agenciamento pedagógico, sugerindo novas conexões entre os saberes e a centralidade da aprendizagem. A referida reportagem, neste aspecto, lança mão de inúmeras pequenas entrevistas – incorporadas ao texto – com consultores e diretores executivos de importantes grupos educacionais privados. Exemplar nesta direção é o posicionamento de um reconhecido consultor no campo das tecnologias digitais em educação que afirma que “a escola não pode estar fechada em condomínios mentais”. Ou ainda, a fala da diretora executiva de um sistema de ensino: “queríamos oferecer uma escola que rompesse definitivamente os paradigmas da dinâmica escolar atual ao tirar o foco do ensino e colocá-lo na aprendizagem”.

Modernidade Pedagógica em declínio?

Distanciando-me da possibilidade de produzir discordâncias em torno desta “doxa curricular contemporânea”, hoje predominante como explica José Augusto Pacheco , minha intenção aqui – de forma bastante modesta – sugere a construção de um campo de controvérsia em torno destas questões. Com tal atitude, em minhas investigações pretendo aceitar os desafios advindos para as teorias curriculares; porém, buscando delinear algumas de suas principais lacunas. As construções da Modernidade Pedagógica – como o ensino e a transmissão cultural – entraram em declínio?

Com a finalidade de formar os novos líderes globais, assistimos ao advento de novos dispositivos de estetização pedagógica marcados pela personalização, pela customização e pela gourmetização dos fazeres escolares. Como explicam Lipovetsky e Serroy , um capitalismo artista favorece uma intensificação das lógicas do estilo e do design em favor de uma vida mais leve, lúdica e interativa . Em termos pedagógicos, tenho interrogado sobre o futuro da aula – não com uma atitude nostálgica –, mas procurando delinear possibilidades para as escolas e as universidades. O que fazer quando a aula deixa de ser um “espaço de pensamento” e se converte em um “quiz” ? Paradoxalmente, outras literaturas sinalizam as potencialidades formativas emergentes deste cenário.

IHU On-Line – Num mundo regido pelo estímulo e pela interatividade, a que transformações a relação entre aluno e professor em sala de aula está submetida?

Roberto Rafael Dias da Silva – Para responder a esta indagação, de modo a expandir estes paradoxos, vou percorrer o caminho das potencialidades da estetização pedagógica. Quando delineamos uma proposta curricular com foco nas articulações entre conhecimento, tecnologias e inovação, precisamos reconhecer a pertinência de pensar as relações pedagógicas de outros modos . Porém, para começar esta conversa sempre é importante enaltecer as diferenças entre a escola e as indústrias criativas, ou ainda potencializar a perspectiva de que esta instituição continua sendo um espaço para aprender a pensar.

Pérez-Gómez , em elaboração recente, reitera que “as finalidades da escola devem concentrar-se no propósito de ajudar a cada aprendiz a construir seu próprio projeto de vida (pessoal, social, acadêmico e profissional), transitando em seu próprio caminho da informação ao conhecimento e do conhecimento à sabedoria” (p. 71).

Nas palavras do pesquisador, precisamos reconhecer que a era digital requer da escola uma “nova ilustração”. Isto é, buscando superar “o velho e dualista pensamento cartesiano” (p. 69), levando em consideração a complexidade da vida contemporânea e os novos modos de pensamento que emergem com os estudantes do século XXI. O filósofo Michel Serres , em sua conhecida obra “Polegarzinha ”, descreve com certo entusiasmo as mudanças subjetivas que caracterizam as crianças e jovens de nosso tempo e, concomitantemente, o advento de um novo estatuto do saber. O excerto a seguir consegue evidenciar o entusiasmo do filósofo em relação a esta questão.

O espaço do auditório universitário se esboçava, antigamente, como um campo de forças, cujo centro orquestral de gravidade se encontrava no estrado, no ponto focal da cátedra, um PowerPoint ao pé da letra. Ali se situava a densidade pesada do saber, quase nula ao redor. Agora distribuído por todo lugar, o saber se espalha em um espaço homogêneo, descentrado, de movimentação livre (SERRES, 2018, p. 49).

Novos modos de pensamento e outras formas de relação com o saber emergem neste tempo em que as articulações entre tecnologias e inovação perfazem os currículos escolares. O desafio que precisamos tratar com cautela refere-se à necessidade de preservar as possibilidades de uma pauta formativa comum e, mais que isso, posicionar o conhecimento escolar (acessível a todos) como uma ferramenta de combate às desigualdades. Em outras palavras, tendemos a nos distanciar de posicionamentos pedagógicos que apregoam a “customização curricular”, como sinalizei em minha última obra.

Aprofundando esta reflexão sobre a ênfase na inovação, faz-se importante salientar que esta se movimenta por variados processos de melhoria e de transformação. No que tange à instituição escolar, explica-nos Carbonell-Sebarroja que seria necessário mudar, a partir de “distintos graus de radicalidade”, envolvendo os conteúdos curriculares, os modos de ensinar e aprender, a participação da comunidade educativa, dentre outros aspectos. Os processos de inovação sinalizariam, ainda conforme o autor, para a criação de uma “agitação intelectual permanente” – modificando os fazeres pedagógicos, promovendo outros sentidos para a aquisição de conhecimentos e o permanente diálogo com o entorno da escola (incluindo o virtual).

Nos termos da centralidade de uma cultura digital, Dussel interroga-se acerca da autoridade cultural dos currículos escolares. Em sua perspectiva, ainda que interpelado de diferentes modos pela cultura contemporânea, o currículo conserva relevância enquanto um documento público. Explica-nos a pesquisadora latino-americana:

O currículo segue tendo um papel importante em ajudar a colocar em destaque essas relações e histórias, em dar oportunidades para socializar em práticas culturais que permitam abordar essa tarefa com confiança, com desejo. Seria desejável que a teoria curricular não abandonasse a busca por novos mapas que circulem e transportem saberes, que sejam a matéria e o objeto de disputa e que permitam situar-se em um território mais amplo (DUSSEL, 2014, p. 17-18).

Escola: espaço em que se aprende a pensar

Assim sendo, reconhecemos a pertinência de preservar em nossos debates e em nossas propostas curriculares os aspectos que fomos destacando ao longo desta resposta. As articulações entre educação e tecnologias digitais, em termos curriculares, implicam em seguir valorizando a escola como um espaço em que se aprende a pensar, em preservar as possibilidades de construção de uma pauta formativa comum e do entendimento da inovação como uma ambiência de “agitação intelectual permanente”.

Atribuir ao currículo a autoridade cultural necessária às demandas emergentes do século não significa abdicar das indispensáveis inovações que a escola contemporânea pode engendrar. Mais que isso, a nomeada “educação 4.0” – descrita na reportagem com que abrimos esta conversa – pode adquirir significativa relevância e potencialidade pedagógica na medida em que esteja assentada em movimentos democráticos de escuta e negociação permanente com as comunidades escolares e fabrique mecanismos de formação humana que articulem os conhecimentos historicamente elaborados com estratégias criativas que auxiliem no combate de nossas históricas desigualdades.

IHU On-Line – Quais os desafios para desenvolver relações de ensino e aprendizagem com nativos digitais ou mesmo estudantes plenamente adaptados a um mundo em rede?

Roberto Rafael Dias da Silva – Quando nos propomos a analisar as articulações entre educação, formação e conhecimento, ingressamos em uma das questões mais emblemáticas do pensamento curricular. Reconhecemos, junto a Pacheco citado anteriormente, que a valorização do conhecimento não se constitui em uma novidade do nosso século – “a sociedade do conhecimento” –, mas trata-se de uma intensificação das construções pedagógicas erigidas na própria Modernidade. Afastando-nos de uma perspectiva estritamente filosófica, importante ponderar que o percurso do escolar “é a história desta operação em torno do conhecimento” (PACHECO, 2014, p. 7). Será nesta instituição que os processos em torno do conhecimento serão reposicionados.

Diante desta condição, poderíamos justificar a pertinência e a atualidade do exame crítico das políticas que definem o que conta como conhecimento na escola. A citação que segue constrói um campo de visibilidade para esta centralidade do conhecimento.

Porque a escola define, cada vez mais, os percursos de formação que são trilhados, a questão do conhecimento é central para a discussão de políticas sociais, econômicas, culturais e educativas, não sendo possível alguém alhear-se, por um lado, da importância que as organizações educativas assumem na complexa tarefa da produção e transmissão do conhecimento e, por outro lado, do lugar de destaque do currículo, entendido, no sentido lato, como um projeto de formação, que traduz a organização, seleção e transformação do conhecimento em função de um dado espaço, de um determinado tempo e de acordo com propósitos educacionais (PACHECO, 2014, p. 7).

Acerca deste projeto de formação, é importante ressaltar que a definição do que conta como conhecimento na escola é sempre inscrita no campo da controvérsia (SACRISTÁN, 2013), visto que a validade do conhecimento a ser ensinado deriva-se das condições históricas de seu tempo. Em outras palavras, o que conta como conhecimento escolar “é uma decisão que está em permanente debate, não sendo possível a existência de soluções meramente ‘científicas’ ou técnicas” (PACHECO, 2014, p. 8). Aprender mais ou estudar menos, por exemplo, são medidas difíceis de serem dimensionadas na contingência dos fazeres escolares. As possibilidades de educação e formação, pela via do conhecimento, configuram-se como incontornáveis campos de reflexão (GABRIEL; CASTRO, 2013). Disso deriva-se a pertinência de manter o currículo sob permanente tensão e afastar-se de determinadas posturas que buscam retomar a “velha” ordem da escola.

Lugar pedagógico

Importante destacar que não defendo uma visão idealizada da escola como guardiã do conhecimento produzido pela humanidade. Junto a Pacheco, mais uma vez, podemos ponderar que o conhecimento ocupa uma posição central na organização da escola e de seus currículos; todavia, importante reconhecer que este é derivado de uma escolha e que tal processo precisa ser permanentemente revisitado. Supõe-se também que “a escola e a formação sejam perspectivadas como projetos que ultrapassam a mera instrução” (p. 9). Nosso interesse, sob tal inspiração, requer uma crítica política dos processos de seleção do conhecimento escolar, impulsionada por uma atitude esperançosa de aposta no potencial formativo desta instituição.

Considero como desafio fundamental pensar o lugar pedagógico a ser encontrado pelos conhecimentos escolares na contemporaneidade. Isto é, as escolas e as universidades, antes de focalizar quais dispositivos metodológicos colocarão em ação, precisarão estabelecer uma discussão ampla sobre os processos de seleção dos conhecimentos. Inovação metodológica desprovida de um debate sobre os propósitos formativos resvala facilmente para certo utilitarismo. Em direção otimista, por outro lado, acredito que seja possível apostar no entrelaçamento entre currículo, inovação e tecnologias digitais visando aceitar seus desafios hodiernos, de maneira que não fragilizemos o processo formativo atinente à composição de uma escola democrática.

IHU On-Line – Em seu atual projeto de pesquisa, o senhor trabalha com experiências ditas “inovadoras” e “interativas” em sala de aula. O quanto de fato se fazem experiências inovadoras e interativas e o quanto se repetem velhos modelos em novas roupagens?

Roberto Rafael Dias da Silva – Minhas pesquisas colocam o Ensino Médio como foco privilegiado. Assim sendo, quando examinamos atentamente as possibilidades de novos agenciamentos curriculares para esta etapa da Educação Básica, merecem destaque duas estratégias colocadas em ação. Tais estratégias, importa destacar, acompanham a produção de reformas em nosso país ao longo das últimas duas décadas, variando em intensidade.

A primeira delas refere-se à necessidade de diversificação curricular. Tal estratégia vincula-se ao desenvolvimento de ambientes de aprendizagem com arquiteturas variadas, ao uso de tecnologias digitais (modelos híbridos) e à aposta em possibilidades curriculares que considerem a atividade e a escolha dos estudantes. De outra parte, diagnosticamos uma estratégia atrelada às possibilidades de educação integral. Via de regra, esta estratégia aposta em novas relações entre escola e comunidade, na construção de uma identidade institucional para o ensino médio e nas possibilidades de ampliação do repertório formativo dos estudantes, por meio de modelos holísticos (como as competências socioemocionais, por exemplo).

