Edição 532 | 18 Março 2019

Preservação do planeta deve ir além de uma dieta sem carne

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João Vitor Santos

Para o jornalista Alceu Castilho, não basta mudar hábitos de consumo, é preciso entender a cadeia produtiva e as imposições da produção e da circulação

Consumir menos carne, ou sequer comer proteína de origem animal, contribui em muito com a preservação do planeta. Entretanto, o jornalista Alceu Castilho, que faz o monitoramento de pautas relacionadas ao agronegócio, lembra que essa não deve ser encarada apenas como responsabilidade das etapas de consumo. Isto é, para ele, não se deve cair na ilusão de que apenas mudando hábitos alimentares se resolverá a maioria dos problemas ambientais. “Atacar somente esse ponto – e a partir da ponta do consumo – não será suficiente para a alteração do sistema. A destruição de biomas, por definição, dizima espécies inteiras. E esse processo ocorrerá mesmo que deixemos de comer carne”, defende, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Castilho se justifica: “não significa influência zero de quem optou por esse modo de vida, mas significa que mesmo do ponto de vista da preservação dos animais – não somente os indivíduos, de espécies inteiras – precisamos ir além da discussão sobre o consumo”. Ou seja, é, no mínimo, preciso que se busquem mais informações para conhecer os meandros do que envolve a produção de alimentos e sua relação com a degradação/proteção do planeta. “As monoculturas precisam ser combatidas por quem se propõe a preservar o planeta e sua biodiversidade”, observa.

Segundo o jornalista, a produção de comida é regida pela lógica do capital, arraigado no latifúndio, que não só exclui como também limita o número de cultura para a produção de alimento. “Para avançarmos no entendimento da questão agrária – com os conflitos sociais e ambientais inerentes a esse sistema – precisamos entender esse movimento expansionista, em um planeta com recursos esgotáveis, esse avanço em territórios ocupados por camponeses, indígenas, quilombolas. E por florestas, biomas inteiros à mercê desse processo de concentração de renda”, acrescenta.

Alceu Luís Castilho é jornalista, pós-graduando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo - USP. É coordenador do De Olho nos Ruralistas, um observatório sobre agronegócio no Brasil. Também é autor do livro Partido da Terra - como os políticos conquistam o território brasileiro (São Paulo: Contexto, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os desafios para compreender as lógicas do agronegócio? De que forma é possível conceber alternativas a essas lógicas e como os consumidores, em geral, podem contribuir nesse sentido?
Alceu Castilho – Há uma lógica econômica, do capital e da renda da terra. Para avançarmos no entendimento da questão agrária – com os conflitos sociais e ambientais inerentes a esse sistema – precisamos entender esse movimento expansionista, em um planeta com recursos esgotáveis, esse avanço em territórios ocupados por camponeses, indígenas, quilombolas. E por florestas, biomas inteiros à mercê desse processo de concentração de renda.

A alternativa é a valorização das terras dos povos tradicionais, seja pela manutenção, seja pela redistribuição. Repensar o modelo. E a prioridade do Estado em relação aos incentivos. Nesse sentido, faz-se necessário agendar a problemática como um todo. A ponta do consumo é importante, mas não suficiente para se alterar um sistema. Há um controle da produção, uma imposição estrutural.

IHU On-Line – O que está por trás dos conflitos agrários, especialmente no caso brasileiro?
Alceu Castilho – Exatamente essa lógica econômica. Os latifúndios e a monocultura – observem que são temas presentes há séculos – avançam onde já há gente morando, produzindo, de indígenas a descendentes de escravos, de ribeirinhos a extrativistas. O capital e o aparato legislativo a seu serviço não valorizam o uso comum da terra. Não há como fugir do fato de que poucos empresários e rentistas querem controlar o território. Pelo lucro e pela renda. São hegemônicos, mas não únicos – pois há resistência.

O Brasil tem suas especificidades, claro, como a longa história de escravidão, o sistema cartorial, o patrimonialismo exacerbado. O que nos leva a uma história violenta de grilagem e expulsão dos povos do campo: um êxodo rural movido a bala. Mas há uma lógica global, com mais ou menos violência.

IHU On-Line – De que forma ideias de cunho mais liberalista e de redução do tamanho do Estado, muito presentes no atual governo, podem impactar os conflitos agrários no Brasil?
Alceu Castilho – Há que se observar que a maior parte dos discursos liberais tem forte grau de cinismo. O agronegócio é fartamente dependente dos estímulos governamentais, de financiamentos, perdão de dívidas. O que há, historicamente, é uma captura do Estado, inclusive do sistema judiciário.

O processo de disputa é eminentemente político. O governo atual oscila entre o discurso liberal de Paulo Guedes – para os assuntos onde isso interessa – e a velha política de transferência dos recursos (inclusive os naturais) para as oligarquias. Os conflitos já estão crescendo, desde o governo Temer, porque os grandes proprietários ganham ainda mais aval para as violências cotidianas. Predadores multiplicam predadores.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre conflitos agrários, degradação do meio ambiente e aquecimento global?
Alceu Castilho – O desmatamento é uma das consequências desse crescimento ordenado do capital no campo e da concentração fundiária. Basta observar a lista de desmatadores para se observar que os atores são grandes empresários e grandes latifundiários. Há uma ilusão de que essa ilegalidade estaria à margem do sistema. Não está, ela é intrínseca a ele.

Aquecimentos global e local – tantas vezes esquecido – estão diretamente relacionados a esse movimento destruidor. Recursos hídricos, biomas, riquezas muito mais perenes são rifadas para que milionários e bilionários continuem se perpetuando no poder. A novidade em governos como o de Bolsonaro é assumir que querem eliminar as terras dos povos originários e tradicionais. No fundo, é o capital que não quer "nem um centímetro a mais" para eles.

IHU On-Line – Como o consumo indiscriminado de carne, proteína animal em geral, pode impactar tanto os conflitos agrários como o aquecimento global?
Alceu Castilho – Não vejo esse como o ponto de partida. É claro que a pecuária extensiva é particularmente danosa ao ambiente. Mas atacar somente esse ponto – e a partir da ponta do consumo – não será suficiente para a alteração do sistema. A destruição de biomas, por definição, dizima espécies inteiras. E esse processo ocorrerá mesmo que deixemos de comer carne.

Isso não significa influência zero de quem optou por esse modo de vida, mas significa que mesmo do ponto de vista da preservação dos animais – não somente os indivíduos, de espécies inteiras – precisamos ir além da discussão sobre o consumo. Parafraseando a letra do Titãs, costumamos dizer no De Olho nos Ruralistas que monocultura é monocultura em qualquer canto – riquezas são diferentes. As monoculturas precisam ser combatidas por quem se propõe a preservar o planeta e sua biodiversidade.

IHU On-Line – O veganismo, mais do que abrir mão do consumo de carne, traz consigo um modo de vida. Podemos falar numa ética própria? Por quê?
Alceu Castilho – Não sou especialista em veganismo e não posso falar desse modo de vida. O que posso dizer é que há diversas imposições do modelo econômico que estouram na ponta do consumidor. Este se torna refém de muita coisa pouco republicana que ocorre na cadeia produtiva, muitas vezes sem o saber. Há mais de 1.200 produtos baseados na soja. A participação da pecuária em relação a essa e outras monoculturas é expressiva. Mas não se esgota nela.

Viver sob um determinado modo de produção significa que não temos poderes plenos como consumidores, por maior que seja nossa boa vontade. A diminuição do consumo de carne – ou, para os veganos, a eliminação – é muito bem-vinda, mas não se esgotam aí os problemas relacionados ao ambiente e à agressão contra povos tradicionais. É preciso entender melhor o território e como ocorre essa captura dos recursos naturais. Como um todo, a economia. Contraponto? Direito à terra.

IHU On-Line – De que forma essa “ética vegana” se confronta com a ética e as lógicas do agronegócio?
Alceu Castilho – Não necessariamente se confronta. Há veganos com farta noção de tudo o que falei acima, coerentes com determinada percepção sobre o planeta e seus habitantes, e outros que não veem problema nenhum no consumo, por exemplo, de alimentos processados. Mesmo assumindo um protagonismo amplo da ponta do consumo (insisto, não é a minha linha de análise) teríamos aí uma contradição, já que a indústria ligada ao agronegócio participa ativamente desse processo que, como disse, está ligado diretamente ao capital e prevê, intrinsecamente, destruição.

Que os veganos não interpretem tudo o que estou dizendo como uma definição de que estão errados. Não estão. Mas é preciso entender de forma ampla a cadeia produtiva e as imposições nos eixos da produção e da circulação. Um modo de produção não será revertido apenas pela ponta do consumo, essa disposição precisa ser casada com outras iniciativas.

IHU On-Line – Por que pautas de cunho mais ambiental, que defendem o uso comum e de forma consciente de recursos naturais, são tomadas como pautas de esquerda? Quais os desafios para superar essa lógica?
Alceu Castilho – Porque no fundo não é possível conciliar a preservação do ambiente com as pautas de direita, com a proclamação da propriedade privada – e de sua expansão, concentração – como bem maior a ser preservado. No fundo, a extrema direita sabe disso, por isso odeia os ambientalistas. No caso dos liberais e do discurso empresarial há muito greenwashing , e uma tentativa de convencimento de que tudo dá para todo mundo. Não dá, não temos oito planetas à disposição – e se tivéssemos eles seriam igualmente destruídos. Não há limites para a expansão do capital. A ética é a da falta de ética, por mais que alguns se esforcem em tentar dourar a pílula. Um dos desafios é reconhecermos que vivemos sob um modo de produção suicida, ou planetocida. É preciso pautar o direito à vida e o direito à terra.

IHU On-Line – Como compreender a constituição e o poder da bancada ruralista no cenário político nacional brasileiro?
Alceu Castilho – Ela não representa apenas aquele Brasil atrasado, que seria superado por uma agricultura e uma pecuária mais modernas. Ela representa todo esse sistema do qual estou falando. Muito do que é apresentado como moderno faz parte desse mesmo esquema de pilhagem dos recursos naturais. E de captura incontinente do território. É ruralista o grande latifundiário, mas também aquele político financiado por empresas – hoje em dia, empresários – do agronegócio, ou aquele político que pactua com todos esses setores por determinadas conveniências. No fundo, por pactuar com o sistema e com sua lógica excludente, a partir da qual bilhões de pessoas são exploradas nas relações de trabalho e privadas de uma terra para chamar de sua – o que caracterizaria o modo de vida camponês.

Não avançaremos enquanto não se entender o que é campesinato, essa classe que atravessa modos de produção e continua na resistência. Mas não chega ao Congresso porque o sistema (eleitoral, político) não permite.

IHU On-Line – Qual a questão de fundo por trás do discurso de críticas do governo de Jair Bolsonaro a pautas ambientais, como, por exemplo, quando questiona o aquecimento global?
Alceu Castilho – A família de Bolsonaro tem terras no Vale do Ribeira . Um cunhado dele foi condenado no ano passado por invadir terra quilombola. O candidato dele nessa região paulista foi igualmente condenado por invadir o Parque Estadual da Caverna do Diabo. Há interesses diretos do presidente nesse setor.

Mas, mesmo que ele não tivesse interesses diretos, ele enxerga o mundo a partir da ótica dos poderosos, não tem respeito nenhum por valores que passem pelo bem comum, pelo respeito à natureza (lembremos dele pescando ilegalmente no Rio) e à biodiversidade. A visão de mundo da extrema direita é excludente, e isso significa prever um planeta para poucos, a riqueza concentrada na mão de determinados eleitos, sob o signo de uma meritocracia que, sabemos, não existe.■

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