Edição 540 | 02 Setembro 2019

Quando a noite cai, Paolo Virzì põe lado a lado jovens sonhadores e fundadores de um cinema em extinção

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João Ladeira

“Estar na plateia é mais difícil do que parece, e defesas para uma história delicada são certas horas indispensáveis”, escreve João Ladeira[1].

Noite Mágica (sinopse): Certo dia, um dos maiores produtores de cinema na Itália é encontrado morto dentro de um rio. Os principais suspeitos são três jovens roteiristas que tiveram contato com ele recentemente. Durante uma noite, os três são levados à delegacia para serem interrogados. Esta será a oportunidade de relembrarem seus percursos, que coincidem com o declínio da Era de Ouro das produções italianas.

Imagem divulgação do filme

Eis o artigo.

Noite Mágica (Notti magiche, 2018, de Paolo Virzì) se utiliza de uma imagem ocasional, mas bastante presente no cinema: o trio, a contraposição entre três partes distintas. É assim com Jules e Jim - Uma Mulher para Dois (Jules et Jim, 1962, de François Truffaut, citado nominalmente); Os Sonhadores (The Dreamers, 2003, de Bernardo Bertolucci); ou, numa escolha pessoal, Three (1969, de James Salter). A graça dessa forma está em explorar as muitas variações disponíveis.

 

Mas o filme de Virzì não trata só disso. Espreita, pelo pretexto dessas permutações, a franca dissolução de um mundo, no charme de sua desintegração. A beleza do filme está em equilibrar essa memorabilia com uma narrativa na aparência despretensiosa. Um homem morre, e, para provar a inocência, nosso trio exercita suas habilidades narrativas frente a mais ingrata das plateias: o delegado de polícia. Mas seu depoimento é apenas uma desculpa para tratarmos, como comédia, de um eclipse que de outro modo seria trágico.

As trocas nos aliviam dessa tensão. Há um rapaz da Toscana, no norte da Itália, e outro da Sicília, sul do país. Existe também uma moça de Roma. Um é sociável e falante, um herói proletário que, com mulher e filho, não abre mão de viver a vida. O outro é um intelectual introvertido, com mestrado e doutorado: um Sr. Sabe Tudo, que, já no presente, age como o professor que se tornará anos depois. Por último, vê-se a jovem de família burguesa, com um charme depressivo que não cansa de se exibir com suas crises e pílulas.

Norte e sul, homens e mulheres

Luciano Ambrogi (Giovanni Toscano) escreve sem parar, mostrando-se capaz de, literalmente, terminar um roteiro da noite para o dia, o que lhe rende espaço numa caótica sala de redação. Antonino Scordia (Mauro Lamantia) escreveu apenas uma vez, mas isso lhe trouxe um prêmio de 25 milhões de liras e a promessa de (quem sabe) filmar um dia com Fellini. Ambos se deparam com a possibilidade concreta de terem seu trabalho realizado. Um, graças à rápida adaptação à engrenagem; outro, devido à parceria com um tal Leandro Saponara (Giancarlo Giannini): num extremo, o sucesso autoral; no outro, o esforço invisível da locomotiva.

Ambos os rapazes tentam levar suas carreiras a uma direção que controlem – ao menos o tanto quanto possam. Já Eugenia Malaspina (Irene Vetere) se guia por um ímpeto incerto, em que tudo lhe escapa. Para produzir seu filme, encontra-se com um ator que idolatra, num resultado frustrante, no mínimo. Na metade do filme, conhecemos a namorada de Antonino, jovem insossa de pretensões intelectuais compatíveis às dele. Descobrimos que Luciano é casado, passo mais largo na escada do compromisso. E Eugenia se vê às voltas com uma gravidez (ou não), na inexistente conexão com seus sonhos.

 

Diante da lei

Acontece de tudo nessa noite: a experiência talvez seja decepcionante, mas lida-se com a vida como se pode. Todos convergem apenas num ponto: o desejo de contar histórias. Terão sua oportunidade, mas de maneira inesperada. Pois suas aventuras permutáveis se encontram na morte de Saponaro, pondo os personagens numa posição torta frente a que pretendiam ocupar. Transformam-se em narradores dentro de um interrogatório policial, roteiristas num conto do qual ninguém gostaria de participar.

Sua própria história se revela deliciosa. E, tendo como plateia um Carabinieri, o preço pela incapacidade de seduzir seu interlocutor seria a própria liberdade. O policial precisa ser convencido – e também a nós. E ele parece ser um especialista na observação. Após certo momento, instrui os jovens, e quem assiste ao filme, do prazer desse lugar. Estar na plateia é mais difícil do que parece, e defesas para uma história delicada são certas horas indispensáveis.

Golpe de mestre

No clímax do filme, todos, nós e nossos heróis vemo-nos observando a confissão do motorista de Saponaro – pasmem, ele também um ex-ator. Quando nos conta sobre as circunstâncias daquela morte, Antonino, Luciano e Eugenia, assim como toda a delegacia, deliciam-se com o artista aposentado. Esse conto alheio de alguém fora de serviço é o começo do fim de suas carreiras como escritores – e também o ocaso de uma era do cinema italiano.

Luciano abrirá um restaurante e Antonino irá se dedicar às suas aulas. De Eugenia pouco saberemos. Um ciclo se encerra. Na última noite, a Itália perde nos pênaltis a semifinal da Copa de 1990; Fellini filma seu último trabalho, A Voz da Lua (La voce della luna, 1990); e a Primeira República, com a qual uma ligação telefônica nos indica que o pai de Eugenia possui relações, caminha para seu fim.

Os mestres desse cinema vão desaparecendo. Mario Monicelli e Ettore Scola são nominalmente citados. Fulvio Zappellini (Roberto Herlitzka) bem poderia ser Furio Scarpelli, roteirista de vários filmes, desses diretores e do próprio Virzì. E Pontani (Ferruccio Soleri) talvez corresponda a ninguém menos que Antonioni. Observando-os, participamos desse tempo que termina. E, através de uma história que concede algo bem diferente do que sugere, vemo-nos em meio à falsificação que transforma a tristeza num sorriso, torna o fim a expectativa de algo novo. Tudo parece trocado, pois fala-se de moleques delirantes quando se quer lembrar de mestres indestrutíveis. Tudo é falso, e, por isso, essencial. ■

Ficha técnica

 

Direção: Paolo Virzì

Elenco: Mauro Lamantia, Giovanni Toscano, Irene Vetere e mais

Gênero: Comédia dramática

Nacionalidade: Itália

Trailler

[1] João Martins Ladeira é professor na Universidade Federal do Paraná, possui doutorado em Sociologia pelo Iuperj, mestrado e graduação em Comunicação pela UFF. (Nota da IHU On-Line)

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