Edição 536 | 13 Mai 2019

Youtubers: novas formas de a infância ver e ser vista pelo mundo

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João Vitor Santos

Renata Thomaz observa como ferramentas digitais reconfiguram não só a forma como as novas gerações apreendem o que as circunda, mas também como compartilham experiências

As novas tecnologias abrem possibilidades para pesquisar e buscar compreender as formas como se configura a infância do século XXI. É o que acredita a professora Renata Cristina de Oliveira Tomaz, mestra e doutora em Comunicação e Cultura. Para ela, se antes era possível compreender as gerações mais novas observando as crianças em parquinhos, praças ou no ambiente escolar, atualmente isso também é possível através das mídias digitais. “O YouTube se coloca não apenas como uma janela para as crianças observarem o mundo, mas também uma janela para o mundo ver as crianças e conhecer as diferentes experiências possíveis de infância. Como mãe de um menino de nove anos, senti-me desafiada a ouvir mais”, explica, ao apresentar seu interesse pelo mundo dos youtubers.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Renata revela que “as crianças estão buscando formas de se comunicar, de expressar o que pensam, de participar da construção de sentidos que moldam nossa cultura”. “Acredito que isso é um convite a que todos nós as ouçamos”, completa. Mas como ouvir esses que parecem dominar tais ambientes muito melhor do que nós? “O primeiro passo é ter em mente que a forma de os mais jovens produzirem saberes não é igual à de outras gerações, uma vez que o modo de apreender o mundo depende dos recursos materiais e simbólicos de que se dispõe”, indica.

E para quem sente medo ou está em constante estado de alerta sobre como as crianças interagem pelas mediações dessas tecnologias, Renata alerta: “cada meio tem seus riscos e suas possibilidades. A história nos mostra que não é possível gozar das oportunidades sem correr riscos, nem anular os riscos sem perder as oportunidades”. Assim, embora esses usos tenham de se dar sob certo controle, Renata também convida a mudar o olhar e tentar compreender como esses youtubers constituem as suas próprias práticas de viver a infância, muitas vezes até reeditando hábitos de outras gerações.

Renata Cristina de Oliveira Tomaz é professora substituta do Departamento de Estudos Culturais e Mídia na Universidade Federal Fluminense - UFF. Graduada em Jornalismo, possui doutorado e mestrado em Comunicação e Cultura, na linha de pesquisa Mídia e Mediações Socioculturais. Realizou estágio de pós-doutorado na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. É vencedora do Prêmio Eduardo Peñuela 2018, concedido pela Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação - Compós, na categoria Melhor Tese de Doutorado, com o trabalho "O que você vai ser antes de crescer? - Youtubers, Infância e Celebridades".

Renata esteve no Instituto Humanas Unisinos - IHU neste ano, ministrando as conferências A Juvenilização da sociedade contemporânea e seus impactos nas representações geracionais e A formação e os saberes das juventudes. Gerações, tecnologias, youtubers e subjetividades. Acesse os vídeos com a íntegra das palestras.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os desafios para compreender como os jovens de hoje constituem seus saberes? E como a constituição desses saberes vai impactar as suas relações com o mundo?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Acredito que o primeiro passo é ter em mente que a forma de os mais jovens produzirem saberes (visões de mundo, verdades) não é igual à de outras gerações, uma vez que o modo de apreender o mundo depende dos recursos materiais e simbólicos de que se dispõe – e isso, por sua vez, depende dos contextos em que os indivíduos estão inseridos.

Por exemplo, um jovem com conhecimentos restritos no que diz respeito à produção e circulação de conteúdos fará uma apreensão do mundo distinta daquele que usufrui não só dos dispositivos necessários para fazê-lo, mas especialmente das competências para usá-los. Essas especificidades materiais e simbólicas através das quais os jovens particularmente apreendem o mundo na contemporaneidade vão afetar diretamente a maneira com que eles vão se inserir nas realidades sociais, ou seja, nos lugares de importância (ou não) que vão ocupar. Os saberes, portanto, atuam na definição das hierarquias sociais.

IHU On-Line – As redes sociais reconfiguram uma série de relações na sociedade de hoje, mas como essa nova ambiência vai incidir na formação dos adolescentes, que já nascem e crescem nessa realidade?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – As competências desenvolvidas no consumo midiático não determinam, mas reconfiguram nossas relações porque reorganizam os detentores de saberes. As crianças e os adolescentes que cresceram utilizando a internet acessam conhecimentos que não foram comuns às gerações anteriores. Com isso, os mais jovens acabam tendo mais espaço, na medida em que possuem maior conhecimento sobre aspectos altamente valorizados nas sociedades em que estão inseridos. Isso pode dar a sensação de que são mais capazes que seus pais e avós para os mais diferentes desafios sociais. Penso que essa grande expectativa em relação aos mais novos tem como uma de suas principais implicações uma profunda angústia entre as novas gerações.

IHU On-Line – Nas décadas de 1980 e 1990, havia uma preocupação muito grande em não deixar as crianças apenas imersas no mundo da televisão, era preciso evitar as “babás eletrônicas”. Hoje, as crianças já nascem como nativos digitais. Que riscos corremos diante dessa nova realidade? Ou já superamos os riscos das “babás eletrônicas”, vivendo plenamente uma sociedade em rede mediada pela tecnologia?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Cada meio tem seus riscos e suas possibilidades. A história nos mostra que não é possível gozar das oportunidades sem correr riscos, nem anular os riscos sem perder as oportunidades. Eles caminham juntos. Os livros já foram acusados de desencaminhar jovens e senhoras da sociedade; o cinema, de tornar as crianças violentas; os quadrinhos, de aliená-los; e as TVs e videogames, de afetá-los cognitivamente.

Não sei se a questão aqui é de superar os riscos. Não teria como afirmar isso. Mas acredito que as sociedades que tiveram de lidar com esse tipo de consumo aprenderam a usufruir de suas possibilidades. Penso que estamos a caminho disso nos usos que fazemos das mídias digitais.

IHU On-Line – Como compreender a lógica narrativa dos youtubers? E qual o impacto na formação de uma criança que é, desde cedo, “famosa” e formadora de opinião? Podemos considerar essa uma nova maneira de formação de “lideranças juvenis”?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Os desdobramentos de uma vida de fama ainda na infância despertaram muitas discussões. Não são poucos os discursos que vinculam casos mais prosaicos de infortúnios à fama nos primeiros anos de vida. Acho particularmente algo difícil de mensurar e muito especulativo. Minha percepção, dentro da minha área de estudos, é de que a possibilidade de construir a própria celebridade por meio de uma produção constante de conteúdo a respeito de si mesmo, caso do YouTube, insere as crianças em uma grande disputa por espaço no imaginário social.

Essa inflação de imagens demanda uma produção cada vez maior de conteúdo. A recusa a atendê-la poderá implicar o apagamento daquele nome, daquela figura e, assim, condenar a criança ao esquecimento. Nesse sentido, penso que o primeiro impacto é a autorresponsabilização das crianças no que diz respeito a manter o seu rosto e o seu nome vivos no ambiente público da internet. As habilidades e competências para tornar isso possível vão sendo premiadas pela plataforma através do envio de placas comemorativas e de uma série de benefícios oferecidos aos que crescem em número de visualizações e inscritos. Esse lugar de prestígio torna-se, assim, horizonte do que ser e de como estar no mundo para muitas crianças, que tomam, em grande medida, os youtubers mirins como figuras modelares e tipos subjetivos desejáveis.

IHU On-Line – E, por outro lado, como essa experiência de consumo de vídeo do YouTube, por aqueles que são os expectadores, vai incidir na formação de crianças e adolescentes?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Como crianças que consomem e produzem conteúdo audiovisual para a internet, os youtubers mirins se valem de elementos narrativos específicos para construírem seus vídeos. Os meninos e meninas contam o que gostam de fazer e comer, onde passearam no final de semana, de que forma comemoraram datas festivas, onde compraram o material escolar, como brincam de boneca, com quem costumam estar.

Toda essa dinâmica é muito mais passível de identificação para outras crianças do que se elas exibissem, por exemplo, talentos e competências específicos como cantar, dançar, cozinhar, falar outros idiomas etc. Esses processos de identificação são muito potentes na socialização das crianças, uma vez que as levam à compreensão de algo que elas podem ser hoje, e não algo que elas serão um dia, quando crescerem.

IHU On-Line – Quais os riscos e potencialidades de as crianças e adolescentes estarem “sempre brincando com a câmera ligada”?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Isso vai depender muito do contexto em que a criança e o adolescente vivem e, como eu disse antes, do acesso que elas têm a recursos materiais e simbólicos para se inserirem no cenário público da internet. No entanto, em linhas muito gerais, os riscos estão bastante ligados ao contato com estranhos e às práticas de cyberbullying.

Quanto às possibilidades, destaco aquelas que gravitam em torno das demandas identitárias. Ser um usuário ativo nas plataformas digitais propicia o exercício de diferentes e novos papéis sociais com graus distintos de relevância social.

IHU On-Line – Na sua pesquisa de doutorado, você pesquisou quatro canais de YouTube protagonizados por meninas entre 9 e 11 anos. No que essa sua experiência mais a surpreendeu? Que relações podemos estabelecer entre essas narrativas com a forma como essas crianças desenvolvem suas sociabilidades?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Como pesquisadora, fiquei sensivelmente impactada com a possibilidade de estudar, por meio de uma plataforma de vídeos, as infâncias na perspectiva das próprias crianças. Assim como fazemos pesquisa com crianças no ambiente escolar, em uma pracinha ou até em festas de aniversário, o YouTube surge como um novo lugar que me permitiu observar o que dizem e quais são as perspectivas das crianças sobre diferentes assuntos.

A pesquisa ampliou, portanto, as possibilidades de investigar as diferentes realidades da infância. Uma das minhas hipóteses, fruto dessa investigação, é que o YouTube se coloca não apenas como uma janela para as crianças observarem o mundo, mas também uma janela para o mundo ver as crianças e conhecer as diferentes experiências possíveis de infância. Como mãe de um menino de nove anos, por outro lado, senti-me desafiada a ouvir mais. Entendi que as crianças estão buscando formas de se comunicar, de expressar o que pensam, de participar da construção de sentidos que moldam nossa cultura. Acredito que isso é um convite a que todos nós as ouçamos.

IHU On-Line –Muitos pais se preocupam com o consumismo de crianças que são encharcadas pela publicidade. Nesse sentido, os canais de youtubers que demonstram e trazem novidades especialmente sobre brinquedos se tornam mais um risco para se incutir o consumismo nas crianças? Por quê?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Eu não compartilho dessa ideia de que o consumismo é incutido na mente dos indivíduos, incluindo as crianças. Eu acredito que a relação entre infância e consumo, entre crianças e as práticas de consumir, são mediadas por muitas instâncias como a família, a classe, a etnia, o gênero, a escola, os costumes, o grupo de pares etc. Uma pessoa consumista, ou seja, que vive para consumir não pode sê-lo por uma única razão.

Dito isso, penso que as incontáveis possibilidades de promover marcas e produtos por meio dos vídeos do YouTube voltados para as crianças combinados com outros fatores – como o poder de compra, a voz da criança em sua família, a influência dos amigos etc. – pode potencializar os hábitos de compra. Uma dada mochila em um dado ambiente escolar pode conferir a seus utentes um prestígio social, que o impulsiona a comprá-la. Por outro lado, as tradições culturais e/ou religiosas de uma família podem ser um fator que restringe a relação de compra em determinado contexto.

