Edição | 11 Junho 2019

Uma iluminação falsa

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João Ladeira

O Holocausto se repete em Sobibor, numa duplicada que talvez contenha bem pouco de respeito aos mortos.

“Se o cinema sobre o Holocausto consiste num gênero, existe também outro, centrado em prisioneiros de guerra. Derivação do filme de prisão, contém uma especificidade notável: refletem sobre o poder em sua encarnação mais injusta: as histórias de confinamento”, escreve João Ladeira.

Sobibor (sinopse): Baseado na história real de uma revolta que ocorreu no campo de extermínio russo de Sobibor, durante a Segunda Guerra Mundial, e do oficial soviético Alexander Pechersky. Quando era um prisioneiro de guerra em Sobibor, Pechersky conseguiu fazer o impossível: organizar um motim que resultou na fuga em massa dos prisioneiros do local. Muitos dos fugitivos foram mais tarde capturados e mortos – o resto, liderado por Pechersky, conseguiu se juntar aos seus compatriotas e engrossar as linhas defensivas russas. Representante da Rússia ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro 2019.

João Ladeira é professor na Universidade Federal do Paraná – UFPR.

Eis a crítica.

Sobibor (2018, Konstantin Khabenskiy) não é um bom filme, e parece difícil acreditar que pudesse sê-lo. Mas possui uma curiosidade. Há muitas películas russas ou soviéticas sobre a Segunda Guerra, mas essa versa sobre o Holocausto, em fatos que envolvem um sobrevivente histórico: Alexander “Sasha” Pechersky.

Essa parecia ser uma especialidade de Hollywood, mas a Rússia mostra que também pode manejá-la. Já se contou a história de Sobibor e de Sasha, narrada num telefilme, Fuga de Sobibor (Escape from Sobibor, 1987, de Jack Gold), e num documentário de Claude Lanzmann, Sobibor, 14 octobre 1943, 16 heures (2001).

Cada um possui seu tom, mas comparar Sobibor a seus antecessores interessa pouco. Também não importa discutir sua fidelidade aos “fatos” ou se debruçar sobre sua fotografia, suas atuações ou seu cenário. Na verdade, o trabalho de Khabenskiy importa pouco. Relevante é o que se pretende com ele.

Há uma troca de perspectiva em jogo. Num artigo para A Companion to Russian Cinema, coleção da Wiley-Blackwell sobre produções nacionais, Stephen Norris descreve o afinco com a qual a mãe-Rússia sempre foi defendida nos filmes. Não surpreende que o mesmo se repita por trás do arame-farpado.

Fugindo do Inferno

Se o cinema sobre o Holocausto consiste num gênero, existe também outro, centrado em prisioneiros de guerra. Derivação do filme de prisão, contém uma especificidade notável: refletem sobre o poder em sua encarnação mais injusta: as histórias de confinamento.

Existe personagem em situação mais frágil? Quem precisa escapar guarda imenso valor moral. Porém, são fugas bem diferentes as de A Grande Ilusão (La grande illusion, 1937, de Jean Renoir) e de Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s'est échappé, 1956, de Robert Bresson) frente a de O Franco Atirador (The Deer Hunter, 1978, de Michael Cimino), por exemplo.

Nos dois primeiros, nos deparamos com uma visão humanista, sem pátria, contrária a todo conflito. É um lirismo que jamais caberá nas canções patrióticas. Enquanto isso, Cimino ironizava um império em decadência moral, desfazendo-se em meio à guerra homicida que não poupava nem mesmo seus próprios homens.

Mas Sobibor nada tem de dissonante ou menor. Nem possui indícios de obra de dissolução. O contrário: aponta para uma tentativa de afirmar algo. É previsível: diferentes impérios – ou aqueles com a pretensão de sê-lo – se depararam com a necessidade de expor sua versão sobre a vitória.

Pois há uma fala curiosa no filme. Próximo do clímax, um dos personagens pergunta: “O que [Sasha] tem no coração para todos o ouvirem?”. A resposta: “[Ele] tem Stalin no coração”. O que esse sujeito tinha ou deixava de ter no lado esquerdo do peito é questão em aberto, mas a alusão é bem curiosa.

Tigres de papel?

Num texto republicado pela Piauí em 2014, Slavoj Žižek nos recordou o quanto a política externa de Putin se aproxima de uma pretensão que o filósofo chamou de “czarista-stalinista”: a expectativa de reconstruir um grande império no espírito do velho ditador totalitário.

Tal projeto vem sempre acompanhado da escolha de inimigos ficcionais. Que o filme nos recorde exatamente do czar vermelho parece curioso. São pretensões de grandeza na qual os poderes do mundo querem se revezar, expectativa da qual Sobibor participa.

Que a insurreição do filme de Khabenskiy tenha sido conduzida por um soviético integrante do Exército Vermelho parece muito mais importante que o fato de Sasha ser judeu. Se, de dentro de um campo de concentração cinematográfico nosso herói está defendendo a humanidade, ele o faz de um ponto de vista russo.

Para tal, luta contra aquele que, no cinema norte-americano, havia sido o principal inimigo de celuloide. E, se tudo acontece mais de uma vez – como tragédia, farsa ou o que quer que seja –, então Sobibor é apenas outra tentativa de legitimar as pretensões imperiais da Rússia desses dias que correm.

Quando o próprio Khabenskiy (um ator conhecido em seu país) protagonizou The Admiral (2008, de Andrei Kravchuk), a apropriação criativa da história, típica ao cinema, transformou os Exércitos Brancos em heróis de uma nação grande e poderosa. Trocam-se as posições, os países se alternam: as fantasias continuam as mesmas.

F for Fake

A recordação parece indispensável a certo tipo de cinema. Nenhuma outra arte pareceu tão eficaz em fazer crer que o passado está novamente ocorrendo diante de nossos olhos. É o indício mais bem-acabado dessa vontade de recriar um tempo pregresso em suas minúcias, como se alguma iluminação pudesse brotar daí.

Quando esses filmes nos fazem chorar, cremos num ato de respeito pela dor daqueles que não puderam se safar. Talvez não exista gênero em que essa sensação foi tão aproveitada quanto nos filmes de guerra. Mas o cinema sobre o passado talvez seja o mais indiferente ao sofrimento que consumiu a vida de quem viveu o horror.

Sua energia visa sempre a certa versão do presente, e só. Na visita de Netanyahu à Rússia em janeiro de 2018, o primeiro-ministro de Israel conheceu, junto de Putin, o Museu e Centro de Tolerância Judaico. Assistiram à exposição "Sobibor: Aqueles que Desafiaram a Morte".

Ao noticiar o evento, o site do Kremlin fez questão de citar tal levante como obra de Sasha. Pois é. ■

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