Edição 533 | 01 Abril 2019

O abismo da moradia

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Ricardo Machado

Em Autotomia, poema de Wislawa Szymborska, a poetisa encerra o texto com o seguinte epíteto: “O abismo não nos divide. O abismo nos cerca”. A eloquente frase serve como uma luva para descrever o problema da desigualdade no Brasil, que tem na questão da moradia uma importante materialidade de nosso abismo social.

São Leopoldo, cidade de colonização alemã, na região metropolitana de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, está longe de ser uma metrópole nos termos que conhecemos. Em 2010, segundo o Censo, a cidade tinha uma população de 213 mil habitantes, estimada em 234 mil em 2018. Do total, o déficit habitacional, segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação, alcança a cifra de 10 mil famílias, algo como 30 mil pessoas. Separados na maior parte das vezes por poucos quilômetros de distância, residências de milhares de Reais, abastecidas por toda a sorte de serviços públicos e privados, convivem com casas de um único cômodo e sem acesso a itens absolutamente básicos, como acesso à água potável e saneamento, tampouco energia elétrica.

Na tentativa de construir conexões entre esses mundos, um grupo de aproximadamente 20 pessoas, entre estudantes, professores e outros profissionais da Unisinos, visitaram no dia 15 de março quatro ocupações no município onde está instalado o campus central da Universidade. Após a visitação, uma série de outras atividades foram realizadas, tais como audiências públicas, encontros com autoridades, audiência com o reitor da Unisinos, o Pe. Marcelo Fernandes Aquino, e reuniões com membros do Judiciário. O resultado de todo esse processo será publicado detalhadamente no Relatório da Missão em defesa da moradia digna nas ocupações de São Leopoldo/RS.

Ocupação Vitória - Foto: Gabriel Ost/AgexCom

Cruzar o Rio dos Sinos é como atravessar um oceano que divide realidades muito distintas. De um lado, residências que somam a casa dos milhões e, de outro lado, na Ocupação Steigleder, mais de 200 famílias sobrevivem em casas, na maior parte das vezes, com apenas quatro paredes, edificadas com materiais usados ou recicláveis, que também é uma das principais fontes de renda dessas famílias. Sem acesso à água ou saneamento, os moradores caminham quilômetros para encherem baldes e tonéis de água na de ida e volta à bica, que fica em frente a uma igreja, no bairro vizinho. Nos tempos de seca, o cenário lembra, também pela precariedade de serviços disponíveis, a parte esquecida do sertão brasileiro, com vegetação baixa e terra vermelha e seca. No período chuvoso, ou mesmo nos temporais de verão, a região alaga, transforma-se em um banhado com água pela cintura, que fica represada entre a cidade asfaltada, que margeia a ocupação, e o dique do Rio dos Sinos, vizinho próximo dos moradores da Steigleder. O que a distância geográfica aproxima, o abismo social separa unindo, nesse oxímoro que explica e expõe nosso paradoxo habitacional, onde a pobreza é escondida dos olhos escandalizados da classe média alta ao mesmo tempo que cresce exponencialmente debaixo de suas barbas.

Não muito distante dali, a Ocupação Vitória, que tem no nome a esperança pelo acesso à moradia digna, 245 famílias vivem em um espaço relativamente pequeno, divididas em três ruas, mas em uma situação bastante diferente da ocupação anterior. O local é uma ilha de moradores que vivem cercados por serviços públicos básicos, tais como educação, saúde e infraestrutura mínima. Isso reduz a precariedade das famílias, à medida que construíram autonomamente formas de distribuição de água e compartilhamento de energia elétrica. Organizados em uma associação de moradores, as pessoas da Ocupação Vitória têm se movimentado de forma mais orgânica para exigir seus direitos junto às autoridades, tendo, inclusive, se cotizado para pagar o IPTU da área, na expectativa de usarem o documento em favor próprio na busca por seus direitos fundamentais. O gesto ilustra e responde criticamente à ideia de senso comum de que as ocupações buscam esbulho, quando, ao contrário, estão simplesmente à procura de uma vida digna.

Ocupação Anita - Foto: Ricardo Machado/IHU

Do outro lado da cidade, a Ocupação Cerâmica Anita vive uma situação diferente. Numericamente menor, a comunidade tem 68 famílias que, depois de muita briga com o poder público, fez valer as políticas públicas de direito à habitação e aguarda ações concretas da prefeitura. O resultado da conquista dos terrenos, que ainda precisam ser loteados e organizados urbanisticamente – com água, saneamento e energia elétrica –, vem de uma longa luta e da organização dos moradores. O fato de o território ocupado ser de propriedade da prefeitura também facilitou o processo de regularização da área, o que não deixa de ilustrar a força da propriedade privada particular em nossas sociedades. É a legitimação, por vias tortas, dos interesses de poucos que se sobrepõem aos interesses de muitos, que no final das contas, desejam tão somente viver em uma casa, sem serem completamente excluídos.

Para chegar à Ocupação Justo, saindo da região da Cerâmica Anita, um dos caminhos possíveis exige cruzar o bairro Morro do Espelho, em São Leopoldo, bairro vizinho ao centro da cidade. A região tem um dos metros quadrados mais caros do município. A alguns quilômetros de distância 2.500 famílias brigam pelo direito à moradia digna. O movimento começou ainda no final dos anos 1990, com a retirada de famílias da região onde passaria a linha do trem, quando foi estendida até a Estação Unisinos. Mais tarde, nos anos 2010, a linha seria, por fim, aumentada até Novo Hamburgo, cidade vizinha, ao Norte de São Leopoldo. Ameaçados pela possibilidade de despejo, os moradores da Ocupação Justo e o município se veem diante do risco do agravamento de um problema que não pode ser resolvido evocando o direito à propriedade privada e desapropriando a área. Afinal, a questão a ser respondida, e que despertou a realização da Missão de visitação às ocupações, é a seguinte: O que fazer com essas mais de 2.500 famílias? Para onde irão as quase 10 mil pessoas que vivem no local?

Ocupação Steigleder - Foto: Ricardo machado/IHU

A questão da moradia no Brasil é, historicamente, nosso samba ou, melhor dizendo, nosso choro de uma nota só, onde a população empobrecida é cada vez mais afastada da cidade e de tudo o que significa o termo “cidade” – serviços públicos, infraestrutura e, até mesmo, imaginário. As questões em torno do direito à habitação, no caso brasileiro, não passam por uma insuficiência de imóveis, como aponta o estudo realizado, em 2015, pela Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte, em que mostra que há 7,9 milhões de imóveis vagos para um déficit habitacional que na época era de 6,3 milhões de famílias. O problema da moradia digna no Brasil é político, mas não exclusivo do poder público, senão de uma sociedade empenhada em cavar fundo o buraco que nos divide. Melhor seria, talvez, se pudéssemos, na distância que nos separa, simplesmente construir pontes, mas como nos lembra com aturdida clarividência a poetisa polonesa que mencionamos no começo deste texto: “O abismo não nos divide. O abismo nos cerca.”■

Ocupação Justo - Gabriel Ost/AgexCom

Ocupação Steigleder

Urbanização: nenhuma
Água: os moradores buscam água em uma igreja no bairro vizinho
Saneamento básico: nenhum
Iluminação: inexistente
Famílias: 211
Trabalho: maior parte catadores de material reciclável
Renda Média: R$ 300


Ocupação Vitória

Urbanização: nenhuma
Água: rede irregular, com distribuição feita por mangueiras que se ligam entre as casas
Saneamento básico: nenhum
Iluminação: inexistente
Famílias: 245
Trabalho: variados, maior parte dos moradores trabalham fora de casa
Renda Média: R$ 900

Ocupação Cerâmica Anita

Urbanização: nenhuma
Água: rede irregular, com distribuição feita por mangueiras que ligam todas as casas
Saneamento básico: nenhum
Iluminação: inexistente
Famílias: 68
Trabalho: variados, parte dos moradores trabalham fora de casa e parte são catadores de material reciclável
Renda Média: R$ 900


Ocupação Justo

Urbanização: nenhuma
Água: rede irregular e regiões sem abastecimento nenhum
Saneamento básico: nenhum
Iluminação: inexistente
Famílias: 2.500
Trabalho: maior parte dos moradores trabalham fora de casa e parte são catadores de material reciclável
Renda Média: variado

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