Edição 536 | 13 Mai 2019

O mundo digital construiu novos jovens e novas leituras de mundo

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João Vitor Santos | Edição: Wagner Fernandes de Azevedo

Maria Isabel Mendes de Almeida destaca as novas formas de ler e como isso impacta o perfil dos jovens de hoje

As transformações culturais que ocorreram no mundo desde as décadas de 1960 até a atualidade moldam um novo perfil de jovens. Para a socióloga Maria Isabel Mendes de Almeida, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “o jovem de hoje é notoriamente dependente dos seus pais no plano financeiro e econômico, mas é francamente autônomo na sua capacidade de resolver problemas”.

O mundo digital criou novas dinâmicas que moldam inclusive um novo perfil de leitores, o que impacta a própria compreensão do mundo por esses. De acordo com a socióloga, os jovens nascidos nesse contexto vivem um imenso desassossego “em relação às múltiplas demandas e acenos colocados pelo mundo virtual da leitura”.

O universo digital é múltiplo, fragmentado e compartilhado. Desse modo, o jovem “nunca está só ou isolado”, manifestando pelas redes o compartilhamento de “universos criados por eles”, na contramão de uma leitura predominantemente “intimista e solitária”.

Como fruto desse “fatiamento da agenda social”, os jovens tendem a se mobilizar em “agendas mais ‘telescopizadas’, mais tendentes a fraturas de questões/reivindicações do que a um imaginário mais global”. Para Maria Isabel, “as grandes narrativas não parecem funcionar de modo pleno no âmbito das causas mais globais e de grande amplitude, no momento atual”.

Maria Isabel Mendes de Almeida possui mestrado e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj. Atualmente, é pró-reitora de pós-graduação e pesquisa na Universidade Candido Mendes - Ucam, e coordenadora do Centro de Estudos Sociais Aplicados - Cesap, onde funciona o Núcleo de Estudos em Subjetividade - NES, dedicado à pesquisa das culturas jovens urbanas. Docente do curso de mestrado em Sociologia e Política na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, Maria Isabel organizou, entre outros, os livros Culturas jovens. Novos mapas do afeto (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006) e Por que não? Rupturas e continuidades da contracultura (Rio de Janeiro, 7Letras, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Podemos considerar que os jovens e adolescentes de hoje são mais autônomos? Por quê?
Maria Isabel Mendes de Almeida — Sim, com certeza, podemos. Sobretudo a esfera tecnológica e a imensa transformação por ela trazida para a nossa sociedade foi o que mais atuou e se responsabilizou pela situação de autonomia dos jovens. Não somente ela, a tecnologia "abriu as comportas" dessa imensa autonomia, mas também no plano dos usos e costumes e da mudança de valores em relação à sexualidade, moral, disciplina etc., tal incremento da autonomia também se fez muito revelador. Ou seja, o jovem hoje "se vira" nos mais diversos planos da sociedade, a começar pela relação com seus próprios pais que têm neles uma espécie de iniciador/professor daquilo que implica o conhecimento e a familiarização com as mais diversas acepções da tecnologia e do mundo digital.

IHU On-Line — Como podemos compreender o binômio autonomia e independência nos jovens e adolescentes da atualidade? É correto afirmar que os jovens são mais autônomos, mas mais dependentes?
Maria Isabel Mendes de Almeida — Sim, acredito que é correta esta afirmação, na medida em que revela um desajuste típico expresso pela contrapartida desta geração atual de jovens dos setores médios com, por exemplo, a geração da contracultura. Ou seja, ao contrário da geração contracultural das décadas de 60 e 70 do século passado – que adquiria a independência saindo da casa dos pais e, conjugando, portanto, simetricamente esta independência com a autonomia –, o jovem de hoje é notoriamente dependente dos seus pais no plano financeiro e econômico, mas é francamente autônomo na sua capacidade de resolver problemas, extrair soluções de situações cotidianas difíceis ou complicadas, contornar impasses na vida doméstica. Enfim, está ao alcance de sua mão a capacidade de manobrar destinos e inventariar saídas para o dia a dia.

Para os jovens das décadas de 60 e 70, a saída da casa dos pais era a referência icônica de sua independência, ainda que este morar fora da casa dos pais pudesse significar a opção em ir para uma república estudantil, dividir as despesas de um apartamento com um amigo ou alugar um quarto em um apartamento, etc... O importante é que nesses casos prevalecia uma fina conjugação entre as noções de autonomia e independência.

O jovem de hoje, em contraposição, pode até possuir suas economias, fruto de seu trabalho, morando na casa dos pais, mas ele não chega a poder dar o passo decisivo de financiar sua saída, pois muitas vezes essas economias não são suficientes para que ele dê esse passo. Ao se manter na casa de seus pais, ele é muitas vezes capaz de juntar dinheiro para empreender certos planos, mas remotamente o de ter sua própria casa. Mais uma vez percebemos que este jovem tem o predicado singular de ser autônomo, mas padece da chance de desbravar a condição de um jovem independente, ou seja, aquele que saiu da casa dos pais e foi morar sozinho, bancando-se a si mesmo.

De outro lado, se levamos em conta de forma mais rigorosa as variáveis de classe e região, também podemos encontrar circunstâncias de autonomia e independência nos dias de hoje. É o caso, em algumas situações de jovens dos setores populares que conseguem algum tipo de independência financeira chegando a poder auxiliar e fornecer alguma estrutura de sobrevivência para a geração de seus pais. Mas não são muitos.

IHU On-Line — De que forma a senhora analisa as dinâmicas de leitura dessas novas gerações? Em que medida rompem com velhas dinâmicas e inauguram novas práticas?
Maria Isabel Mendes de Almeida — Essas dinâmicas tanto se abrem para novos suportes de leitura pela via tecnológica e digital, quanto expressam uma espécie de queixa e lamento desses jovens em relação a não conseguirem mais, nos dias atuais, lerem um livro inteiro, manterem o foco e a concentração na leitura, ter fôlego para terminar um livro em tempo hábil, tal como no passado. Portanto, creio que apesar de estarem com suas práticas de leitura muito mais voltadas para o universo online e digital, eles também se mostram muito nostálgicos frente ao que seria um padrão mais canônico e tradicional de ler.

Muitos deles chegam a fazer analogias com o mundo das patologias psiquiátricas para evidenciar que estão "padecendo" de algo como déficit cognitivo, ausência de concentração da atenção, e que, estariam, portanto, precisando “se reabilitar” em relação às velhas dinâmicas. O fato é que não temos realmente dados que possam dizer que se trata de uma ruptura com as velhas dinâmicas da leitura em papel. Se, por exemplo, enfatizamos, como faz Nestor Canclini , o plano do como se lê, ao invés do quanto se lê, semeamos um amplo espectro de possibilidades, de opções, de registros distintos de leitura para o jovem e não, necessariamente, ficamos com a perspectiva unicamente quântica da leitura. Isso significa dizer que, com o peso colocado sobre o como se lê, e sob o amplo espectro de suportes de leitura que existe na contemporaneidade, dilui-se a própria ideia de ruptura de velhas dinâmicas, pois tem-se em mente um amplo universo de possibilidades de práticas de leitura que vão das velhas às novas práticas, sem encarnar a ideia de ruptura...

IHU On-Line — Quais os limites e as potencialidades dessas novas dinâmicas de leitura dos jovens? E como essas dinâmicas impactam a sua apreensão de mundo?
Maria Isabel Mendes de Almeida — As potencialidades são inúmeras para os jovens, já que se tem em mente a multiplicidade de recursos e suportes do universo digital e que não ficamos restritos ao âmbito do quanto se lê hoje. Ao mesmo tempo, não podemos descuidar dos limites que orbitam a visão de mundo desses jovens. O desassossego em relação às múltiplas demandas e acenos colocados pelo mundo virtual da leitura é imenso. Este mundo hoje abriga uma incomensurável rede de pertencimentos e compartilhamentos de leitura: textos e comentários sobre tais funcionamentos circulam em conhecidas redes sociais digitais, como Instagram, Facebook e Twitter e também em redes de plataformas voltadas mais especificamente para as práticas de leitura e escrita, como o Wattpad e o Medium.

O que vale destacar no âmbito da apreensão de mundo desses jovens é a dimensão do compartilhamento da leitura. Este é um aspecto que se destaca de forma muito contundente em relação à leitura intimista e interiorizada. A leitura compartilhada, referida e embebida pelo outro e apoiada pelo "plantão permanente” das inúmeras solicitações que vêm das telas, mobiliza um tipo de abertura às redes que tem dificultado cada vez mais uma circunstância de isolamento para as pessoas, para que elas consigam ficar sozinhas, confrontadas consigo mesmas a partir de um estado de espírito intimista e interiorizado com o livro.

IHU On-Line — Que tipo de relações entre o “eu” e o “outro” as dinâmicas de leitura dessas novas gerações podem provocar?
Maria Isabel Mendes de Almeida — Como disse acima, trata-se aqui deste embeber do eu no outro, encarnado pela ideia do compartilhamento. É neste âmbito que se torna mais difícil se encontrar o pleno registro da autonomia do eu nas práticas de leitura nesta nova geração de jovens. Eles estão sempre em contato. As leituras são cada vez mais fragmentadas e compartilhadas. O uso crescente dos dispositivos múltiplos serve como suporte para os variados formatos de textos. Creio que esta ideia do compartilhamento versus o isolamento íntimo das práticas de leitura é central.

Ao mesmo tempo, não é possível pensar em um leitor absolutamente isolado. Neste sentido, ele nunca está “só” ou “ isolado” se pensarmos em sua necessária interação com um suporte, um ou mais autores, e universos criados por eles. Isto é diferente de dizer que ele obtenha predominantemente uma leitura intimista e solitária. Mas não é demais dizer que existe uma verdadeira celebração em torno da leitura, no que diz respeito a esta ênfase sobre o compartilhamento. Este se traduz, de forma mais explícita, através, por exemplo, de festivais de leitura, saraus e slams.