IHU On-Line – Quem são os tweens? Como compreender as relações que estabelecem entre juventude, cultura e mídia?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – O termo tweens designa uma faixa etária que vai dos 8 aos 14 anos. Foi cunhado em uma revista de marketing nos anos 1980 para fazer referência a um mercado consumidor que se desenhava à época na América do Norte. Embora tenha uma sonoridade e grafia semelhante à palavra teen (adolescente em inglês), tem sua origem na preposição inglesa "between", que indica a posição entre duas coisas. Nesse caso, os tweens estariam entre a infância e a adolescência. Para nós, no Brasil, seriam os pré-adolescentes.

O que percebi, analisando os discursos midiáticos que fazem referência aos tweens, em específico, e aos pré-adolescentes, de maneira geral, ao longo da primeira década do século XXI, foi que os termos falam mais de práticas subjetivas do que de idade. Por intermédio de um consumo midiático, que lhes oferece bulas de comportamento e práticas culturais, as crianças fazem a transição de uma identidade etária infantil para uma juvenil, produzindo novas subjetividades. Esses sujeitos são marcados pela centralidade da imagem da juventude em nossa cultural contemporânea, de modo que essa passagem da infância para a adolescência tem como horizonte subjetivo não o adulto, mas o jovem.

IHU On-Line – De que forma os crianças e adolescentes, os nativos digitais de hoje se relacionam com o mundo adulto e com os próprios adultos? E que crianças são essas que crescem on-line?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – A ideia de nativo digital tem sido repensada por alguns teóricos, especialmente da educação, os quais defendem a necessidade de uma literacia digital . Embora no senso comum circule a ideia de que as crianças usam os dispositivos digitais intuitivamente, já se sabe que essa facilidade está bastante ligada ao meio em que a criança e o adolescente estão. Quando há, por exemplo, pessoas que lhes dão acesso a gadgets e lhes ensinam funções básicas, permitindo-lhes explorar outras mais complexas, as crianças ampliam de modo sem precedente seus usos. Em pouco tempo, já sabem mais que os adultos. Mas de modo algum isso significa que nascem assim.

Em minha pesquisa de campo, descobri muitas crianças que não sabiam editar vídeos, postá-los ou outras atividades até mesmo básicas para ter um canal. As youtubers cujos canais investiguei dependem dos responsáveis. Isso mostra que não se trata de algo natural, mas ensinado e aprendido. Não podemos deixar de falar, ainda, das crianças que crescem em rincões e não têm o mesmo acesso, o que significa dizer que não possuem os mesmos conhecimentos e competências no manuseio dessas tecnologias.

Por outro lado, aqueles que gozam de tais oportunidades desenvolvem competências midiáticas que, de fato, lhes conferem relevância social em relação com adultos. As hierarquias sociais se deslocam e possibilitam que a relação entre pai e filho, por exemplo, em que este costumava receber o saber daquele, se reconfigure, uma vez que, em algumas questões, o filho sabe mais do que o pai.

IHU On-Line – De que forma plataformas como YouTube chegam à realidade de crianças e adolescentes nas periferias? Como esses jovens vivenciam as transformações dessa ambiência digital?
Renata Cristina de Oliveira Tomaz – Apesar de não ter investigado os meios de acesso dos usuários das plataformas digitais, sei que a TIC Kids Online, no Brasil, a maior pesquisa sobre os usos que crianças e adolescentes fazem da internet, mede esses elementos. Uma das coisas que esse levantamento mostrou é que os dispositivos móveis, celulares e tablets, são os mais utilizados pelos mais novos para acessarem a internet. Isso não é diferente entre as crianças provenientes de famílias de baixa renda, que se valem dos celulares dos pais para jogarem, assistirem aos vídeos e publicarem conteúdo. ■

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