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João Martins Ladeira
As Boas Maneiras segue um caminho difícil e termina por produzir um filme B tropical, como um Tourneur passeando pelos trópicos
Ninguém duvidou que As Boas Maneiras (2017, de Marco Dutra e Juliana Rojas) fosse um “filme de gênero”. Nele, percebe-se uma conexão muito clara com o horror. Mas não apenas. Há uma curiosa mistura entre traços deste estilo – em especial nas citações a alguns trabalhos dos anos 1970 – com algo que os ultrapassa. Pois existe também uma reflexão sobre contradições sociais das mais diversas, tema caro ao cinema brasileiro.
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Cena do filme - Reprodução | You Tube
Neste exercício com o horror, os elos se mostram mais conscientes e menos literais. Dutra e Rojas recuperam não apenas tramas, enredos ou personagens, mas problemas fundamentais de certa vertente deste estilo, apropriando-os numa mescla bem própria. Como usualmente ocorre neste gênero, As Boas Maneiras versa sobre famílias, na reflexão sobre a ruptura com a normalidade que tal gênero introduziu.
O monstro na sala de estar
Em sua inteligente leitura sobre tal conjunto de obras, Robin Wood propôs, em Hollywood from Vietnam to Reagan, que a alegoria central a motivá-las reside na figura do monstro. O horror se debruça sobre uma ideia de normalidade perturbada por esta criatura, indício de uma repressão indizível que, nestes filmes, a narrativa consegue elaborar graças a seu tom despropositado. Em alguns trabalhos caros aos anos 70, esta ruptura atinge o lar.
Como se espera, As Boas Maneiras gira em torno desta criatura. Logo após as apresentações usuais, a gravidez ocupa papel de destaque. Assim que entendemos quem são Clara (Isabél Zuaa) e Ana (Marjorie Estiano) e compreendemos a tensão sexual entre ambas, o foco passa para o bebê que vai nascer. Mas, sua chegada nos apresenta não uma besta a ser destruída, mas uma criança impossível de ignorar.
Desde Psicose (Psycho, 1960, de Alfred Hitchcock), abriu-se uma brecha no horror, permitindo-lhe se ater não só a criaturas alienígenas ou demoníacas, mas a um monstro doméstico. Seguiram nesta trilha muitos outros filmes, que confortavelmente nos acostumamos a chamar de “B” para não nos arriscarmos muito numa reflexão sobre eles.
O Massacre da Serra Elétrica (The Texas Chain Saw Massacre, 1974, de Tobe Hooper) se refere a um clã canibal que aprendeu seu ofício no matadouro cuja desativação conduziu a cidade à decadência. Em Halloween: A Noite do Terror (Halloween, 1978, de John Carpenter), Mike era apenas uma criança num lar de classe média antes de seu primeiro assassinato, este que dá início à sua interminável rebelião contra a vida no subúrbio.
Mas é Nasce um Monstro (It's Alive, 1974, de Larry Cohen) que merece maior atenção, na sua fantasia sobre um ser oriundo de uma tragédia ecológica, e não sobrenatural. Quando o parto destrói a mãe e revela a coisa cujo problema será decidir se cabe ou não no lar, a comparação entre ambos os filmes parece indispensável. Mas o toque de As Boas Maneiras está em se optar por cuidar da criatura, ao invés de destruí-la.
Eis que surge uma referência a Jacques Tourneur, de quem Dutra e Rojas se declararam admiradores. Como em A Morta-Viva (I Walked with a Zombie, 1943), as barreiras em relação à criatura serão abolidas. Relacionamentos inviáveis na chave do convencional se tornam possíveis. Pois Tourneur se debruça exatamente sobre esta fronteira borrada entre morto/vivo, médico/mágico, selvagem/civilizado, sagrado/profano, branco/negro.
De volta ao Brasil
Se este filme de 2017 compartilha tal desejo por expandir tal limite, convive também com uma análise sobre temas caros a nosso cinema. Debruça-se sobre a vida doméstica, a sexualidade, as desigualdades, o racismo, recuperando uma leva bem distinta de obras. Mantendo todas as distâncias, poderíamos estar assistindo às análises de um São Paulo, Sociedade Anônima (1965, de Luís Sérgio Person) ou O Desafio (1965, de Paulo César Saraceni).
Interessante: tais filmes do passado se debruçavam sobre uma classe média atada a uma vida com horizontes bem limitados, vivendo numa sociedade que nada tinha de afluente. Narrados num estilo realista, permitiam-nos acompanhar os atos de personagens sempre fadados ao fracasso, em sua tentativa de lidar com a precariedade. As Boas Maneiras tem outro toque, concedido pelo fantástico, terminando de modo bem mais afirmativo.
![](/images/revistaihu/edicao_534/cartaz-as_boas_maneiras.jpg)
Reprodução do cartaz do filme
Na segunda parte, vemos Clara, já sozinha com Joel (Miguel Lobo), construir outra família com bastante sucesso, até o dia em que a relação entre ambos se depara com o mundo externo. A atração exercida pela cidade revela a verdadeira condição do menino, culminando na vingança do povo. Contudo, parece emblemático que o desfecho seja tão positivo, na determinação de mãe e filho em se manter unidos.
Nada impediria que a fantasia pequeno-burguesa sobrenatural terminasse com o fracasso dos personagens, colocando As Boas Maneiras bem perto de outras reflexões sobre nossa crise constante. Mas Dutra e Rojas encerram o trabalho com outro ar. De pé, prontos a reagir, Clara e Joel parecem o oposto de alguém engolido pela engrenagem. Difícil decidir se a conclusão consiste numa estranha expectativa de esperança ou noutro tipo de alienação. ■
Ficha técnica
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Título original: As Boas Maneiras
Ano: 2018
Direção: Juliana Rojas, Marco Dutra
Elenco: Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Eduardo Gomes
Gêneros: Fantasia, Drama
Nacionalidade: Brasil, França