Edição 538 | 05 Agosto 2019

O imperativo das imagens

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João Ladeira

Reprodução de trecho do filme

“Denúncias sobre trabalho abusivo são indispensáveis, mas um Concerto de Bach no lugar da máquina ensurdecedora não soluciona os dilemas de Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar”, escreve João Ladeira.

Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (sinopse): Na cidade de Toritama, em Pernambuco, considerada um centro ativo do capitalismo local, mais de 20 milhões de jeans são produzidos anualmente em fábricas caseiras. Orgulhosos de serem os próprios chefes, os proprietários destas fábricas trabalham sem parar em todas as épocas do ano, exceto o carnaval: quando chega a semana de folga, eles vendem tudo que acumularam e descansam em praias paradisíacas.

João Ladeira é professor na Universidade Federal do Paraná – UFPR.

Eis o artigo.

Aparentemente, pareceria simples escrever sobre Estou Me Guardando Para Quando O Carnaval Chegar (2019, de Marcelo Gomes). O caminho mais certeiro seria reafirmar aquilo que o próprio filme diz. Pois ninguém duvidou que se trata de um retrato preciso sobre nosso tempo, numa imagem não muito satisfeita com o que viu.

A obra narra um mundo de flexibilidade radical no trabalho. Para isso, usa como cenário não algum polo high-tech do Vale do Silício, mas a improvável Toritama, localidade no interior de Pernambuco, parte de um arranjo mais extenso para a produção e venda de jeans no Alto Capibaribe.

Ficamos todos estupefatos com os 20% da produção nacional de tal tecido pela qual a região é responsável. O custo humano pareceu não menos estarrecedor. Sem CLT ou Carteira de Trabalho, assistimos aos trabalhadores de Toritama durante imensas jornadas de 14 horas diárias.

O caminho mais curto seria escrever sobre a barbárie das relações à lá século XIX em plena pós-modernidade. Viriam à mente os riscos das reformas trabalhistas que estão aí virando a esquina. É tudo verdade, mas escrever assim seria produzir um decalque, repetindo tudo que já se sabe. Como resultado, estaríamos trocando uma discussão sobre o filme por uma análise semelhante àquela que, motivada pelo documentário, Fábio Zanini publicou na Folha de S. Paulo. Como resultado, estaríamos frente a um bom relato jornalístico ou a uma discussão sociológica relevante.

Estou preso à vida...

Curioso que o próprio filme não se proponha a isto. Ele não se debruça sobre as razões que transformaram Toritama na Manchester do Agreste. Seu interesse está nas pessoas, e, por isso, a obra se divide claramente em duas partes.

Inicialmente, vemos o interminável esforço de homens e mulheres, jovens e velhos que costuram, tingem, cortam, retocam e finalizam jeans. Em certo momento, o narrador nos conta o quanto se sente próximo àquela rotina; ele que, também, tanto depende do tempo alheio para contar suas histórias. Aí começa o ponto que o filme tangencia, sem seguir.

Outra parte acontece durante o carnaval. Sabemos que ali, como em tantas partes do Brasil, é comum fugir quando a festa chega. Cada um vende qualquer coisa para levantar um dinheiro e escapar para a praia. Mas uma família falha nesse projeto, e os cineastas financiam suas férias em troca de imagens sobre tais dias.

Então, vemos o carnaval através das câmeras cedidas pelos personagens, num filme dentro do filme produzido por trabalhadores que deveriam estar em descanso.

...e olho meus companheiros

Há ousadia em transformar o lazer dos personagens naquilo sem o qual não se poderia finalizar o documentário. O tempo na praia seria o único momento liberto da labuta, não fosse a intervenção dos cineastas, transformando tal instante num produto para outrem.

Uma contradição? Estaria Gomes explorando um trabalho que, como parece, o incomoda profundamente? Dizer isso seria afirmar um absurdo. De tão esdrúxulo, esse comentário só cabe nesse texto para ser rapidamente afastado.

O filme não existiria sem essas imagens, assim como nosso tempo seria outro sem essas relações intermináveis de trabalho. Como escapar disso? Afinal, com exceção de um homem que tange cabras e uma senhora que ainda se recorda do coletor de impostos que era o pai de Gomes, ninguém parece se incomodar com tanta labuta.

Barthes uma vez disse que o artista em férias era um retrato invertido do trabalhador. Enquanto para todos o esforço é um fardo, para um Gide passeando no Congo o suor corria mesmo quando não era necessário. Isso o mantinha próximo, e sempre distante, do homem comum.

Por si só, Toritama já seria o oposto disso. Mas o caso parece ainda mais complexo. Pois essa era uma crítica de quando certas contradições pareciam solucionadas pelo welfare state. Esse tempo se foi. Para nossos personagens, soaria absurdo o industrialismo do século XX ou a sociedade afluente do pós-guerra.

Em busca de imagens

Mas se a questão fosse apenas essa, ficaríamos com o texto de Zanini, que nos conta sobre a Nova Direita Brasileira lá e em Santa Cruz do Capibaribe, distante 20 Km de Toritama. Saberíamos que essa primeira foi a única cidade de Pernambuco em que Bolsonaro venceu nos dois turnos da eleição, com 54% dos votos na reta final.

Isso seria analisar um filme como um comentário sobre o mundo. Estou me Guardando mais se aproxima ao episódio Photos et Cie/Marcel, de Six fois deux (1976, de Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville), na longa discussão sobre o valor de uma imagem. Sua fraqueza se torna que Gomes apenas toque essa questão ao invés de explorá-la nas suas profundezas.

Pois o trabalho sem qualquer direito criou outra forma de vida, amplamente aceita, admirada pela energia concedida a um indivíduo que supõe não dever nada a ninguém. Discorrer sobre direitos sociais levaria o sujeito a rir na sua cara. Falar em consciência de classe o faria chamar o Exército e clamar por intervenção.

Apenas outra forma de vida poderia se contrapor com a radicalidade que um tema como esse merece. Seria necessário que, através das imagens, surgissem mais que denúncias. Precisava-se experimentar algo novo, e não apenas mostrar aquilo que todos já sabem, mas ninguém mais parece dar a mínima.■

Ficha Técnica:

 

Título: Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar
Direção: Marcelo Gomes
Elenco: atores desconhecidos
Gênero Documentário
Nacionalidade Brasil

Assista ao Trailer

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