Edição 542 | 30 Setembro 2019

O sopro de ar gélido de Nietzsche e Agamben que faz acordar para a resistência em nosso tempo

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Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos

Márcia Junges retoma, nos dois filósofos, pensamentos que ainda dão conta de motivar reações à opressão e ao controle totalitário da política na atualidade

Num mundo em que semelhantes morrem em barcos buscando terras melhores enquanto outros os tratam como invisíveis, em que periferias são suprimidas em prol de quem pode pagar por uma vista melhor e em que o capital parece reger tudo, até os afetos, não é de causar surpresa que nos sintamos como que amórficos, anestesiados. Para a professora e filósofa Márcia Junges, retomar a Filosofia Política pode ser um dos caminhos para sair desse estado e reagir. É no pensamento de Friedrich Nietzsche e Giorgio Agamben que ela observa uma potência insurgente. “Nietzsche e Agamben insuflam em nossos rostos o vento gélido da coragem, da resistência que faz nossas espinhas não se curvarem ao poder”, destaca na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Surgem daí formas políticas novas, nas quais o ruminar, o transvalorar, o profanar e o resistir nos desafiam a viver uma vida que dê a si própria a sua forma”, completa.

Márcia observa em Nietzsche um certo nivelamento rasteiro da democracia liberal ainda em seu tempo. Para ela, é um quadro muito similar ao que vivemos hoje. “Contra a loucura de estar de acordo com todos, Nietzsche nos provoca a tomarmos posição, a lutarmos nossas próprias batalhas e avançarmos não sobre os destroços dos vencidos, mas elevarmos nossa existência através de um espírito revigorado”, defende. Já Agamben observa uma matriz biopolítica da Antiguidade grega que deriva para a Modernidade, ainda tendo suas perspectivas recrudescidas. “Uma vida capturada, esvaziada em sua subjetividade, impelida a sobreviver, somente, é a grande maldição que herdamos da Grécia clássica, onde a biopolítica já era a categoria que estendia seus tentáculos no âmbito da oikos, da casa onde imperava o pater familias e seu poder discricionário”, explica Márcia.

Entretanto, a professora reconhece as dificuldades da insurreição, especialmente no atual contexto brasileiro. “As Humanidades, em um contexto amplo, são ‘inconvenientes’ porque se valem do pensamento crítico como seu principal eixo”, dispara. E por isso indica a potência de resistência, lembrando que isso é algo a ser sempre buscado. “A cada dia que passa, as lutas de pesquisadores das Humanidades se mostram ainda mais corretas e coerentes, pois fomentam o espírito livre”, conclui.

Márcia Junges é graduada em Jornalismo pela Unisinos, especialista em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil - Ulbra, mestra e doutora em Filosofia Política pela Unisinos e pela Universitá degli Studi di Padova - UNIPD, na Itália. É professora tutora na Unisinos. Entre suas publicações, destacamos A transvaloração dos valores em Nietzsche e a profanação em Agamben (Cadernos de Filosofia Política da USP - Especial II Encontro do GT de Filosofia Política Contemporânea, nº 28, 2016, p. 97-108). Foi, ainda, uma das organizadoras do Colóquio “Agamben: interfaces e encruzilhadas do pensamento contemporâneo”, parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos e o Instituto Humanitas Unisinos - IHU, de 13 a 15 de maio de 2019.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quando o deserto da imaginação transforma a política em escuridão e obscurantismo, qual a necessidade de se pensar outras formas de política? Qual a contribuição de Nietzsche e Agamben nesse projeto?
Márcia Junges – Nietzsche e Agamben elaboram críticas à política e à democracia liberal que são potentes para analisarmos nossa época, marcada pelo obscurantismo e pelo recrudescimento do fascismo e diferentes formas de autoritarismo, pelo domínio da biopolítica e do dispositivo da economia como preponderante à política. Seus escritos nos desafiam a repensarmos o protagonismo do sujeito político, que vota em processos eleitorais que em quase tudo remontam a manifestações de glória com roupagens seculares de espetáculo debordiano. Como é possível pensarmos em outras formas políticas se a gestão de necessidades parece ocupar o centro das preocupações?

Em nossa pesquisa de doutorado, essa e inúmeras outras inquietações surgiram e nos fizeram examinar a política e a democracia a partir do conceito de potência, que surge como seu fio condutor e articulador. No caso do pensador alemão, estudamos a ideia de vontade de potência , uma potência biológica que coloca a vida como valor supremo e justificação inesgotável, como critério último e mais elevado. Potência, em Nietzsche, não diz respeito à volição ou ao arbítrio. Trata-se da potência fisiológica, orgânica, de autoafirmação da vida. A grande política nietzschiana é aquela que irá tornar a fisiologia senhora de todas as outras questões, e não contém em si um significado político no sentido clássico do termo.

Por outro lado, a potência da transvaloração dos valores possui a possibilidade de inovar os sentidos já dados, revitalizando-os a partir de uma outra compreensão política, que rompe com o modelo de representação esvaziado no nivelamento e na mediocridade da democracia de rebanho. A transvaloração é o contramovimento capaz de engendrar a grande política através de transvalorações que se dão na facticidade e na imanência, ainda que a política não seja a preocupação central do filósofo: a cultura como horizonte mais elevado, concretizada pelo além-do-homem é o que cessaria com a decadência na qual o Novecento estava mergulhado. A grande política é a resposta cultural a um movimento político de decadência e apequenamento, cujo ápice é o niilismo e a pilastra central é a moral judaico-cristã.

Agamben

No caso de Agamben, a potência-do-não é pensada a partir do conceito aristotélico de potência, entendendo que o ser humano é o único capaz de poder sua própria impotência, estabelecendo linhas de fuga e resistência que gerem novas formas-de-vida e uma política-que-vem , que não coincide necessariamente com uma política estatal e expressa pelas formas representativas hoje em voga no Ocidente. É a política da inoperosidade , do qualquer, daquele inapreensível que se dá na facticidade do instante e em uma comunidade-que-vem cuja concretização é um vir-a-ser que se reconfigura e não tem uma identidade estática. Desse modo, percebemos que ambos os filósofos descortinam possibilidades para repensarmos a política e, em específico, a democracia, não as invalidando, mas percebendo suas limitações e apontando para formas-de-vida que tensionam nosso modelo de existência política.

IHU On-Line – Como podemos compreender o conceito nietzschiano de “vontade de potência” e de que forma ele é capaz de nos inspirar?
Márcia Junges - A vontade de potência é uma potência biológica que entende a vida como valor supremo, operando a nível molecular, fora do escopo do arbítrio humano. Trata-se da potência fisiológica, orgânica, de autoafirmação da vida e que engendra forças em caráter relacional afirmando suas diferenças. “A vontade de potência aparece assim como explicação do caráter intrínseco da força” e é a expressão de sua efetivação. Refletimos acerca da hipótese de uma espécie de tensionamento entre a vontade de potência, que opera em nível fisiológico, e a transvaloração dos valores, que ocorre como potencialidade de revitalizar um sistema político corroído.

Essa tensão precisa estar presente dentro do diagnóstico que a filosofia nietzschiana traça sobre a decadência política e as aberturas que surgem para a política e a democracia liberal. Como a vontade de potência em Nietzsche é naturalizada, há uma tendência para que a política siga essa linha, tomando rumos hierarquizados e com pouco espaço para a democracia na potência da natureza. De qualquer modo, isso não invalida as possibilidades que brotam da transvaloração dos valores e de uma política que rompa com a degenerescência apontada por Nietzsche, ainda que a democracia não seja o que almeja e nem mesmo a política seja o horizonte de suas argumentações centrais.

Portanto, é preciso entender a vontade de potência em conexão com a categoria de transvaloração dos valores, pois se a primeira possui uma fundamentação naturalizada, a segunda aponta para uma abertura através do posicionamento crítico e da construção de valores nobres, que superem a decadência de uma política apequenada e refém de uma lógica do ressentimento. Ao abrir espaço para o conflito, Nietzsche deixa espaço para repensarmos a democracia, o que pode ocorrer pelo cultivo do dissenso e da possibilidade de resistir .

IHU On-Line – De que maneira a noção de potência aparece tratada na obra de Agamben e como ela é articulada genealogicamente?
Márcia Junges – O conceito de potência, em Agamben, aparece com a terminologia autóctone potência-do-não, e é oriundo da filosofia aristotélica. Agamben se refere não à potência de tipo genérico, mas aquela da hexis, que pode tanto ser colocada em ato, quanto ser suspensa e mantida intacta . A aporia aristotélica consiste em que a potência se define por seu não-exercício , e por isso cada potência é, também, impotência do mesmo em relação a si próprio. Neste caso a impotência (adynamia) é potência-de-não, e não ausência de potência, mas inoperosidade repleta de potencial criativo.

Agamben propõe que em cada ato de criação resiste algo não expresso: a potência é ambígua, pois contém em si a capacidade de passar ao ato, mas uma resistência que se mantém e que não se exaure na passagem da potência ao ato . O termo “inoperosidade” surge com força nas reflexões sobre o ato de criação, e Agamben evoca “uma poética – ou uma política – da inoperosidade” . Retornando à Etica Nicomachea, elucida que ergon define a energeia, ou seja, aquela atividade do ser-em-ato que é própria e referente ao homem . Em Aristóteles, o ser não possui uma vocação que o define, como outras espécies animais que só podem ser o que são e fazer o que fazem. A inoperosidade é uma potência de tipo especial, um ato de criação , quando se contempla a própria potência de agir, quando a potência não se esgota no ato.

Ao conceber a potência como potência-do-não enquanto possibilidade do novo e da ruptura, Agamben não invalida a hipótese da democracia como regime de autogestão coletiva dos quaisquer na política-que-vem, já que é uma possibilidade da potência humana aberta à contingência. Para Agamben, a política é o “im-possível” não como um projeto a ser concretizado, mas da possibilidade do novo. Entretanto, pensamos haver um tensionamento quando são igualadas a política-que-vem à inoperosidade e à potência destituinte , pois estas podem resultar em outras formas políticas que não sejam necessariamente soberano-democráticas ou representativas.

Contra a biopolítica maior, representada pelo Estado, Agamben propõe uma biopolítica menor, aquela que o qualquer constrói a partir de sua existência fática, fundada na plenitude da vida e sua reapropriação , na construção de modos de ser, de formas-de-vida cuja configuração fundamental é a coincidência entre a vida e sua forma, indiscernivelmente. É no resto entre as tentativas de dessubjetivação perpetradas pelo Estado e a insistência pela subjetivação realizada pelo qualquer que se vislumbra uma ética da vida, uma política da vida.

Política além do binômio auctoritas e potestas

No ensaio Em nome de quê?, publicado em O fogo e o relato, Agamben sentencia que “as categorias do político desabaram em todos os lugares” , e apenas a poesia poderia fazer-lhe frente. Pensando na potência-do-não como linha de fuga e resistência surge a possibilidade de formas-de-vida que carreguem consigo a marca da insurgência, da potência destituinte, da experiência de um pensar que também é agir na expressão do gesto, da medialidade pura, na tensão constante entre potência e ato personificada pela inoperosidade e pela resistência. A política-que-vem a partir dessa ruptura busca justamente evitar que a vida seja controlada e direcionada pelos dispositivos que o capitalismo não cessa de interpor. Ganha força a abertura para o novo e a construção de um tipo de política diferente daquele que se fundamenta no binômio auctoritas e potestas, repensando a democracia e sua relação fatal com os totalitarismos, que espreitam em seu interior.

IHU On-Line – De que ordem é o desafio de superar as estruturas biopolíticas de governo da vida, que, por sua vez, tendem a produzir os sujeitos sacrificáveis – homini sacri?
Márcia Junges – A produção em massa de homini sacri é um dos efeitos colaterais da máquina política do Ocidente, produtora de exclusão e morte: nos campos de refugiados, nos botes que cruzam oceanos tripulados pelo desespero de seres humanos em situação limítrofe, naquelas pessoas descartáveis por não se adequarem como consumidores em um mundo onde tudo é mercadoria, nas favelas onde viver é um desafio diário e os barracos são um entrave aos condomínios com suas varandas gourmet, nas aldeias onde os povos originários vivem desde sempre, mas são taxados de atrasados e obstáculos ao desenvolvimento econômico. A tarefa não só da geração que vem, como admoesta Agamben, mas da nossa, hoje, na incomensurabilidade do instante, é a irrecusável responsabilidade de desativarmos esses dispositivos de exclusão com pequenas e grandes profanações, fazendo girar no vazio essa máquina bipolar que nos governa, auctoritas (Reino) e potestas (Governo).

Desobedecer, fazer a manada duvidar de si própria, aperceber-se de seu aprisionamento através do pensar crítico, são meios de colapsar o aparato político ocidental e suas formas de administrabilidade da vida. Um estado de insurreição permanente, de desacato ao injusto e desagravo à perseguição à vida em todas as suas formas são imperativos dos quais não podemos nos furtar. Cada um de nós pode viver formas-de-vida outras, e é essa coragem existencial que nos desafia a pensar o presente com a arqueogenealogia do passado, que Agamben realiza e retroage oferecendo uma ontologia da potência.

Pensando a partir dos escritos do italiano, o filósofo é aquele que não se cala, espécie de estranho na cidade, vivendo nela, mas não pertencendo a ela, indócil e incapturável, andarilho que destrói suas vestes e que arremessa hastes de aço entre as engrenagens da biopolítica, fazendo-a colapsar. Essa atopia é sua maior potência, porquanto faz ranger o mecanismo de destruição de um poder soberano, desconstruindo ilusões e mitos que estão nas raízes das paixões tristes como o medo, esse elemento de governo que sempre é lançado à nossa cara a fim de nos petrificar, mantendo tudo como está.

Assim, compreender e superar as estruturas de governo biopolítico está na ordem da urgência, da tarefa que nos toca enquanto pensadores críticos que apontam para os limites da democracia representativa liberal, mas que estão prontos a repensá-la e dar vazão a outras expressões políticas, complementares, não excludentes, em uma vida que ousa dar a si mesma a sua forma, e que não aceita submeter-se à norma vazia do Direito e da Economia como pilastras centrais na condução de existências autorizadas e úteis.

IHU On-Line - Que pistas Nietzsche e Agamben oferecem para avançarmos diante das encruzilhadas de nosso tempo?
Márcia Junges – Nietzsche e Agamben pertencem àquela espécie provocadora de filósofos, difíceis de enquadrar em cânones tradicionais e que oferecem chaves importantes para pensarmos nosso tempo. A análise de Nietzsche acerca do nivelamento rasteiro da democracia liberal de seu tempo encontra similaridades hoje, quando presenciamos uma corrosão da representatividade no Ocidente. Percepções nodais como o comportamento gregário, transposto do Cristianismo para a democracia, são para Nietzsche um dos motivos pelos quais a democracia termina por operar como um espaço destituído de espírito aristocrático e valores elevados.

Se o diagnóstico é duro, as possibilidades que brotam a partir dele podem mostrar-se surpreendentemente vicejantes. Ainda que pensadores reiteradamente tenham pervertido os escritos nietzschianos, atribuindo a ele interpretações fascistas, devemos insistir que de seu pensamento surgem arestas promissoras para pensar uma democracia revitalizada por valores nobres, não corroídos pelo ressentimento, pelo ódio cego ao adversário e à dissidência. O pensamento de Nietzsche jamais propôs exterminar com os adversários, pelo contrário, há o incentivo para cultivar o dissenso, o embate entre inimigos respeitáveis, mantendo um pathos da distância capaz de tornar salutar a convivência em uma democracia, guardando o espaço para a divergência e o cultivo da excelência.

