Edição 534 | 15 Abril 2019

Um pouco além das fronteiras

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

João Martins Ladeira

As Boas Maneiras segue um caminho difícil e termina por produzir um filme B tropical, como um Tourneur passeando pelos trópicos

Ninguém duvidou que As Boas Maneiras (2017, de Marco Dutra e Juliana Rojas) fosse um “filme de gênero”. Nele, percebe-se uma conexão muito clara com o horror. Mas não apenas. Há uma curiosa mistura entre traços deste estilo – em especial nas citações a alguns trabalhos dos anos 1970 – com algo que os ultrapassa. Pois existe também uma reflexão sobre contradições sociais das mais diversas, tema caro ao cinema brasileiro.

Cena do filme - Reprodução | You Tube

Neste exercício com o horror, os elos se mostram mais conscientes e menos literais. Dutra e Rojas recuperam não apenas tramas, enredos ou personagens, mas problemas fundamentais de certa vertente deste estilo, apropriando-os numa mescla bem própria. Como usualmente ocorre neste gênero, As Boas Maneiras versa sobre famílias, na reflexão sobre a ruptura com a normalidade que tal gênero introduziu.

O monstro na sala de estar

Em sua inteligente leitura sobre tal conjunto de obras, Robin Wood propôs, em Hollywood from Vietnam to Reagan, que a alegoria central a motivá-las reside na figura do monstro. O horror se debruça sobre uma ideia de normalidade perturbada por esta criatura, indício de uma repressão indizível que, nestes filmes, a narrativa consegue elaborar graças a seu tom despropositado. Em alguns trabalhos caros aos anos 70, esta ruptura atinge o lar.

Como se espera, As Boas Maneiras gira em torno desta criatura. Logo após as apresentações usuais, a gravidez ocupa papel de destaque. Assim que entendemos quem são Clara (Isabél Zuaa) e Ana (Marjorie Estiano) e compreendemos a tensão sexual entre ambas, o foco passa para o bebê que vai nascer. Mas, sua chegada nos apresenta não uma besta a ser destruída, mas uma criança impossível de ignorar.

Desde Psicose (Psycho, 1960, de Alfred Hitchcock), abriu-se uma brecha no horror, permitindo-lhe se ater não só a criaturas alienígenas ou demoníacas, mas a um monstro doméstico. Seguiram nesta trilha muitos outros filmes, que confortavelmente nos acostumamos a chamar de “B” para não nos arriscarmos muito numa reflexão sobre eles.

O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974, de Tobe Hooper) se refere a um clã canibal que aprendeu seu ofício no matadouro cuja desativação conduziu a cidade à decadência. Em Halloween: A Noite do Terror (Halloween, 1978, de John Carpenter), Mike era apenas uma criança num lar de classe média antes de seu primeiro assassinato, este que dá início à sua interminável rebelião contra a vida no subúrbio.

Mas é Nasce um Monstro (It's Alive, 1974, de Larry Cohen) que merece maior atenção, na sua fantasia sobre um ser oriundo de uma tragédia ecológica, e não sobrenatural. Quando o parto destrói a mãe e revela a coisa cujo problema será decidir se cabe ou não no lar, a comparação entre ambos os filmes parece indispensável. Mas o toque de As Boas Maneiras está em se optar por cuidar da criatura, ao invés de destruí-la.

Eis que surge uma referência a Jacques Tourneur, de quem Dutra e Rojas se declararam admiradores. Como em A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943), as barreiras em relação à criatura serão abolidas. Relacionamentos inviáveis na chave do convencional se tornam possíveis. Pois Tourneur se debruça exatamente sobre esta fronteira borrada entre morto/vivo, médico/mágico, selvagem/civilizado, sagrado/profano, branco/negro.

De volta ao Brasil

Se este filme de 2017 compartilha tal desejo por expandir tal limite, convive também com uma análise sobre temas caros a nosso cinema. Debruça-se sobre a vida doméstica, a sexualidade, as desigualdades, o racismo, recuperando uma leva bem distinta de obras. Mantendo todas as distâncias, poderíamos estar assistindo às análises de um São Paulo, Sociedade Anônima (1965, de Luís Sérgio Person) ou O Desafio (1965, de Paulo César Saraceni).

Interessante: tais filmes do passado se debruçavam sobre uma classe média atada a uma vida com horizontes bem limitados, vivendo numa sociedade que nada tinha de afluente. Narrados num estilo realista, permitiam-nos acompanhar os atos de personagens sempre fadados ao fracasso, em sua tentativa de lidar com a precariedade. As Boas Maneiras tem outro toque, concedido pelo fantástico, terminando de modo bem mais afirmativo.

Reprodução do cartaz do filme

Na segunda parte, vemos Clara, já sozinha com Joel (Miguel Lobo), construir outra família com bastante sucesso, até o dia em que a relação entre ambos se depara com o mundo externo. A atração exercida pela cidade revela a verdadeira condição do menino, culminando na vingança do povo. Contudo, parece emblemático que o desfecho seja tão positivo, na determinação de mãe e filho em se manter unidos.

Nada impediria que a fantasia pequeno-burguesa sobrenatural terminasse com o fracasso dos personagens, colocando As Boas Maneiras bem perto de outras reflexões sobre nossa crise constante. Mas Dutra e Rojas encerram o trabalho com outro ar. De pé, prontos a reagir, Clara e Joel parecem o oposto de alguém engolido pela engrenagem. Difícil decidir se a conclusão consiste numa estranha expectativa de esperança ou noutro tipo de alienação. ■

Ficha técnica

[cartaz-as_boas_maneiras.jpg]

Título original: As Boas Maneiras
Ano: 2018
Direção: Juliana Rojas, Marco Dutra
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Eduardo Gomes
Gêneros: Fantasia, Drama
Nacionalidade: Brasil, França

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição