Edição 534 | 15 Abril 2019

Diante da cegueira idólatra, um novo Brasil a ser reconstruído

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Ricardo Machado

Ricardo Timm de Souza analisa como o ser humano deixa de se servir das imagens em função do mundo e passa a viver em função delas

Há uma longa tradição de estudos a respeito das impressões que as pessoas têm sobre as imagens do mundo. Do Mito da Caverna de Platão ao Instagram, a distância entre o mundo concreto e as representações do mundo em dispositivos móveis é sempre menos óbvia do que parece. Nesse contexto, a idolatria – seja a ideais estéticos, a marcas ou figuras humanas – tende a operar quase como necessidade básica. Mas a questão, porém, é que esse desejo idólatra tende a transformar a visão em cegueira. “Para Flusser, ‘idolatria [é a] incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante a capacidade de lê-la, portanto, adoração da imagem’”, explica o professor doutor Ricardo Timm de Souza, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “O homem ‘existe’, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens”, complementa.

Se o tema parece abstrato em uma olhada rápida, ao ser colocado em contraste com o Brasil contemporâneo a questão ganha contornos dramáticos. “É evidente, portanto, a relevância de uma tal interpretação para compreender o Brasil de hoje. O imaginário social se encontra completamente penetrado e saturado de imagens que se multiplicam umas às outras e se espalham sem que haja a possibilidade de sua real compreensão, servindo assim a uma ideologia do obscurecimento, ou do obscurantismo, que tem como alvo manter as pretensas ‘mônadas’ [sujeitos] rigorosamente separados uns dos outros”, pondera.

Ao pensar o futuro do país, o professor salienta que “a tarefa de conduzir o Brasil à situação em que merece estar depende de uma ampla e radical tarefa pedagógico-terapêutica. Sem a dimensão que combate a superficialidade da lógica do raso, a lugar nenhum chegaremos. Sem o enfrentamento de uma situação de doença generalizada e esfacelamento medroso da sociedade, igualmente a nenhum lugar chegaremos. Há que combinar essas duas dimensões em um projeto de reativação dos afetos cognitivo-relacionais”.

Ricardo Timm de Souza é graduado em Instrumentos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e em Estudos Sociais e Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Também cursou mestrado em Filosofia pela PUCRS e doutorado em Filosofia pela Universität Freiburg (Albert-Ludwigs). É autor, entre outras obras, de Em torno à diferença – Aventuras da alteridade na complexidade da cultura contemporânea (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). Também é um dos organizadores de Alteridade e Ética – Obra comemorativa dos 100 anos do nascimento de Emmanuel Lévinas (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008).

A entrevista foi originalmente publicada nas Notícias do Dia de 11-04-2016, no sítio do IHU.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De onde vem a noção de idolatrização em seu sentido clássico?

Ricardo Timm de Souza – Entre as muitas heranças e recepções do termo, a mais utilizada se baseia na origem etimológica do conceito: eidololatreía, de eidolon (eidos > eídolon: ídolo: imagem, representação) + latreía (latria: veneração, adoração, reverência) > idolatria. É uma compreensão básica, da qual muitas outras são deriváveis, e permitem atualizações da questão em termos estritamente contemporâneos, em sentido histórico, sociológico, filosófico e teológico.

IHU On-Line – Quais são as raízes teológicas da idolatrização?

Ricardo Timm de Souza – É na Bíblia, em seu conjunto de Antigo e Novo Testamentos, que se encontram os elementos chave para a compreensão do tema da idolatria através dos tempos. Pode-se, por exemplo, acompanhar essa temática ao longo de uma série de escritos de profetas de várias épocas – Oseias, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós, Miqueias, Sofonias, por exemplo – no que tange a inúmeras formas de idolatria às quais os israelitas se entregaram ao longo do tempo (o que vale, igualmente, para uma série de outros escritos bíblicos – salmos, escritos sapienciais etc.): divinização de reinos poderosos e potências estrangeiras, de objetos de culto, de riquezas diversas, de figuras humanas e outros. Naturalmente permanece como protótipo de idolatria o famoso episódio da adoração do famoso “bezerro de ouro” na época mosaica. No novo testamento, o protótipo é a separação absoluta, no evangelho, entre Deus e Mammon, denunciando a adoração a Mammon (lato senso: ouro, dinheiro e bens materiais) como idolatria e estabelecendo, como bem diz José Luis Sicre , um paralelo entre a radical advertência de Elias sobre a disjunção absoluta entre Javeh e Baal e sua correspondência muito posterior na interdição ao culto de Mammon, através da disjunção absoluta entre Deus e Mammon, no Novo Testamento.

IHU On-Line – Na transição dentro da modernidade houve uma secularização ou profanação da idolatrização?

Ricardo Timm de Souza – Não utilizo o termo “profanação”, devido à visão contemporânea no contexto biopolítico que nos é trazida por autores como Agamben . Nesse sentido, pode-se dizer que houve, de algum modo, uma crescente apropriação, pelo saber crítico não (necessariamente) teológico, de elementos constitutivos da temática da idolatria que, na verdade, nunca foram exclusivamente religiosos. Com o surgimento da sociedade capitalista ao longo dos séculos XVI e XVII, a questão da idolatria passa de uma questão privada a uma questão social, na qual o “ouro”, na condição de símbolo da atração absoluta de atitudes de sociedades inteiras, transforma-se no novo “deus” da modernidade nascente. Tal fato é historicamente rastreável através do acompanhamento do desenvolvimento das grandes navegações, das novas lógicas comerciais e do estabelecimento de novas populações e de novas configurações da antiga lógica da guerra por territórios, posses ou riquezas.

IHU On-Line – Quais são as consequências políticas da idolatrização como artifício de poder do Estado a partir da modernidade?

Ricardo Timm de Souza – Tal artifício, ou estratégia de aquisição de poder e sua manutenção, só aconteceu devido a uma renovação da lógica de estabelecimento identificatório entre poder secular e religioso, atualizando momentos históricos como aquele do “cesaropapismo” medieval que vai dar origem à cristandade. Os grandes navegadores tinham uma dupla tarefa: cristianizar os povos e tomar riquezas. Essas tarefas não eram mutuamente excludentes; as viagens tinham as bênçãos civis e religiosas. Por mais que esse seja apenas um exemplo, na verdade a modernidade adapta a inúmeras e diversas situações essa particular combinação entre riqueza e religião, a ponto de desembocar em sistemas de funcionamento nos quais esses elementos são praticamente indistinguíveis e configuram uma visão de mundo e mesmo uma “metafísica” particular. O clássico intérprete de tal sincretismo, como sabemos, é Max Weber . E essa leitura, por ampla e profunda que seja, é apenas uma das interpretações possíveis do fenômeno.

IHU On-Line – O que é “a era da idolatria” nos termos de Flusser? Como isso se conecta ao Brasil atual?

Ricardo Timm de Souza – Para Flusser , “idolatria [é a] incapacidade de decifrar os significados da ideia, não obstante a capacidade de lê-la, portanto, adoração da imagem”. Ou seja, na sua concepção, que assumimos, o conceito de idolatria escapa de uma conotação restritiva – imagens, figurações particulares – e se desdobra em tudo aquilo que oculta parte do que mostra, com especial foco nas ideias; em sendo apenas apreendida “a imagem” da ideia – sua “visibilidade” plana, sem profundidade, sem história, sem fecundidade – restringe-se a compreensão a um nível absolutamente elementar, e, como diz o autor, acaba por obliterar aquilo que é a função precípua das imagens: facilitar-nos o acesso ao mundo. Há uma excelente passagem de Flusser na qual isso é bem esclarecido: “Imagens são mediações entre homem e mundo. O homem “existe”, isto é, o mundo não lhe é acessível imediatamente. Imagens têm o propósito de lhe representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, entrepõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função de imagens. Não mais decifra as cenas da imagem como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inversão da função das imagens é idolatria. Para o idólatra – o homem que vive magicamente –, a realidade reflete imagens. Podemos observar, hoje, de que forma se processa a magicização da vida: as imagens técnicas, atualmente onipresentes, ilustram a inversão da função imaginística e remagicizam a vida” .

É evidente, portanto, a relevância de uma tal interpretação para compreender o Brasil de hoje. O imaginário social se encontra completamente penetrado e saturado de imagens que se multiplicam umas às outras e se espalham sem que haja a possibilidade de sua real compreensão, servindo assim a uma ideologia do obscurecimento, ou do obscurantismo, que tem como alvo manter as pretensas “mônadas” – “indivíduos”, no sentido moderno de “indivíduo contratante, e não como sujeito de sua própria história – rigorosamente separados uns dos outros. Isso é possível porque a mobilização ao estilo fascista ou protofascista de emoções mal resolvidas – que traduzem um dos grandes males de nossa época: a doença do desejo, as relações doentes como sintomas de uma sociedade profundamente doente, na qual o medo é uma espécie de princípio retorcido de realidade, em uma leitura psicanalítica – se acopla a uma pretensa necessidade de segurança em um mundo que significa, em seus constitutivos profundos, uma “totalidade em desagregação”, como escrevi em um livro com esse título de 1996. Do ponto de vista empírico, a crise ecológica atual é o testemunho cabal de uma tal desagregação.

IHU On-Line – O tema da profanação de dispositivos teológicos como dispositivos políticos modernos foi amplamente discutido na obra de Agamben. Nesse sentido, como o autor joga luz sobre esses aspectos e como isso rebate na realidade contemporânea do Brasil?

Ricardo Timm de Souza – Na minha percepção, nenhum autor isoladamente dá conta da complexidade da questão. Nesse sentido, é necessário a meu ver um projeto amplo e profundo de penetração histórico-filosófica no tema da idolatria tal como ela se apresenta hoje. Há que passar, entre outros autores, por Spinoza , Schopenhauer , Marx , Kafka , Freud , Rosenzweig , Hinkelammert , Warburg , Benjamin , Arendt , Adorno , Flusser, Agamben, Levinas , Derrida , para se poder equacionar o problema à altura de sua gravidade. Em outros termos, urge, na minha visão, o projeto ao qual atualmente me dedico: a elaboração de uma “crítica da razão idolátrica” que penetre no turbilhão de metamorfoses que o tema da idolatria assume na contemporaneidade para compreender filosoficamente o sentido que uma desconstrução da idolatria deve assumir, aqui e agora, no mundo e – especialmente – no Brasil.

IHU On-Line – Há todo um vocabulário teológico que acaba sendo utilizado para pensarmos, no limite, questões sociológicas. Nesse sentido, como a noção de “culto às imagens” é trabalhada por Didi-Huberman?

Ricardo Timm de Souza – Didi-Huberman é um herdeiro privilegiado e talentoso de Walter Benjamin, no sentido em que desenvolve através do estudo das obras de arte, de seus contextos e significações, das imagens em geral, um aspecto central do pensamento do próprio Benjamin: trata-se de reler as camadas múltiplas da realidade e perceber o quanto diz aquilo que aparentemente nada diz. Assim, sua obra é, como a do filósofo de Berlim, essencialmente anti-idolátrica. Evidentemente, o processo crítico de sua obra, desde pelo menos A invenção da histeria (Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2015), acutila qualquer tentação de quietismo interpretativo que uma determinada obra ou produção figurativa poderia vir eventualmente a reivindicar. E, portanto, não existem questões exclusivas à história da arte: todas as suas questões são, sempre, históricas e antropológicas, e finalmente filosóficas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ricardo Timm de Souza – Apenas que a tarefa de conduzir o Brasil à situação em que merece estar depende de uma ampla e radical tarefa pedagógico-terapêutica. Sem a dimensão que combate a superficialidade da lógica do raso, a lugar nenhum chegaremos. Sem o enfrentamento de uma situação de doença generalizada e esfacelamento medroso da sociedade, igualmente a nenhum lugar chegaremos. Há que combinar essas duas dimensões em um projeto de reativação dos afetos cognitivo-relacionais. A tarefa é gigantesca, mas, como dizia Franz Rosenzweig, “o tempo certo está aí”. ■

Leia mais

- O fascista não argumenta; rosna. A exclusão de temáticas humanísticas dos currículos escolares. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 490, de 08-08-2016.

- Rosenzweig e uma nova compreensão da ideia de sujeito. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 386, de 19-03-2012.

- O juízo absoluto e a paralisia da linguagem. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 344, de 21-09-2010.

- A contribuição de Lévinas à humanização da sociedade. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 277, de 14-10-2008.

- A Filosofia mudou depois de Auschwitz. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada nas Notícias do Dia, de 13-07-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Os desafios de uma nova ética. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 244, de 19-11-2007.

- Nanotecnologia e filosofia. Entrevista especial com Ricardo Timm publicada na revista IHU On-Line, nº 215, de 16-04-2007.

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