Edição 211 | 12 Março 2007

Escravidão indígena nas Américas

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INTERPRETAÇÕES DO BRASIL: DOS CLÁSSICOS ÀS NOVAS ABORDAGENS

Novas Perspectivas sobre a Escravidão Indígena nas Américas é o tema que apresentará O Prof. Dr. John Manuel Monteiro no ciclo Interpretações do Brasil: dos clássicos às novas abordagens, de terça-feira, 13 de março.

O evento inicia às 19h30min, no auditório central, localizado na Unidade Acadêmica de Ciências Humanas da Unisinos. Para conferir a programação completa do ciclo acesse a página do IHU – www.unisinos.br/ihu.

John Manuel Monteiro é Doutor em História pela University of Chicago e docente no departamento de Antropologia da Universidade Federal de Campinas.  O professor também é autor das seguintes obras que tratam da história indígena do Brasil: Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994 e Guia de Fontes para a História Indígena e do Indigenismo em Arquivos Brasileiros: Acervos das Capitais, São Paulo, Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP/FAPESP, 1994.

IHU On-Line - Em que estágio encontra-se a luta dos povos indígenas no Brasil?   Qual o lugar dos índios na história nacional?

John Monteiro
- A luta dos povos indígenas vem ganhando força desde os anos 1970, com um ponto de inflexão em torno da Constituição de 1988. As mudanças na composição deste movimento foram muito abrangentes e os resultados, em certos aspectos, marcantes. Uma mudança que começou nos anos 80 e hoje domina o cenário diz respeito à criação de organizações indígenas, governadas por lideranças capacitadas através de projetos de ONGs indigenistas ou ambientalistas ou, mais recentemente, nas universidades públicas. As organizações garantem uma participação mais efetiva e direta das comunidades indígenas na garantia de seus direitos históricos. Se a atuação do movimento enfocou, num primeiro momento, o desafio da demarcação de terras, hoje está engajado em projetos de saúde, de educação básica, de etnodesenvolvimento, de preservação do patrimônio material e imaterial, entre outros. Os resultados marcantes incluem os avanços realizados na demarcação de terras, o reconhecimento étnico de grupos que antes não eram reconhecidos como índios e a implantação de projetos sanitários, educacionais e culturais. Este cenário é otimista, mas é preciso lembrar que há muitos problemas, desafios e perigos que rondam as populações ameríndias no Brasil. Alguns não são exclusivamente delas, como a pobreza, o desemprego, a ausência de serviços públicos. Mas outros são: a agência indigenista oficial (FUNAI) cumpre mal as suas funções; os conflitos sangrentos com latifundiários, posseiros e garimpeiros permanecem de solução difícil; e os problemas internos das comunidades – por exemplo, a mortalidade infantil e os suicídios entre os Kaiowá de Mato Grosso do Sul – demandam novas abordagens e soluções. A crescente visibilidade dos índios na mídia, nas cidades e nos livros didáticos nos obriga a repensar o lugar dos índios na história do país. Não se pode pensar os índios apenas como vítimas inermes de uma história inscrita e escrita por outros, assim como os índios hoje mostram que não são meros remanescentes mas agentes contínuos de seu destino. Como atores históricos, no passado e no presente, os índios tiveram uma presença e participação na construção do Brasil que vêm ganhando uma visibilidade também nos estudos históricos. Por muito tempo os historiadores acharam que a temática indígena era exclusivamente do domínio da antropologia e, ademais, subscreveram à idéia de que os índios foram rapidamente dizimados e que os poucos que sobreviveram viviam fora das fronteiras da civilização brasileira. Começamos a emendar esta omissão mas ainda há muita pesquisa e reflexão a serem feitas.

IHU On-Line- Quais são as formas contemporâneas de escravidão? Com qual conceito de escravidão a ONU trabalha?

John Monteiro-
  Este tema é muito rico para discussão, porém é marcado por certos equívocos e mal-entendidos. Se é verdade que existem hoje várias formas de trabalho forçado que são manifestamente ilegais e que infringem convenções internacionais de trabalho e de direitos humanos, chamá-las de escravidão é problemático, ainda que o efeito dramático seja eficaz. O problema, ao meu ver, é que a escravidão não se resume apenas no cerceamento da liberdade do trabalhador mas antes se assenta num amplo suporte jurídico que garante e justifica a sua manutenção e reprodução. Este sistema resguarda os direitos do senhor sobre a sua propriedade e confere uma legitimidade ao tráfico e exploração de pessoas que são privadas de seu direito de ir e vir. No caso da escravidão moderna, esta legitimidade passou a ser contestada a partir do final do século XVIII (apesar de existirem vozes dissonantes antes disso), ensejando o crescimento de um movimento político e social abolicionista, uma das grandes causas no Ocidente durante o século XIX, resultando inicialmente na abolição do tráfico há exatos 200 anos, e finalmente na abolição da escravidão no Brasil em 1888. A Organização Internacional do Trabalho, agência multilateral da ONU, redigiu diferentes convenções para o combate ao “trabalho forçado”, que abrange diversas formas abusivas de exploração, desde a prática de cárcere privado por dívidas até a exploração forçada de crianças como mão-de-obra militar. Em anos recentes – não consigo localizar uma data – passou a usar com mais freqüência o termo “escravidão” para descrever estas práticas, até porque muitas vezes incluem o tráfico internacional, mais claramente delineado no caso da “escravidão sexual”, porém que também se aplica a circuitos de trabalho migratório, em diversas partes do mundo contemporâneo.

IHU On-Line- Como preservar o patrimônio cultural dos brasileiros indígenas, no mundo globalizado, como agir no sentido de impedir que esse patrimônio se transforme em produto de consumo da indústria cultural?

John Monteiro-
  Ainda é bastante incipiente o debate em torno da propriedade intelectual e da preservação da cultura imaterial referente aos povos indígenas no Brasil, porém há novas pesquisas e iniciativas nesta área. A produção cultural constitui um processo dinâmico e contínuo, portanto há o perigo de “congelar” este dinamismo através de uma proteção que visa sempre projetar os índios numa chave de pureza e inocência antes do contato. Muitos grupos indígenas fazem parte de um contexto transatlântico de circulação de idéias, de bens materiais e de pessoas que se estabeleceu ainda no século XVI. Dou um exemplo: não demorou muito para os grupos tupis começarem a utilizar penas de galinha em seus adornos plumários, muitos dos quais foram produzidos como objetos de troca e que acabaram nas coleções dos gabinetes de curiosidades na Europa. Quanto à idéia de impedir que o patrimônio seja transformado em produto de consumo, é bom lembrar que vários grupos indígenas possuem projetos de comercialização de músicas, artesanato e de serviços de etnoturismo. Não vejo muitos problemas na disseminação de saberes tradicionais, de estilos gráficos e de artefatos “étnicos” desde que sejam respeitados os direitos de propriedade intelectual, que em muitos casos não são de um produtor cultural individual, mas de um povo ou de uma comunidade ou de uma facção dentro de uma comunidade. Por exemplo, quando uma grife internacional coloca em suas roupas um motivo gráfico da pintura corporal de um grupo indígena, isso só pode ser feito mediante a anuência do grupo e com a participação nos lucros comerciais realizados. Cabe ao Estado e às organizações internacionais regulamentarem e garantirem os direitos dos povos envolvidos, entendendo que estes direitos são de natureza especial, pois se trata de um tipo específico de propriedade, sujeito a várias formas de abuso e pirataria. 

IHU On-Line- Quais as principais lacunas no estudo da história da escravidão no Brasil?

John Monteiro-
  A escravidão é um dos temas mais exaustivamente estudados no Brasil e contribuiu, de maneira muito especial, aos avanços marcantes que a historiografia brasileira viveu nos últimos 25 anos. A despeito da minha contribuição pessoal ao campo, ainda acho que a escravidão e outras formas de trabalho indígena precisam ser estudadas com mais afinco, sobretudo à luz de uma vasta documentação que está cada vez mais disponível. Outro aspecto que gostaria de ver mais estudado diz respeito à presença de escravos como mão-de-obra militar na América Portuguesa e no Brasil independente, não apenas na Guerra do Paraguai, mas em vários outros conflitos civis e internacionais que marcaram a história do país. Talvez a maior lacuna reside nas relações entre africanos, afrodescendentes e indígenas na história do Brasil. Há alguns estudos novos que exploram esta questão de maneira muito interessante, porém temos que superar algumas idéias consolidadas desde há muito, que levaram ao desenvolvimento segregado dos estudos afro-brasileiros e indígenas.

IHU On-Line- No México e em países andinos, a identidade nacional e a indígena são fortemente imbricadas. No Brasil, essa ligação é mais frouxa. Por quê?

John Monteiro-
  A resposta óbvia é que, nesses países, o contingente indígena na população como um todo é muito mais evidente, além de reivindicarem origens remotas nos estados e impérios das civilizações precolombianas. Mas a questão não é tão simples assim. É importante situar a maneira em que cada nação independente configurou a sua auto-imagem. Antes da Revolução Mexicana de 1910, a imbricação entre as identidades nacional e indígena era muito problemática, oscilando entre evocações de um nacionalismo precolombiano e discursos racializados sobre o atraso que os índios representavam. Do mesmo modo, na Bolívia se percebe um movimento descontínuo nesta imbricação. Depois da Revolução de 1952, por exemplo, a identidade camponesa, fruto do forte movimento sindical, suplantou a identidade indígena. Esta, no entanto, voltou com muito vigor nos anos 80 e hoje o presidente Morales busca mobilizar esta imagem, apesar de existir uma certa tensão entre as políticas do governo e os anseios do movimento indígena. Quanto ao Brasil, esta relação nem sempre foi tão frouxa. Mesmo antes da independência, os inconfidentes mineiros usaram como símbolo a imagem de um índio rompendo as correntes da opressão. No século XIX, a literatura e arte indianista buscaram valorizar as origens indígenas da nação brasileira. Também se flertava com o bilingüismo português/tupi-
guarani, estratégia que por sinal foi adotada com êxito no país vizinho, Paraguai. Acabou triunfando, no século XX, uma identidade mestiça mas essa é uma outra história, muito complicada para desenvolver aqui.

IHU On-Line- Como foi possível reintegrar as sociedades indígenas à historiografia do país? Quais são as contribuições dos estudos de história indígena para a compreensão da sociedade brasileira?

John Monteiro-
  A temática indígena sempre esteve presente, de uma maneira ou outra, na historiografia do país. Prevaleceu, por muito tempo, uma narrativa da extinção, na qual os índios nunca ocuparam mais do que a ante-sala da história nacional. Voltando à primeira pergunta, o crescimento do movimento indígena e o conseqüente aumento da visibilidade dos índios criou uma nova demanda, inicialmente atendida pelos antropólogos. Mas os antropólogos se interessam muito mais pela história indígena, isto é, as perspectivas indígenas sobre o seu próprio passado, com poucos pontos de diálogo com as questões historiográficas mais abrangentes. A aproximação do tema pelos historiadores traz contribuições importantes para a história da cultura, história da religião, história política e história econômica. Vários historiadores notaram que a inclusão dos índios não visa simplesmente corrigir uma omissão, mas também permite repensar aspectos fundamentais da historiografia em vários períodos e regiões do país. Por exemplo, num artigo que publiquei sobre a presença e participação dos índios na história da cidade de São Paulo chamei a atenção para a idéia de que a experiência histórica dos índios permite entender algumas características constantes na história da cidade: o papel de atores sociais que pouco aparecem nas versões convencionais, a importância e o desafio da diversidade étnica e cultural e, por fim, o padrão de violência e exclusão que marca, até hoje, o cotidiano da metrópole. E do país.

 

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