Edição 212 | 19 Março 2007

Escrita criativa e stream of counsciousness

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IHU Online

Para o norte-americano Johnny Lorenz, técnicas como o free writing (escrita livre) e stream of consciousness (fluxo de consciência) podem ser aplicadas na hora de compor letras para rock. Mesmo representando maneiras mais soltas de escrita, ele frisa que não significam liberdade total, pois se valem do uso da palavra, do conceito, sem o que é impossível criar. O free writing, por exemplo, faz com que a pessoa fique mais receptiva a diferentes influências: “Você vira um catalisador de vários estímulos e coloca-os no papel”, disse na entrevista que concedeu pessoalmente à IHU On-Line. Lorenz mencionou, também, que é importante que as pessoas se arrisquem, criem e não tenham medo de copiar deixando a sua marca, lembrando que não se “pode criar algo totalmente original”.

Lorenz nasceu em Newark, Estados Unidos. É doutor em Letras pela Universidade do Texas e leciona na Montclair State University, em New Jersey. Em 2003, recebeu uma bolsa Fulbright para traduzir para o inglês a poesia de Mário Quintana. No momento, Lorenz está no Brasil realizando uma pesquisa sobre Simões Lopes Neto. Em 26-02-2007 conduziu a oficina de Experimentação textual e escrita criativa no curso de Formação de Produtores e Músicos de Rock, da Unisinos.

IHU On-Line - O que é free writing e stream of consciousness, e o que essas técnicas têm a ver com o rock ‘n’ roll?
Johnny Lorenz
– O free writing, que significa escrita livre, é um exercício em que você escreve e tenta esquecer do raciocínio, da seqüência lógica do parágrafo, o que não é muito fácil. As pessoas estão acostumadas a pensar dentro de um sistema lógico. O free writing é uma maneira de captar os pensamentos soltos. Há quem diga que essa é uma maneira de se explorar o subconsciente. Quando eu conduzi a oficina de Experimentação textual e escrita criativa com a turma do curso de Formação de Produtores e Músicos de Rock, não estava tentando fazer isso necessariamente. Como estávamos analisando uma música do Bob Dylan , “Subterranean homesick blues”, percebemos que várias idéias que aparentemente não tinham nada a ver umas com as outras foram sendo colocadas na letra da música. Expliquei para a turma que há duas coisas bem diferentes, mas que têm uma ligação entre si. A primeira delas é o free writing, quando se escreve sem traçar um argumento lógico, com liberdade. Foi bastante difícil para os alunos fazerem o exercício. Muitos não conseguiram escrever sem dar uma pausa, racionalizar. No caso da música de Dylan, não se trata exatamente de free writing, porque ela tem rima, versos, refrão, então há um outro tipo de escrita aí, chamada de stream of consciousness, que em português poderia ser chamada de fluxo de consciência. Esse fluxo de idéias é uma coisa mais trabalhada; não é só escrever, mas escrever e reescrever, tentando imitar ou captar de modo mais organizado. Escritores como Faulkner  escrevem dessa forma, mostrando que em cinco segundos podemos ter mil pensamentos. Assim, o que eu quis mostrar para a turma do Rock é que se pode começar com o free writing como uma forma de ter um texto para ser usado como inspiração para compor canções, pegando umas linhas e trabalhando com elas para fazer rimas, algo mais poético. E pode-se passar para o stream of counsciousness, elaborando as idéias.

IHU On-Line – E por que tu escolheste exatamente Dylan para esse exercício?
Johnny Lorenz
- A música de Dylan não é fácil de se compreender. Há muitas gírias que hoje não são mais usadas, que fazem parte de um universo bem particular. Eu pensei em usar aquela música como inspiração e mostrar para a turma que às vezes você não tem que ter uma só mensagem, um argumento na música. A linguagem é tão forte e ampla que se você deixar as palavras terem mais liberdade, e dar oportunidade para os significados aparecerem, o resultado é mais autêntico. Funciona como a poesia. O poeta não é o dono do poema. O poema é algo que existe fora da consciência da pessoa. Se você quiser entender um poema de Shakespeare  ou de Drummond , você não tem que falar com a pessoa para entendê-lo. O autor pode estar até morto, mas o poema sobrevive e fala muitas coisas. Por isso, você pode entender várias coisas que o próprio autor não pensou em dizer. Mas eu gostaria de destacar que quando um cantor ou poeta canta ou escreve ele não está falando de si próprio. Não são sempre experiências pessoais que estão presentes na arte. Podem ser ficções. Infelizmente, as pessoas acham que o eu fictício é um eu verdadeiro. Resumindo, eu tentei dizer à turma do Rock que a música não precisa ser uma maneira de se expressar pessoalmente, como um poema não tem que dizer aquilo que está dentro da pessoa.

