Edição 539 | 19 Agosto 2019

Future-se propiciará o “darwinismo educacional”

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Vitor Santos

Para Andréa Caldas, além da financeirização da educação e da perda de autonomia, as universidades públicas podem se tornar ambientes de extrema concorrência, prejudicial ao desenvolvimento científico

Como a maioria dos especialistas em Educação, a professora Andréa Caldas não vê com bons olhos o programa Future-se. Associar o investimento a lógicas de mercado, na sua opinião, compromete a qualidade de ensino e até o desenvolvimento da pesquisa nas universidades. “Isto significa abortar qualquer possibilidade de ciência básica e de produção tecnológica soberana e transformar a educação superior em um grande shopping center de venda de serviços e fornecimento de estagiários de baixo custo”, dispara, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Mas ela ainda vai além: acredita que esse programa pode desenfrear uma concorrência alucinante entre os pesquisadores e professores, que passariam a agir e a produzir somente de acordo com ações mais rentáveis.

Andréa recorda que se vivem tempos de muita dificuldade financeira e contingenciamentos severos nas universidades. Enquanto isso, o governo acena com um projeto de educação neoliberal que pode conceder os recursos, e inclusive ganhos extras, condicionados a uma alta produtividade. “Estimula-se, com isto, a competitividade interna entre setores, universidades e institutos. E, obviamente, as regiões e áreas mais dinâmicas e próximas do mercado lograrão mais êxito, em uma espécie de “darwinismo educacional”, antítese de qualquer projeto nacional e mais igualitário”, analisa.

Por isso, a professora acredita que, sem investimento público, não só a formação, mas também a produção científica nacional ficará seriamente comprometida. “É reconhecido que a universidade pública é responsável pela maior parte da produção científica e tecnológica. E isto tem a ver com investimento público, com regime e condições de trabalho e com um ambiente mais plural e autônomo”, lembra. E avalia: “transformar professores em horistas ou mesmo em empreendedores pode, à primeira vista, fazer com que se aumente a produção quantitativa de serviços mas, fatalmente, desestimulará pesquisas e processos de mais longo prazo, ou mesmo que envolvam mais riscos e ousadia”.

Andréa Caldas é professora associada na Universidade Federal do Paraná - UFPR, graduada em Pedagogia, mestra e doutora em Educação pela mesma instituição. Atua como pesquisadora e consultora na área de políticas educacionais e movimentos sociais, foi diretora do Setor de Educação da UFPR e exerceu a presidência do Fórum de Diretores das Faculdades de Educação das Universidades Públicas. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral no Programa de Pós-Graduação em Educação na UFRGS, pesquisando as relações público e privado na educação. Entre suas publicações, destacamos Tecendo Caminhos da Gestão Democrática: a formação dos conselheiros municipais de educação do Paraná (Curitiba: Brasil Publishing, 2016) e O plano nacional de educação e o sistema nacional de educação (Paraná: reflexões e provocações. Curitiba: Appris, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as questões de fundo no projeto Future-se?

Andréa Caldas – O projeto lançado pelo MEC, após as várias mobilizações que ocorreram em protesto contra o contingenciamento de recursos das universidades, apesar de ser apresentado como uma proposta de fortalecimento da “autonomia financeira das universidades e dos institutos federais”, deixa claro, no próprio texto, sua pretensão de transferir a gestão das instituições públicas para a iniciativa privada e fomentar a captação de recursos externos.

IHU On-Line – Como se dão as relações público-privadas nas universidades federais atualmente? E o que muda na proposta do Future-se?

Andréa Caldas – Atualmente, ocorrem diversas parcerias entre as universidades e empresas privadas. Estas relações se dão pelo intermédio das Fundações de Apoio, regidas pela Lei 8.958 de 1994. A Lei de Inovação Tecnológica de 2004 já pretendia criar ambientes cooperativos para a produção científica, tecnológica e de inovação, incentivando a interação entre as instituições de ciência e tecnologia – aí incluídas as universidades – e as empresas.

O novo marco legal da inovação, estabelecido pela Lei 13.243/2016, ampliou ainda mais os mecanismos destas possibilidades, incluindo arrecadação financeira, através das Fundações e compartilhamento de espaços das universidades por empresas. O Future-se pretende criar um intermediário destas relações na figura das Organizações Sociais - OS, a serem credenciadas pelo governo federal.

IHU On-Line – O Future-se pode comprometer a autonomia das universidades públicas?

Andréa Caldas – Sem dúvida, uma vez que as OS, escolhidas pelo governo, assumirão as funções de gerir os recursos e o patrimônio das universidades, bem como apoiar as atividades de ensino, pesquisa e extensão e promover captação de recursos.

Além disso, o projeto sinaliza que as instituições que aderirem ao Future-se devem adotar as diretrizes e governança “futuramente” definidas pelo MEC. Ou seja, a universidade estará subordinada a estas diretrizes, que sequer se sabem quais serão, e à ingerência de uma Organização Social, conforme indicado no texto abaixo:

“Ao aderir ao FUTURE-SE, a Ifes se compromete a: i. Utilizar a organização social contratada para o suporte à execução de atividades relacionadas aos eixos de gestão, governança e empreendedorismo; pesquisa e inovação; e internacionalização; ii. Adotar as diretrizes de governança que serão futuramente definidas pelo Ministério da Educação; iii. Adotar programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria externa.” (Future-se, MEC, 2019).