IHU On-Line — Na conferência que ministrou aqui no IHU, a senhora trouxe a ideia de que os jovens de hoje vivem em desassossego. Gostaria que recuperasse e detalhasse essa perspectiva.
Maria Isabel Mendes de Almeida — Esta ideia se vincula a uma dada economia interna desses jovens que é pautada, fundamentalmente, por uma demanda quase asfixiante que o jovem tem diante de si para agir, atualizar-se, equipar-se frente aos suportes de leitura, por exemplo. Numa palavra, trata-se de uma modalidade de “trepidação”, inquietude e ausência de serenidade que atravessa as dinâmicas internas desses jovens que são alvo constante das solicitações do mundo virtual e das práticas de leitura digitais. Neste sentido, aparecem como contrapartida as apostas na ideia da paragem. Isto é, na valorização dos circuitos que sublinham as ideias de quietude, do sossego, da valorização do silêncio, dos retiros de meditação e toda prática que implica, para os sujeitos, a tomada de distância frente às situações. Este é um elemento central nesta visão de mundo das cartografias da paragem...

IHU On-Line — Como as novas gerações lidam com as demandas sociais desse nosso tempo? Que relação podemos estabelecer entre essa postura dos jovens diante das demandas sociais com esse estado de desassossego que a senhora refere?
Maria Isabel Mendes de Almeida — Não há uma plataforma muito clara sobre como as novas gerações lidam com as demandas sociais de nosso tempo. Ela parece seguir o ritmo e o desenho da fragmentação da leitura, da multiplicidade de suas alternâncias... ou seja, podemos pensar que tais demandas têm hoje como alvo uma espécie de micropulverização de seus objetos e de seus estímulos. Por exemplo, apenas para imaginarmos como se elenca tal pulverização: em torno dos movimentos do feminismo negro, das causas e reivindicações ecológicas da pesca no litoral brasileiro, da agenda gay e trans, das mulheres gays negras, dos performers poéticos urbanos, dos inimigos do bolsonarismo, dos críticos ao olavismo ... Isto para dizer que não é possível lidarmos de forma ampla e organizada com um grande dossel unificador das demandas sociais, na medida em que elas parecem hoje se originar de cardápios superfatiados de uma organização subjetiva muito próxima à fragmentação, à atomização e à compartimentalização de ideias.

IHU On-Line — De que forma o mundo digital, no qual estamos embebidos na atualidade, pode nos levar a um estado de desassossego?
Maria Isabel Mendes de Almeida — Este estado se ancora exatamente em uma circunstância de mudanças tecnológicas vertiginosas que vão gerando sobre os sujeitos exigências de atualização e remanejamento de suas dinâmicas internas. A angústia, subproduto deste desassossego, é o sentimento muitas vezes originado do lamento por não se conseguir ler mais como antes, a compulsão está atrelada aos excessos de contaminação tecnológica. Tudo isso se complexifica com o fato de que sabemos que grande parte desses jovens foi socializada em meio ao livro em papel e às suas circunstâncias típicas. Os dois mundos, de certa forma, estão aí presentes, embora o plano digital se mostre com muito mais força entre os jovens estudados.

O mundo digital, portanto, nos leva a um estado de desassossego na medida em que cria um patamar de exigência de atualização que é incessante e continuado. Não nos permite estabelecer um ritmo próprio e calibrável de acordo com um timing pessoal. Não se trata, no entanto, da visão simplista da tecnologia promovendo isolamento social, ou do mero resultado de uma demanda que se avoluma sobre o sujeito, mas da conexão excessiva desaguando muitas vezes em perda da capacidade de concentração, devaneio, fantasia e sonho. Eis um eixo central do desassossego.

IHU On-Line — De modo geral, como a senhora analisa a vida urbana das juventudes de hoje? E como essas novas gerações se articulam e se mobilizam em torno de causas mais globais?
Maria Isabel Mendes de Almeida — É difícil exemplificar milimetricamente o grau de fatiamento das agendas da vida urbana jovem hoje. Mas essa me parece ser a tendência. É claro que tais juventudes não deixam de ecoar mobilizações em torno de grandes questões globais como, por exemplo, o caso do movimento Occupy , assim como a força que obtiveram no cotidiano de tais jovens as Jornadas de Junho. Em todo caso eu me limitaria a dizer que este desenho da fragmentação e da particularização das causas jovens parece ser a tônica na contemporaneidade, e sobretudo no Brasil.

A articulação e mobilização em torno de causas mais gerais não parece se dar de modo tão significativo no momento atual. Neste momento, o jovem me parece mais repaginado em torno das agendas mais “telescopizadas”, mais tendentes a fraturas de questões/reivindicações do que a um imaginário mais global. As grandes narrativas não me parecem funcionar de modo pleno no âmbito das causas mais globais e de grande amplitude, no momento atual.

Leia mais

Um jovem cada vez mais autônomo e menos independente. Entrevista especial com Maria Isabel Mendes de Almeida, publicada nas Notícias do Dia, de 14-9-2008.

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