Contra a loucura de estar de acordo com todos, Nietzsche nos provoca a tomarmos posição, a lutarmos nossas próprias batalhas e avançarmos não sobre os destroços dos vencidos, mas elevarmos nossa existência através de um espírito revigorado, que não se dobra ao mando de medíocres, ressentidos, cujo horizonte existencial se delineia na vingança contra o que é belo, inteligente, forte e impossível de enquadrar.

Agamben

A exemplo de Nietzsche, Agamben descreve um cenário preocupante acerca da política ocidental, apontando a biopolítica como modelo de aprisionamento da vida nua, e ao estado de exceção convertido em regra e modelo jurídico recorrente. Uma vida capturada, esvaziada em sua subjetividade, impelida a sobreviver, somente, é a grande maldição que herdamos da Grécia clássica, onde a biopolítica já era a categoria que estendia seus tentáculos no âmbito da oikos, da casa onde imperava o pater familias e seu poder discricionário. Para Agamben, essa matriz grega da biopolítica derivou para a Modernidade e se aprofundou com o império dos dispositivos contra os quais devemos nos rebelar e profanar seus ídolos.

Com esses aspectos em vista, pensamos que tais filósofos expressam a importância de se engendrar novas formas-de-vida, coincidindo a vida vivida com aquela existência que surge do transbordamento e da destituição, da insurreição-que-vem, de uma política que não se reduza apenas àquela representada pelo Estado e domesticada por seu modus operandi que faz do sujeito um mero repetidor de fórmulas gastas para sobreviver. O deslocamento político do Cristianismo para a democracia, na compreensão de Nietzsche, e a deriva teológica e econômica destes para a política, segundo Agamben, não são as instâncias últimas daquilo que pode a política. O qualquer, o inapropriável, a política-que-vem não se resumem a uma fórmula, eles trincam o verniz com o qual a Modernidade pensa ter restaurado a bucólica existência em sociedade, em uma polis na qual a Filosofia tem a tarefa irrecusável de pensar o presente a partir das raízes do nosso passado.

Rostos insuflados de vento gélido

Para além dos diagnósticos desalentadores em que desponta o niilismo no qual estamos mergulhados há milênios, Nietzsche e Agamben insuflam em nossos rostos o vento gélido da coragem, da resistência que faz nossas espinhas não se curvarem ao poder. Surgem daí formas políticas novas, nas quais o ruminar, o transvalorar, o profanar e o resistir nos desafiam a viver uma vida que dê a si própria a sua forma, que se concretize na imanência de sentidos e valores que nós próprios possamos criar.

O mundo não está dado, não é necessitário: é um vir-a-ser, uma construção. Martelar sentidos gastos, usados por conveniência para tornar as pessoas dóceis, é uma das boas formas de iniciarmos a transvaloração e a profanação, nas frestas do instante, da contingência por onde pode surgir o novo, naquela experiência de tempo kairótico denso, contraído, o tempo messiânico que Agamben retoma de Walter Benjamin e retrabalha a partir da perspectiva paulina, propondo profanarmos vivendo como se não.

IHU On-Line – Do ponto de vista da filosofia política, quais têm sido os principais problemas filosóficos a serem enfrentados contemporaneamente?
Márcia Junges – A Filosofia Política tem em seu horizonte inúmeros problemas para enfrentar, dos quais pontuo alguns: a crise dos refugiados em diferentes partes do mundo, o colapso da representatividade democrática e das categorias com as quais pensamos a política, o problema da coincidência entre nacionalidade e território, além da aplicação do estado de exceção como norma, nos mais diversos contextos. Em todas essas situações é evidente a importância de uma reflexão filosófica que nos aponte os limites de teorias que não mais dão conta de nossa realidade, expondo a fragilidade de uma ontologia redutora do dever-ser e da submissão da vida enquadrada com vistas ao funcionamento da máquina neoliberal.