IHU On-Line – Uma das críticas ao Future-se é o condicionamento das pesquisas aos seus potenciais resultados econômicos. Como a senhora observa essa questão? E como essa nova forma de financiamento deve impactar o campo científico?

Andréa Caldas – O problema, a meu ver, não é a relação entre as pesquisas e potenciais resultados econômicos. É salutar e desejável que a universidade esteja articulada a um projeto de desenvolvimento econômico e social. Aliás, este é um dos pressupostos da Lei de Inovação Tecnológica de 2004. O problema é condicionar o financiamento da produção da ciência e da tecnologia aos interesses de quem está disposto a pagar. Ou seja, é possível que algumas pesquisas, desenvolvimento de produtos ou prestação de serviços encontrem patrocinadores, como já ocorre hoje. Mas o que ocorrerá com aquelas atividades – de ensino, pesquisa, extensão, cultura e produção tecnológica – que não obtiverem financiamento privado?

IHU On-Line – Por que é importante o financiamento público de pesquisas de base?

Andréa Caldas – As chamadas pesquisas básicas são fundamentais para o desenvolvimento de pesquisas mais instrumentais ou desenvolvimento de produtos. E, no mundo inteiro, estas pesquisas que demandam mais tempo de desenvolvimento e maturação, além de envolverem mais riscos e terem resultados mais incertos, contam com o financiamento estatal. Ademais, é preciso lembrar que nem tudo o que a universidade deve produzir está vinculado aos interesses do mundo produtivo, no sentido estrito. Sua função social envolve várias áreas da formação humana.

IHU On-Line – Em uma das suas análises, a senhora avalia que a adesão ao Future-se pode ser sedutora para alguns segmentos da universidade. Gostaria que detalhasse essa perspectiva e avaliasse quais são os riscos para a instituição?

Andréa Caldas – O MEC tem vendido o Future-se como uma oportunidade para professores e estudantes da universidade ganharem mais, se venderem seus produtos ou suas pesquisas. Apresenta, ainda, a proposta da criação de um fundo financeiro que seria constituído por venda de serviços, capitalização financeira e eventuais doações de pessoas físicas e jurídicas, inclusive de “outros países, organismos internacionais e organismos multilaterais”. Em um quadro de corte de recursos, de congelamento de salários e cancelamento de bolsas, é possível sim, que este apelo seja sedutor para algumas pessoas, segmentos e mesmo instituições.

Estimula-se, com isto, a competitividade interna entre setores, universidades e institutos. E, obviamente, as regiões e áreas mais dinâmicas e próximas do mercado lograrão mais êxito, em uma espécie de “darwinismo educacional”, antítese de qualquer projeto nacional e mais igualitário.

IHU On-Line – Atualmente, levando em conta as ferramentas que quantificam e avaliam a produção científica no Brasil, já não se vive em lógica de produção mercadológica?

Andréa Caldas – Existem vários problemas na lógica meramente quantitativa da produção científica e o maior deles é justamente a uniformização de critérios e padrões para algo que é intrinsecamente diverso e plural, como o conhecimento humano. É inegável que a universidade pública precisa prestar contas à sociedade da sua produção, mas a estandardização não é o melhor caminho. E, de novo, a grande questão aqui é para quê e para quem pretende-se que a universidade dirija o seu trabalho.

IHU On-Line – O que difere a universidade pública da privada no Brasil hoje? E, especialmente, o que difere a pesquisa, a produção científica, numa e noutra instituição?

Andréa Caldas – É reconhecido que a universidade pública é responsável pela maior parte da produção científica e tecnológica. E isto tem a ver com investimento público, com regime e condições de trabalho e com um ambiente mais plural e autônomo. Transformar professores em horistas ou mesmo em empreendedores pode, à primeira vista, fazer com que se aumente a produção quantitativa de serviços mas, fatalmente, desestimulará pesquisas e processos de mais longo prazo, ou mesmo que envolvam mais riscos e ousadia.

IHU On-Line – Uma vez entrando em vigor, como imagina que o Future-se deverá incidir sobre a formação docente, os futuros professores da escola básica?

Andréa Caldas – O discurso governamental quer fazer parecer que através do Future-se teremos uma grande união cívica da sociedade brasileira, do empresariado nacional e internacional e das pessoas beneméritas em favor da educação, ciência e tecnologia do país. E isto ocorre, precisamente após o governo celebrar um acordo com a União Europeia para venda de grãos e compra de produtos industrializados e tecnologia.

Neste contexto de crise econômica e de ausência de um projeto autônomo de desenvolvimento econômico e social, o caminho mais provável é que se houver investimentos privados nas universidades e institutos federais, eles estarão imediatamente relacionados aos interesses de lucratividade imediata do mercado. E de um mercado de um país dependente. Nesta perspectiva, ficarão de fora todas as pesquisas de base que não possam produzir resultados de curto prazo e todas as atividades de ensino e extensão que não tragam dividendos.

Isto significa abortar qualquer possibilidade de ciência básica e de produção tecnológica soberana e transformar a educação superior em um grande shopping center de venda de serviços e fornecimento de estagiários de baixo custo.■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição