Edição 532 | 18 Março 2019

O veganismo como conversão e a conexão com outras formas de vida

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João Vitor Santos

Tainá Alves observa que uma ética cristã plena deve estar alinhada com as perspectivas de cuidado com o planeta

A jovem acadêmica de Arquitetura Tainá Alves se tornou vegana. Para ela, além de uma postura ética e política, essa também é uma forma de materializar a sua fé cristã. Afinal, compreende que, assim como o veganismo, o cristianismo se propõe a romper com o antropocentrismo. “Creio que o principal desafio, no campo da fé cristã, seja este: recolocar o ser humano como parte da criação e não como dominador, e a partir daí mudarmos nossa relação com todas as criaturas. E essa lógica não é recente. São Francisco já tratava toda criação como irmãos e irmãs”, destaca na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Ao aderir ao veganismo, estamos entrando numa luta contra essa exploração antiética de recursos do planeta. E a Terra é o maior presente de Deus, é a nossa casa, é uma forma de conexão direta com Ele”, acrescenta.

Tainá tem se dedicado a discutir a Encíclica Laudato Si’, em que o Papa Francisco defende o cuidado da Casa Comum, a partir da perspectiva da Ecologia Integral, que consiste em observar justamente a conexão entre todas as formas de vida e com o próprio divino. Para tanto, sugere uma radical mudança de hábitos, como conceber uma economia menos nociva. “Acredito que uma ‘economia que não mata’ tem suas bases na partilha, como diz Laudato Si’”, pontua. “Os sinais dos tempos exigem uma resposta forte de todos nós, Igreja institucional e igreja povo de Deus para que, juntos, possamos superar essa ‘crise integral’ que ameaça a nossa casa comum”, reflete.

A quem resiste a essas provocações, a estudante adverte que ignorar esses alertas é o oposto de viver plenamente os valores evangélicos pregados por Cristo. “A fé cristã se baseia na defesa da vida em todas as suas dimensões. ‘Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância’ (Jo 10,10). Qualquer ameaça à vida tem que ser combatida, e isso inclui toda a vida na terra e também as vidas futuras”, sintetiza.

Tainá Alves tem 22 anos, é estudante de Arquitetura na Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. Participa do Movimento Católico Global pelo Clima - MCGC, em que integra grupos de discussão e divulgação da Encíclica Laudato Si’. Vegana, considera que vive o veganismo de forma integral.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consistem as ações e quais os objetivos do Movimento Católico Global pelo Clima - MCGC?
Tainá Alves – O Movimento tem buscado engajar e conectar pessoas, organizações, instituições e movimentos de várias partes do mundo no cuidado da nossa casa comum e em defesa dos mais pobres e vulneráveis. A riqueza da Encíclica Laudato Si' tem sido um norte para diversas ações concretas, em diversos contextos, tendo sempre em vista a "Ecologia Integral".

Nessa perspectiva, as ações vão desde fomentar mudanças pessoais, mudanças nesse estilo de vida baseado na lógica do consumo, até campanhas globais, como desinvestimento de combustíveis fósseis por instituições católicas e presença ativa nas Conferências das Partes (COPs) das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC).

IHU On-Line – Como compreender o papel da Igreja em causas como a de combate ao aquecimento global?
Tainá Alves – A Igreja tem um papel fundamental nessas discussões. Numa perspectiva moral, a fé cristã se baseia na defesa da vida em todas as suas dimensões. “ Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância ” (Jo 10,10). Qualquer ameaça à vida tem que ser combatida, e isso inclui toda a vida na terra e também as vidas futuras. O aquecimento global já afeta centenas de milhares de vidas no planeta, principalmente referente à biodiversidade e aos mais pobres, e também ameaçam a vida das gerações futuras.

Já numa perspectiva política, a Igreja Católica está presente nos quatro cantos do mundo e tem a capacidade de falar por aqueles que não têm voz. Os sinais dos tempos exigem uma resposta forte de todos nós, Igreja institucional e igreja povo de Deus para que, juntos, possamos superar essa "crise integral" que ameaça a nossa casa comum.

IHU On-Line – Desde o início de pontificado, Francisco tem insistido que os valores evangélicos devem ser vividos na vida concreta cotidianamente. Quais os desafios para a conscientização de que os cuidados com o planeta têm conexão direta com essa vivência diária do Evangelho?
Tainá Alves – A nossa visão antropocêntrica nos distanciou de toda a criação. Colocar a natureza como algo a serviço do homem e a serviço da economia trouxe graves consequências. Tudo vira mercado. Tudo tem um preço. Uma má interpretação do Livro do Gênesis sobre a lógica de dominar a terra também contribui nesse distanciamento.

Talvez o principal desafio, no campo da fé cristã, seja este: recolocar o ser humano como parte da criação e não como dominador, e a partir daí mudarmos nossa relação com todas as criaturas. E essa lógica não é recente. São Francisco já tratava toda criação como irmãos e irmãs. Irmão sol, irmã terra, irmã água, em um tempo que nem se pensava em crise ecológica. A espiritualidade franciscana busca viver essa dimensão da fé e acredito que nos mostra um possível caminho a seguir.

IHU On-Line – Por que a relação entre consumo e cuidados com o planeta é algo que precisa ser tensionado em nosso tempo? Como conceber uma “economia que não mate”?
Tainá Alves – Em nosso tempo, vivemos em uma constante exposição de incentivos ao consumo desenfreado. Foi internalizada uma cultura que propaga a ideia de que para nos sentirmos completos e realizados precisamos sempre comprar um novo produto, mais atualizado e moderno, gerando produtos descartáveis, que são facilmente substituídos. As consequências desta mentalidade são fatais para o planeta: tem-se uma exploração incansável e irresponsável de seus recursos e um acúmulo excessivo de lixo, que libera substâncias nocivas para a terra.

O papa Bento XVI foi citado na Encíclica por seu convite que propõe “eliminar as causas estruturais das disfunções da economia mundial e corrigir os modelos de crescimento que parecem incapazes de garantir o respeito do meio ambiente”. Acredito que uma “economia que não mata” tem suas bases na partilha, como diz Laudato Si’ “ a Economia de Comunhão , se quiser ser fiel ao seu carisma, não deve somente curar as vítimas do sistema, mas construir um sistema no qual as vítimas sejam sempre menos, sistema no qual, possivelmente, não existam mais vítimas. Enquanto a economia produzir uma vítima e existir uma só pessoa descartável, a comunhão não é ainda realizada, a festa da fraternidade universal não é plena. (...) Quando partilhais e doais os vossos lucros, estais fazendo um gesto de alta espiritualidade, dizendo com os fatos, ao dinheiro: tu não és Deus, tu não és senhor, tu não és patrão!”.

IHU On-Line – Você trabalha promovendo debates e reflexões acerca da Laudato Si’. Como tem sido a recepção da encíclica três anos depois de sua publicação?
Tainá Alves – A Laudato Si' tem sido um forte instrumento de trabalho em diversos contextos. No geral, as pessoas têm muita abertura e veem o documento com seriedade e importância. São muitos espaços de reflexões, estudos, muitos documentos com linguagem adaptada, desde comunidades locais até instituições internacionais, católicas e não católicas. Acredito que o desafio tem sido transformar as ideias em ações práticas, ir para além do campo da reflexão.

IHU On-Line – Como você compreende o veganismo? Por que se diz que práticas como essas vão muito além de não comer carne?
Tainá Alves – O veganismo é um movimento que engloba práticas sustentáveis, a favor da vida e contra a exploração do outro e do planeta no cotidiano do ser humano como um todo, não se restringindo à alimentação, mas a todas as relações de consumo daquele indivíduo. Desta forma, não é simplesmente deixar de comer produtos de origem animal, mas mudar seus hábitos para que eles não incluam uma prática exploradora.

Assim, ao optar por um estilo de vida vegano, o indivíduo também não compra ou utiliza nenhum produto que promova a exploração, incluindo roupas, cosméticos, materiais de limpeza, dentre outros. Estão inseridos no conceito de exploração tanto o cárcere em que são mantidos os animais expostos à pecuária, quanto as consequências dessa prática para o planeta, como o desmatamento, a emissão de gases de efeito estufa, a poluição das águas e a extinção de espécies. E, ainda, a promoção de testes de produtos em animais ou o uso de trabalho escravo para produção. Portanto, é uma mudança no estilo de vida que causa um grande impacto no modelo de consumo desenfreado a que estamos expostos, de modo a promover um ambiente mais ético, sustentável e justo.

IHU On-Line – Podemos falar em uma ética, uma forma de vida, a partir de práticas como o veganismo? E que conexões podemos fazer entre uma “ética vegana” e a Laudato Si’?
Tainá Alves – Sim, o veganismo traz benefícios substanciais ao planeta e à vida do ser humano. Ele vem como uma forma de combater os malefícios trazidos pela indústria alimentícia exploradora. Um quilo de bife precisa de aproximadamente 16.000 litros de água para ser produzido e a pecuária está destruindo terras, superaquecendo o planeta, causando desmatamento, poluindo a terra, oceanos e o ar, e ainda nos tornando mais vulneráveis a doenças crônicas, como obesidade, diabetes e alguns tipos de câncer.

Assim, ao aderir ao veganismo, estamos entrando numa luta contra essa exploração antiética de recursos do planeta. E a Terra é o maior presente de Deus, é a nossa casa, é uma forma de conexão direta com Ele. Se não cuidamos dela, como podemos nos aproximar dEle? A igreja não prega um domínio absoluto do homem sobre a Terra, pois o único soberano é Deus. Logo, apesar de termos habilidades que nos permitem subordinar outros seres, não devemos fazê-lo, pois temos a responsabilidade de governar o planeta de forma caridosa e altruísta. Como a própria Laudato Si’ cita, “Não somos Deus. A terra existe antes de nós e foi-nos dada. (...) É importante ler os textos bíblicos no seu contexto, com uma justa hermenêutica, e lembrar que nos convidam a «cultivar e guardar» o jardim do mundo (cf. Gn 2, 15). (...) Cada comunidade pode tomar da bondade da terra aquilo de que necessita para a sua sobrevivência, mas tem também o dever de a proteger e garantir a continuidade da sua fertilidade para as gerações futuras. Em última análise, «ao Senhor pertence a terra» (Sl 24/23, 1), a Ele pertence «a terra e tudo o que nela existe» (Dt 10, 14). Por isso, Deus proíbe-nos toda a pretensão de posse absoluta: «Nenhuma terra será vendida definitivamente, porque a terra pertence-Me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes» (Lv 25, 23)”.

IHU On-Line – Apesar dos inúmeros avanços e proposições para animar outras formas de vida e relação com o planeta, a Laudato Si’ também é criticada por alguns por silenciar a respeito do direito dos animais . Como avalia essa crítica? Como as questões acerca do direito dos animais aparece na Encíclica?
Tainá Alves – Acredito que a discussão sobre os direitos dos animais pode ser aprofundada e abordada de forma mais direta, mas a Laudato Si’ discorre sobre a responsabilidade do ser humano para com o planeta e os seres vivos diversas vezes, referindo-se sutilmente aos direitos dos animais.

O que pode ser observado quando ela cita que “É preciso investir muito mais na pesquisa para se entender melhor o comportamento dos ecossistemas e analisar adequadamente as diferentes variáveis de impacto de qualquer modificação importante do meio ambiente. Visto que todas as criaturas estão interligadas, deve ser reconhecido com carinho e admiração o valor de cada uma, e todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros. (...) Ao mesmo tempo que podemos fazer um uso responsável das coisas, somos chamados a reconhecer que os outros seres vivos têm um valor próprio diante de Deus e, «pelo simples facto de existirem, eles O bendizem e Lhe dão glória, porque «o Senhor Se alegra em suas obras» ( Sl 104/103, 31). (...)«Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias. (...) As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, reflectem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas».”