Entretanto, a articulação entre a diversificação curricular e as possibilidades de educação integral merecem uma reflexão mais aprimorada quando mobilizadas pelos diferentes sistemas de ensino públicos e privados. Quando analisamos as pautas formativas das escolas brasileiras, reconhecemos rapidamente que a educação das juventudes tem sido conduzida por princípios e procedimentos muito semelhantes. Isto é, há uma aposta consensual em modelos de certificação internacional, em escolas multilíngues, em metodologias ativas, em modelos de escolha curricular dos estudantes, em laboratórios de robótica e em oficinas de escrita criativa, dentre inúmeras possibilidades semelhantes a estas. Não resta dúvidas de que tais propostas evidenciam um potencial bastante interessante, porém poderíamos interrogar: quais são os nossos critérios para a diferenciação das propostas curriculares na atualidade?

O efeito da anomalia no mundo de iguais

A construção desta problematização permite, para ampliar o escopo de meu argumento, deslocarmos nosso olhar para uma metáfora extraída das narrativas cinematográficas. Michael Stone poderia ser considerado como uma celebridade no mundo corporativo, devido a suas obras na área de atendimento ao cliente. Na condição de ícone de uma nova forma de gestão, Michael viaja para Cincinatti, nos Estados Unidos, cidade em que preferiria uma palestra referente ao lançamento de uma de suas obras. É neste cenário que o roteirista Charlie Kaufman situa sua animação “Anomalisa”, apresentada ao público no ano de 2015.

Chama a atenção na narrativa apresentada por Kaufman que seu personagem principal não somente deixa de encontrar sentido no que faz, como também, paradoxalmente, passa a notar que as vozes de todas as pessoas tornaram-se iguais. De seu filho aos atendentes do hotel, ou mesmo aqueles que se tornariam seu público, todos falam no mesmo tom. O que quebra o artificialismo da situação de Michael Stone é a chegada de Lisa – tímida, desajeitada e com uma voz mais estridente. Enfim, Lisa converte-se em uma anomalia em um mundo de iguais, por isso: “Anomalisa”.

Não pretendo seguir contando a história do filme até o seu desfecho, nem mesmo avaliar a qualidade do seu enredo ou de sua edição. Também não interessa aqui examinar criticamente o potencial do filme para pensar as subjetividades contemporâneas. Considero “Anomalisa” – esta grande animação de Charlie Kaufman – como uma boa metáfora para pensar as pedagogias contemporâneas; sobretudo, aquelas que se propõem a inovar a escolarização juvenil. Comentando a obra de Kaufman, o filósofo Byung-Chul Han (2017) provoca-nos a pensar que a Contemporaneidade, por variáveis diversas (sobretudo econômicas) contribui para uma “expulsão do diferente”. Por meio de seu excesso de positividade, a sociedade contemporânea tem optado por “atrações em série”, nas quais os indivíduos “curtem” por meio de seu repertório de escolhas individuais. Todavia, em sua percepção, a individualização demasiada conduz à padronização, isto é, parece que “nosso horizonte de experiências se torna cada vez mais estreito” (HAN, 2017, p. 12). Tal como o enredo da animação referida, argumenta o filósofo que se engendra uma “proliferação do igual” (p. 18).

A animação de Kaufman permite-nos refletir sobre o contexto de implementação das atuais políticas curriculares para o Ensino Médio. Mapeando práticas curriculares no Brasil e na América Latina, minha constatação é que as propostas escolares estão cada vez mais parecidas, em especial nas redes privadas. São os mesmos laboratórios, os mesmos projetos, as ações de dupla certificação, a ênfase nos intercâmbios, as aulas de robótica, perfis formativos, modalidades de diversificação, mobilidade e plataformas complementares etc. Em nome da inovação permanente, os currículos escolares tornam-se cada vez mais semelhantes e, dessa forma, a história das instituições e os saberes e marcas das comunidades ingressam em amplo processo de declínio.

IHU On-Line – Quais os riscos da estetização pedagógica? Em que medida o conteúdo pode ser preterido a dinâmicas interacionais e, supostamente, de construção coletiva de saberes?

Roberto Rafael Dias da Silva – Em sua última obra, traduzida no Brasil sob o título Da leveza: rumo a uma civilização sem peso , o filósofo Gilles Lipovetsky defende que a leveza, enquanto mundo e enquanto cultura, tem se posicionado como a lógica explicativa de nosso tempo. Buscamos por objetos menores, mais leves, mais sedutores, mais interativos e mais econômicos. A leveza tem sido invocada como um princípio de bem-estar, de saúde, de moda, de design, de arquitetura e de economia. Nas palavras do filósofo, “a ligação com o imediato, o superficial e o leve não se reduz mais a uma atitude individual em relação à vida e aos outros. Ela agora se impõe como modo de funcionamento econômico e de cultura global” (LIPOVETSKY, 2016, p. 21). A leveza parece estabelecer-se como um princípio civilizatório.

Considerando a dinâmica social da “hipermodernidade”, tal como nomeia o contemporâneo, o filósofo argumenta que nossas vidas tornam-se marcadas pela instabilidade e pelas mudanças permanentes. Diferentemente dos valores que marcaram as gerações anteriores, no Ocidente, hoje “as pesadas imposições coletivas deram lugar ao self-service generalizado, à volatilidade das relações e dos engajamentos” (LIPOVETSKY, 2016, p. 22). Mudar de vida, combater as desigualdades e a eliminação da fome, por exemplo, declinam do status de utopias coletivas, cedendo espaço para um “momento detox” na qual visa-se estar bem com seu próprio “corpo e sua cabeça”. Insiste Lipovetsky que “a individualização extrema da relação com o mundo constitui a principal dinâmica social situada no coração da revolução do leve” (2016, p. 22).

Sem dúvida que a busca da leveza foi sendo concretizada ao longo dos últimos séculos e, atualmente, não seria inteligente desprezá-la, considerando as inúmeras potencialidades que ela oferece para a vida neste tempo. A crítica de Lipovetsky, em sua ambivalência, supõe nos auxiliar a perceber os seus excessos. Supõe o filósofo que “erigida como princípio ou como ideal de vida, a leveza é tão inaceitável quanto irresponsável” (LIPOVETSKY, 2016, p. 31). Em termos educacionais esta afirmativa possibilita significativas problematizações, interrogações ou pelo menos alguns alertas. Todavia, cumpre trazer presente a ressalva apresentada pelo filósofo francês: “a leveza é bela e desejável, mas não poderia ser estabelecida como princípio supremo que dirige a conduta do gênero humano” (p. 31). Penso que este seria efetivamente o principal desafio ético da estetização pedagógica como um princípio pedagógico, uma vez que nem sempre a leveza oferece-nos o melhor caminho para educar as novas gerações.

IHU On-Line – Quem é o aluno do século XXI? Quais os desafios para a formação de professores e a constituição de currículos que deem conta das necessidades desse aluno?

Roberto Rafael Dias da Silva – Em termos civilizacionais, problematizações de outra ordem são apresentadas por Michel Serres, em sua obra Polegarzinha (2013). Em sua perspectiva as mudanças culturais ocorridas na transição do oral para o escrito, do escrito para o impresso e, hoje, do impresso para o digital trazem em seu interior significativas mudanças de natureza política, social e, até mesmo, cognitiva. Em um contexto de crise, o filósofo busca descrever um novo perfil subjetivo emergente nestes tempos, uma problematização acerca da sociedade e da escola na qual este sujeito será educado. A descrição da subjetividade da Polegarzinha – esta criança/jovem que digita com os polegares – mesmo que não concordemos plenamente, traz implicações importantes para caracterizarmos as juventudes contemporâneas. A vida urbana, as novas configurações familiares, o contato com as diferenças, outras expectativas de vida e a convivência com o mundo digital contribuem para um novo modo de constituição subjetiva.

A “Polegarzinha”, de Serres, experiencia outras relações com o tempo e com o espaço. O contato com as mídias, como sabemos, modificou a forma de atenção. Nas palavras do filósofo, “nós, adultos, transformamos nossa sociedade do espetáculo em sociedade pedagógica, cuja concorrência esmagadora, orgulhosamente inculta, ofusca a escola e a universidade” (SERRES, 2013, p. 18). Com outras formas de acesso ao conhecimento, assim como pelo engendramento de outras formas de relações sociais, os jovens contemporâneos sentem-se desprotegidos, do que se deriva a necessária invenção de “novos laços”. Serres ainda realiza uma crítica aos adultos, qual seja: “a iniciativa generalizada de suspeitar, de criticar e de indignar-se mais contribuiu para destruí-los [laços sociais]?” (2013, p. 23).

O que ensinar aos jovens contemporâneos? Como transmitir saberes para a “Polegarzinha”? Serres descreve a necessidade de mudanças no pensamento pedagógico, atualizando-o a um tempo em que as funções cognitivas se transformaram.

De fato, há algumas décadas, vejo que vivemos um período comparável ao da aurora da paideia – depois que os gregos aprenderam a escrever e a demonstrar, semelhante à Renascença, que viu surgir a imprensa e ter início o reinado do livro. Mas, trata-se de um período incomparável, pois, ao mesmo tempo em que essas técnicas se transformam, o corpo se metamorfoseia, o nascimento e a morte mudam, assim como o sofrimento e a cura, as profissões, o espaço, os habitats, o ser no mundo (SERRES, 2013, p. 28-29).

No que tange ao ensino, o dilema apresentado pelo filósofo é “inventar novidades inimagináveis”. Emergem novas formas de pensamentos e a ação do professor necessitaria ultrapassar, em sua perspectiva, a “tagarelice”. Em outras palavras, recomenda um reposicionamento do papel dos professores para jogar luz nas criações da Polegarzinha.

Humanismo e a unidade na diferença

Sob outro prisma, Richard Sennett , em algumas de suas produções desta década, tem procurado caracterizar os sentidos do “humanismo”. Na medida em que, atualmente, há um predomínio do curto prazo e da competitividade exacerbada, o sociólogo optou por retomar o projeto humanista, tomando como ponto de partida a obra renascentista de Pico della Mirandola . Através de uma releitura deste humanismo renascentista, Sennett (2011) aponta a importância da questão da “unidade na diferença”.

Em sua percepção, esta questão auxilia-nos a valorizar a “voz” das narrativas individuais e a “diferença” que provém da arte da convivência (SILVA, 2015). A necessidade de estimular as pessoas a fortalecerem suas narrativas de vida, associada ao “encontro de sua própria voz”, torna-se uma dimensão importante. Explica Silva (2015) que “a voz, então, apresenta-se como importante elemento para a busca pela unidade, pela busca do distanciamento crítico em relação ao mundo e pela busca de nós mesmos” (p. 104).

Outro aspecto do humanismo sennettiano consiste na valorização da diferença. Para tanto, o sociólogo aposta em práticas de cooperação – informais e ilimitadas – como alternativas aos percursos profissionais cada vez mais competitivos. Da mesma forma, em termos educacionais, sugere que sejam fomentadas “relações abertas, narrativas de longo prazo e o combate às desigualdades” (SILVA, 2015, p. 105). Com tais preocupações Sennett defende ainda o rótulo “humanista”, sendo compreendido como “um símbolo de honra, e não a denominação de uma visão de mundo esvaziada” (2011, p. 30). A formação humana, dessa perspectiva, poderia ser reinscrita em novas configurações.

Em síntese, acerca das inquietações esboçadas nestas últimas perguntas, poderíamos sinalizar que reconhecemos os desafios apresentados por Michel Serres, em sua obra “Polegarzinha”, para pensar a formação humana na contemporaneidade. Todavia, escolhemos cotejá-la com duas outras leituras que nos permitem uma ampliação deste diagnóstico, quais sejam: a) com Lipovestky vislumbramos os limites e as possibilidades da emergência de uma “civilização da leveza”; b) com Sennett relembramos que a construção do humanismo é uma obra inacabada e necessária para o século XXI.

IHU On-Line – A reforma do Ensino Médio atende as demandas de preparação de jovens para um mundo em transformação e atravessado pela Revolução 4.0? Por quê?

Roberto Rafael Dias da Silva – Examinar academicamente e, ao mesmo tempo, pensar em possibilidades curriculares para o Ensino Médio não se constitui uma tarefa fácil. Há uma proliferação de políticas em torno desta etapa da educação básica e, concomitantemente, novos conceitos e demandas formativas têm emergido no debate pedagógico contemporâneo. O sociólogo Mariano Enguita afirma que “o ensino médio foi e é, há muito tempo, a encruzilhada estrutural do sistema educativo, o ponto no qual uns fatalmente terminam e outros verdadeiramente começam, no qual se jogam os destinos individuais à medida que podem depender da educação, no qual se encontram ou se separam – segundo as políticas públicas e as práticas profissionais – os distintos grupos sociais ” (ENGUITA, 2014, p. 10-11). Importa enaltecer que essa compreensão do ensino médio como uma “encruzilhada estrutural” traz implicações significativas para os variados sistemas de ensino.

Ao longo desta década tornaram-se recorrentes argumentos em torno de uma “crise” desta etapa da escolarização, nomeada como “apagão”, “falência” ou “desengajamento juvenil”. Tal fenômeno tem sido amplamente examinado pela literatura brasileira e estrangeira, via de regra pelas suas dificuldades em dialogar com as demandas juvenis, com o mundo da economia e com as expectativas sociais. O que parece consenso, de acordo com Sposito e Souza , é que “ao que tudo indica as reformas educacionais estão atrasadas, ou no mínimo descompassadas, em relação ao ritmo das demandas e do novo público que conquista o prolongamento da escolaridade sem a resposta adequada a essa conquista” (p. 42). O que se desdobra deste entendimento seriam, pelo menos, quatro indagações na direção de cotejar a reforma do Ensino Médio com o contexto advindo da nomeada Revolução 4.0:

a) como podemos conhecer os novos públicos?; b) como podemos diversificar o tempo de permanência da escola?; c) como preencher os currículos escolares com perspectivas/projetos de futuro?; d) que sentidos de qualidade as comunidades atribuem ao trabalho que desenvolvemos com os jovens?; e) como buscar maior aproximação do mundo do trabalho e sintonizar com os novos repertórios tecnológicos?; f) é possível construir formas curriculares inovadoras capazes de enfrentar as históricas desigualdades na escolarização juvenil?

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Roberto Rafael Dias da Silva – Como destaquei ao longo desta entrevista, minha investigação atual centra-se no delineamento de determinados dispositivos de estetização pedagógica. Tais dispositivos se proliferam no contexto de novas tecnologias emergentes da Revolução 4.0. Entretanto, conforme destaquei, realizo uma leitura que privilegia as ambivalências, isto é, ora consigo criticar a pouca preocupação com os critérios de seleção de conhecimentos escolares e com os propósitos educacionais, ora consigo perceber os avanços na composição de uma agenda formativa sintonizada com as demandas do século XXI. Trata-se da possibilidade de uma leitura crítica e criativa que aposta em modelos de governança escolar democrática para os currículos e que seja capaz de enfrentar nossas históricas desigualdades.

Precisamos lidar com maior cuidado analítico a questão da proliferação de novas ferramentas e dispositivos pedagógicos que apregoam a inovação a qualquer preço. Costumo dizer nas escolas que visito regularmente que é necessário suspeitar, enquanto intelectuais da nossa ação profissional, dessa nova indústria educacional que apregoa a inevitabilidade da inovação. Precisamos avançar na direção de um novo conceito de inovação que integre desenvolvimento econômico com novas formas de gestão do social – mais coletivas, negociadas e socialmente referenciadas.

A inovação, a partir da literatura que tenho trabalhado, necessita de uma dimensão comunitária e isto não se faz por obrigação ou pelos tentáculos sedutores do capitalismo contemporâneo. Minhas investigações ambicionam a composição de uma teorização curricular crítica que nos permita ultrapassar os dilemas entre as inovações permanentes e nossa incapacidade para enfrentar as desigualdades crescentes.■

Leia mais

- No discurso de crises, a busca por uma educação utilitarista e neoliberal. Entrevista especial com Roberto Dias da Silva, publicada nas Notícias do Dia de 13-7-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- A Base Curricular que reverencia a lógica da financeirização. Entrevista com Roberto Dias da Silva, publicada na revista IHU On-Line nº 516, de 4-12-2017.

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