Edição 539 | 19 Agosto 2019

Em tempos de democracia iliberal, estratégia é desqualificar verdades científicas

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João Vitor Santos

Para Tatiana Roque, as lógicas do Governo Bolsonaro de desvalorização da universidade e menosprezo a intelectuais se articulam com o avanço de ruralistas sobre a Amazônia, entre outras ações

De um lado, o Governo de Jair Bolsonaro prega, através do Future-se, a emergência de qualificar e tornar mais produtivo o trabalho de ensino e pesquisa nas universidades públicas. De outro, insufla um negacionismo do caos climático, enquanto fazendas avançam sobre áreas de mata e agrotóxicos passam a ser mais liberados do que nunca. Para a professora Tatiana Roque, tudo isso são faces de uma mesma moeda e revelam uma intenção muito clara do Governo Bolsonaro. “Este governo não tem nenhum projeto para a universidade pública e para a pesquisa científica”, dispara. E segue: “a ala mais bolsonarista do governo tem uma agenda ideológica que identifica a universidade à esquerda e incentiva, com esse discurso, uma perseguição à comunidade universitária. Já a ala ultraliberal tem a única agenda de diminuir o financiamento público”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Tatiana explica que “desvalorizar a universidade e a pesquisa básica, menosprezar intelectuais e cientistas, é um modo eficiente de desqualificar as verdades científicas”. E, por isso, assegura que “não é coincidência que isso ocorra no exato momento em que o negacionismo climático ganha espaço no governo, em que ministros de Estado buscam desmoralizar o consenso em torno do colapso climático”. Ou seja, enquanto se destituem esses saberes científicos, vai-se, ao mesmo tempo, justificando os avanços de lógicas produtivistas muito mais predatórias. “A universidade e a pesquisa científica devem ser atores centrais na proposição de um novo modelo de desenvolvimento, mais tecnológico e sustentável. Para isso, é necessário investir em inovação e em relação com empresas, como nos parques tecnológicos que existem em várias universidades. Isso não tem nada a ver com privatização”, destaca, ao pontuar que o Future-se vai em sentido contrário.

Segundo a professora, todos esses movimentos podem ser compreendidos como uma espécie de corrosão que vai se dando na democracia. É o que compreende como a prática da democracia iliberal. “Não é a instalação de uma ditadura, mas a fragilização do sistema de pesos e contrapesos da democracia. Há uma exacerbação do poder majoritário, em que as minorias ficam impedidas de se expressar, de se organizar e de voltar ao poder”, explica. E acrescenta que “o fenômeno do fim dos intermediários tem a ver com isso, pois as instituições independentes de governos têm um papel no funcionamento da democracia”. Por isso, sugere: “a esquerda e o campo progressista precisam responder a essa insatisfação com propostas para termos mais democracia, para se aprofundar e radicalizar a democracia”.

Tatiana Roque é graduada em Matemática pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra em Matemática Aplicada e doutora na área de História e Filosofia das Ciências pela mesma universidade. É professora do Instituto de Matemática da UFRJ e da Pós-graduação em Filosofia do IFCS/UFRJ, onde coordena um grupo de estudos sobre as reconfigurações do trabalho no mundo contemporâneo. Foi presidente do Sindicato Docente da UFRJ - ADUFRJ. Tatiana também mantém um canal no YouTube, onde fala e entrevista pessoas sobre temas ligados à educação, política, ciência e filosofia.

A entrevista foi originalmente publicada nas Notícias do Dia, 14-08-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que o programa Future-se revela acerca da concepção do Governo Bolsonaro sobre a universidade pública e a pesquisa científica?

Tatiana Roque – Esta resposta é muito simples: este governo não tem nenhum projeto para a universidade pública e para a pesquisa científica. A ala mais bolsonarista do governo tem uma agenda ideológica que identifica a universidade à esquerda e incentiva, com esse discurso, uma perseguição à comunidade universitária. Já a ala ultraliberal tem a única agenda de diminuir o financiamento público. A união entre esses setores acaba sendo conveniente para ambos.

IHU On-Line – Quais os riscos de a universidade se mover segundo parâmetros de mercado?

Tatiana Roque – O modo de governo do capitalismo atual vai além da “lógica de mercado”. A governança neoliberal estimula a concorrência. Esse é exatamente o ponto do Future-se: governar pelo incentivo à competição intra e interuniversidades. Propõe-se a criação de um fundo cujos recursos seriam distribuídos por meio de uma Organização Social. Essa OS estabelece metas e critérios de avaliação para distribuir os recursos às universidades e às diferentes áreas dentro de uma mesma universidade. Com o financiamento público cada vez mais escasso, a tendência é que se agrave a competição pelos recursos distribuídos via OS, que exigem adesão a seus critérios e metas.

IHU On-Line – Coleta Capes, atualização de Currículo Lattes e emergência pela produtividade. Em alguma medida, já não se vivem lógicas mercadológicas dentro das universidades? Por quê?

Tatiana Roque – Não acho. É completamente diferente. A avaliação da pesquisa e da pós-graduação pelas agências de fomento é bem recebida pela comunidade acadêmica. Por dois motivos: primeiro, ela é feita pela própria comunidade acadêmica (que compõe os comitês das diferentes áreas); segundo, ainda que se estabeleça uma certa competição por recursos, quando o volume distribuído é alto, é possível atender às demandas da maior parte dos projetos.

Para que os projetos de pesquisa sejam financiados com dinheiro público, é importante que exista alguma avaliação da qualidade, pois isso ajuda na prestação de contas à sociedade pelo investimento feito na universidade. Claro que alguns critérios são distorcidos, como a excessiva disciplinarização da avaliação. Mas, no geral, o sistema de fomento foi um ganho para a comunidade científica e funcionou bastante bem nos últimos anos, quando o volume de recursos era significativo.

IHU On-Line – O Future-se pode representar alguma ameaça à pesquisa de base? Por quê?

Tatiana Roque – Isso sim. O Future-se é uma ameaça à pesquisa como um todo, pois não garante os dois requisitos mencionados acima. A avaliação não é feita pela comunidade acadêmica, e sim por um comitê gestor que nem sabemos como será formado. Além disso, com a política fiscal em curso e a Emenda do teto de gastos, haverá escassez de recursos e, aí sim, incentivo a uma concorrência insana.

IHU On-Line – Quando se fala em aplicabilidade prática das pesquisas desenvolvidas em universidades, há uma predisposição a privilegiar as ciências ditas exatas? Como conceber as produções das ciências humanas nesse universo de quantificação, mensuração e índices e ranqueamentos de produção científica?

Tatiana Roque – Quando se fala em aplicação prática das pesquisas, a divisão nem é entre exatas e humanas: é entre pesquisa básica e pesquisa aplicada. Na Matemática, a maior parte da pesquisa de ponta não tem aplicação nenhuma. Está havendo uma confusão sobre isso. Claro que a sociedade tem que enxergar a importância do que fazemos na universidade. A formação no ensino superior por si só tem um valor social gigante, há muitos índices mostrando que isso tem efeito na redução das desigualdades. A pesquisa científica também precisa ser vista pela sociedade, mas isso não quer dizer que ela deva ser “aplicada” ou “ter utilidade prática”. Se fosse assim, a Matemática não teria valor social nenhum.

IHU On-Line – Como a senhora analisa a relação entre o público e o privado na educação e pesquisa nas universidades federais hoje?

Tatiana Roque – A universidade e a pesquisa científica devem ser atores centrais na proposição de um novo modelo de desenvolvimento, mais tecnológico e sustentável. Para isso, é necessário investir em inovação e em relação com empresas, como nos parques tecnológicos que existem em várias universidades. Isso não tem nada a ver com privatização. Trata-se de um modo de estabelecer relações entre a universidade e o setor produtivo.

IHU On-Line – A senhora tem dito que o Future-se traz, em letras miúdas, elementos que agridem a liberdade democrática. Que elementos são esses?

Tatiana Roque – O autoritarismo do Future-se concentra-se no modelo de governança que ele estabelece. As decisões concentradas na OS retiram autonomia da universidade para estabelecer objetivos e prioridades, para realizar avaliações e investimentos. Isso tudo fica centralizado na OS. É um absurdo completo e fere a autonomia universitária. Para – supostamente! – resolver um problema relativo à autonomia das universidades para administrarem recursos próprios, agrava-se o problema, retirando das universidades a autonomia para elaborar suas políticas.

IHU On-Line – Que nexo é possível fazer entre o projeto Future-se, o negacionismo climático do Governo Bolsonaro – e de dados de desmatamento na Amazônia – e a reação do Governo à informação da ONU de que o Brasil volta ao mapa da fome no mundo?

Tatiana Roque – Desvalorizar a universidade e a pesquisa básica, menosprezar intelectuais e cientistas, é um modo eficiente de desqualificar as verdades científicas. Não é coincidência que isso ocorra no exato momento em que o negacionismo climático ganha espaço no governo, em que ministros de Estado buscam desmoralizar o consenso em torno do colapso climático. O avanço dos ruralistas sobre a Amazônia tem muito a ganhar negando dados de desmatamento e, para isso, as instituições independentes de pesquisa (como o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe) passam a ser aparelhadas. Isso está no cerne do problema político atual, que tem a ver com o fim dos intermediários, com um ataque sistemático aos profissionais da verdade.

IHU On-Line – A senhora tem usado em suas análises a expressão “democracia iliberal”. Em que consiste esse conceito e como se revela em ações como o Future-se?

Tatiana Roque – Democracia iliberal é uma expressão do Orbán que indica uma corrosão da democracia por dentro. Não é a instalação de uma ditadura, mas a fragilização do sistema de pesos e contrapesos da democracia. Há uma exacerbação do poder majoritário, em que as minorias ficam impedidas de se expressar, de se organizar e de voltar ao poder.

O fenômeno do fim dos intermediários tem a ver com isso, pois as instituições independentes de governos têm um papel no funcionamento da democracia; é o caso da mídia, da escola, da universidade e de institutos de pesquisa (Inpe, IBGE, agências reguladoras etc.).

IHU On-Line – Como resistir a lógicas como a de “democracia iliberal” e constituir alternativas?

Tatiana Roque – O impasse é o seguinte: esse processo de desdemocratização se intensificou após manifestações que criticavam a democracia representativa, como Occupy Wall Street , os Indignados na Espanha ou Junho de 2013 no Brasil. O lema global era: “não me representa”. Assim, não dá para só defendermos a democracia representativa como era antes, pois ela já estava em xeque.

A esquerda e o campo progressista precisam responder a essa insatisfação com propostas para termos mais democracia, para se aprofundar e radicalizar a democracia. Não basta clamar por uma volta ao passado pré-2011, pois antes não estava tudo bem – ainda que estivesse bem melhor do que hoje. Nosso drama é esse...

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