Trata-se de um grande desafio para a Filosofia Política, porquanto é imperativo questionar a política, sem invalidá-la, porquanto sabemos a impossibilidade de vivermos em um mundo sem essa expressão da vida em comum, ainda que com todas as suas vicissitudes, limitações e impasses. As categorias que necessitam ser reconstruídas para pensar a política, como provoca Agamben, são uma tarefa para a qual todos estamos interpelados.

IHU On-Line – Como podemos compreender os ataques do atual governo à Filosofia, Sociologia e Ciências Humanas em geral? Que respostas as áreas de Humanidades podem oferecer no atual contexto?
Márcia Junges – As Humanidades, em um contexto amplo, são “inconvenientes” porque se valem do pensamento crítico como seu principal eixo. A Filosofia, com sua pergunta escandalosa pelo sentido das coisas e da vida, cuja espinha dorsal é um pensamento que não se dobra e não aceita comportamento de manada, causa desespero em um governo de parvos, que opera valendo-se do medo e da mentira para tentar manter sob controle uma nação cindida. Felizmente, essa credulidade está trincada e não resistirá a muitas outras investidas, como as manifestações contra os cortes na educação já o demonstraram. A cada dia que passa, as lutas de pesquisadores das Humanidades se mostram ainda mais corretas e coerentes, pois fomentam o espírito livre, o pensamento desenraizado, a dúvida como semente para o eterno pensar, mobilizando pelas verdades que descortina em um cenário no qual a disseminação do ódio e das fake news têm sido a tônica desde a campanha eleitoral de 2018.

Continuar fazendo Filosofia crítica séria, bem fundamentada e em diálogo com pares brasileiros e internacionais é o que devemos ter em nosso horizonte, não cedendo um milímetro sequer no aprofundamento de nossas pesquisas. Manifestos físicos e escritos já surgiram e precisam seguir brotando. Devemos fazer da insurgência nossa principal fonte de resistência e não nos calarmos frente a medidas que pretendem fazer a pesquisa brasileira retroagir, retrocedendo no patamar de qualidade que conquistamos ao longo de décadas, a duras penas.

Pensamentos perigosos

O que está por trás do ataque às universidades, em específico àquelas federais e seus cursos repletos de “idiotas úteis” que ousaram sair à rua se manifestar, é o imperativo de privatizar o ensino e entregá-lo a investidores convenientemente próximos a pessoas do governo, tornando os estudantes escravizados por dívidas de crédito estudantil ou financiamentos em bancos, a exemplo do que ocorre nos EUA, que não por acaso são o modelo ideal do bolsonarismo. Um Estado que quer livrar-se do fardo da educação pública, gratuita e de qualidade, mas que não se esquiva em incentivar o armamento de certa parcela da população através de um decreto infame para proliferar armas legais, tal é o (des)governo que temos. Chegamos ao ponto de quatro ministros mentirem deliberadamente em seus Curriculum Lattes, afirmando possuírem graus acadêmicos jamais conquistados, terem frequentado instituições onde nunca estiveram, ou nas quais era uma “intenção” estudar. O desprezo pela educação é demonstrado por tais invectivas, que dão o tom do deboche e do esvaziamento da pasta, consumida em lutas internas e na perseguição a uma pretensa ideologia comunista que pensam estar arraigada por toda parte.

Nesse contexto, vale a pena lembrar o quão inconveniente a Filosofia pode ser, retomando o caso de Espinosa , pensador excomungado da comunidade judaica holandesa por conta de suas ideias, culminando com uma tentativa de assassinato. Conta-se que, vivendo em Leiden, o filósofo mantinha consigo seu casaco rasgado à faca. A ideia era recordar acerca da inconveniência da Filosofia e seus pensamentos perigosos.■

Leia mais

- A grande política em Nietzsche e a política que vem em Agamben. Cadernos IHU Ideias, nº 210, vol. 12, 2014.

- Um poder que se alimenta da glória. Revista IHU On-Line, número 505, de 22-05-2017.

- Schuld: dívida e culpa na Genealogia da Moral, de Nietzsche. IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica. V. 1, p. 359-376, 2016.

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