IHU On-Line – O Movimento Católico Global pelo Clima está promovendo a campanha “Alimente-se com Simplicidade” em tempo de Quaresma. O que é “alimentar-se com simplicidade”?
Tainá Alves – Acredito que alimentar-se com simplicidade inclua comer comida de verdade, aquela que vem da terra, da natureza, prontinha para ser consumida por nós. Leguminosas, frutas, verduras, grãos… Existe uma infinidade de alimentos que não exigem esforço para serem preparados e degustados e foram criados por Deus para nos sustentar. A Bíblia preconiza o vegetarianismo. Em Gênesis 1, 29-30, Deus estabelece sua primeira lei dietética ao dizer: “Dou-vos toda planta que dá semente e que está em toda terra, e toda árvore em que há fruto, que produz semente: serão vosso alimento. A todos os animais selvagens, a todas as aves do céu e a todos os seres que rastejam pelo chão e nos quais há um sopro de vida, eu dou como comida toda vegetação”.

Hoje, estamos expostos a uma indústria alimentícia que nos traz produtos ultraprocessados, que se desconectam de sua forma e natureza, e que são feitos para gerar lucro para essas empresas, sem se preocupar com a saúde do consumidor. O consumo destes está associado ao aumento do risco de ocorrência de obesidade, diabetes e outras doenças crônicas causadas pelo excesso de açúcar e gorduras e a falta de vitaminas e minerais essenciais. Alimentar-se com simplicidade requer o conhecimento da origem do alimento e da sua cadeia produtiva, que deve ser do produtor diretamente para o consumidor, não incluindo um processo de industrialização.

IHU On-Line – Além da Campanha do seu movimento, outra campanha, Million Dollar Vegan, desafiou o Papa a assumir o veganismo durante a Quaresma. Qual é a importância de trazer ao debate essas questões durante o tempo de Quaresma?
Tainá Alves – A Quaresma é o período que antecede a Semana Santa, que inclui a morte e ressurreição de Cristo. É um tempo de recolhimento que temos para rever nossa vida de cristãos e nos preparar para a Páscoa, limpar nossa alma e nossos corações.

Durante esse intervalo, é comum as pessoas aderirem a novos hábitos como forma de sacrifício e de colocar Deus no centro de sua vida. Desta forma, acredito que ao trazer ao debate o veganismo estamos de fato expondo uma forma de nos purificar de corpo e alma, porque, como já mencionado, esse estilo de vida está diretamente ligado ao cuidado com o planeta e a saúde do ser humano e, logo, à aproximação de Deus. Penso que, ao cogitar a adoção do veganismo como um exercício de purificação na Quaresma, o indivíduo pode sentir seus benefícios e cogitar segui-lo como estilo de vida.

IHU On-Line – Por que, particularmente, você adotou o veganismo?
Tainá Alves – Sou vegana porque acredito que é meu dever tornar o mundo um lugar melhor. E a melhor forma de mudá-lo é sendo a mudança que desejo ver nele. E o veganismo é o estilo de vida mais consciente que encontrei dentro das minhas possibilidades de ser e viver essa transformação.

Sou vegana, também, porque quero viver em um planeta limpo, saudável, sustentável e livre de exploração. Porque quero respirar ar puro, desbravar florestas, nadar em águas limpas, com o maior número de espécies coexistindo nesse ambiente comigo. E quero que essa seja a realidade de todos os indivíduos. Porque acredito que, por mais que o ser humano esteja em condições de submeter os animais a se tornarem alimento e produto, não exercer essa dominação é questão de humildade e modéstia. Porque acredito que todas as espécies representam vidas, e nenhuma é mais importante que a outra. Porque, como cristã, amo a Deus e ao próximo como a mim mesma. E o próximo não é apenas meu semelhante, mas todo ser vivo que habita este planeta. Sou vegana por princípios e por amor à vida.■

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