Não há nada original

O desafio dos alunos do curso era “responder” àquela música de Dylan, e assim entendemos que a música é um tipo de comunidade. Como qualquer poema, ela não existe na solidão. Qualquer poema é uma resposta a outro poema. Se você já leu poesia, tem as palavras na memória, como referenciais. Assim, qualquer coisa que você escreva é uma resposta. Isso é originalidade. Você não pode criar algo totalmente original; as coisas sempre têm algo de “roubadas”. Pensando assim, temos uma certa liberdade, porque, muitas vezes, as pessoas acham que para criar, fazer arte, é preciso uma autenticidade completa, o que acaba atrapalhando a pessoa. Muitos chegam a desistir, achando que não há mais nada para ser dito. Eu acho muito mais produtivo, e mais feliz, simplesmente responder, e assim fazer algo diferente, original.

Para uma pessoa jovem, que quer começar, eu diria que imitar também tem o seu valor.

Na aula do curso de Rock, além da música do Dylan, analisamos uma música do Pixies , “Monkey gone to heaven”. Provoquei os alunos perguntando se essa canção lembrava o Nirvana . E, realmente, a sonoridade é muito semelhante. O próprio Kurt Cobain  disse que queria escrever algo bem do tipo do Pixies e então criou “Smels like teen spirit”. E todos acharam essa canção sensacional, diferente, crua, nua, violenta, poderosa. Isso é originalidade, é roubar à sua maneira. Um poeta afirmou, certa vez, que um bom poeta tira dos outros poetas - e um grande poeta rouba. E admitamos que hoje tudo é reinventado. Quando eu ouço as músicas que estão tocando agora, parece que já reconheço tudo. Se tu conheces Velvet Underground , já ouviste todas as músicas alternativas de rock. O indie rock, por exemplo, começa com o Velvet e, pelo jeito, ainda não conseguiu se “livrar” dele. Isso talvez seja uma marca do mundo pós-moderno.

IHU On-Line – Há uma relação do free writing com a contracultura dos anos 1960?
Johnny Lorenz
- O free writing tem muito a ver com a comunidade dos poetas dos anos 1960, dos beats, como Allen Ginsberg , que era uma fonte de arte e literatura importante, exatamente quando Dylan estreava na música. Assim, fiz uma ligação entre a canção de Dylan e o free writing. Basta olhar o clipe de Dylan de “Subterranean homesick blues”, quando ele fica jogando para trás as placas cheias de palavras, para ver Gisnberg em um beco, atrás, observando a cena. Nessa época, Ginsberg estava usando muitas drogas, buscando outros modos de existência, estudando o zen budismo e tentando escrever com métodos diferentes. Não estou dizendo que Dylan fez isso, mas essas influências estavam no ar. A música de Dylan tem mais a ver com stream of consciousness, no meu ponto de vista, do que com free writing. O free writing foi uma forma de iniciar a discussão com os alunos de Rock. Essa técnica é uma maneira de ficar receptivo a essas influências diferentes. Você vira um catalisador de vários estímulos e coloca-os no papel. Free writing é uma tentativa de escapar das estruturas. Mas é importante lembrar que, mesmo assim, usamos a palavra, que é um aprisionamento do qual não podemos escapar para estabelecermos a comunicação, se não seria dizer o indizível. A palavra vem com uma teia de associações, e é impossível escapar disso. Assim, free writing e stream of consciousness não significam liberdade total de criação.

 

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