Edição 532 | 18 Março 2019

Conhecer o alimento é fundamental para se conectar ao planeta

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João Vitor Santos

Jéssika Oliveira diz que há cinco motivos para ser vegano, mas sua mudança de hábito ocorreu a partir do desejo de conhecer mais sobre os produtos que come

Há quem considere o veganismo ou vegetarianismo uma moda. Para a ativista Jéssika Oliveira, aderir a essas práticas é muito mais do que isso, é um estilo de vida, uma ética própria que, muitas vezes, não é assimilada pela maioria das pessoas. “Ainda há muita desinformação sobre o veganismo”, avalia, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ela, há pelo menos cinco motivos para pensar em aderir a esse modo de vida. “Pelo planeta, pois o consumo de produtos de origem animal causa desmatamento, extinção de espécies animais e acelera as mudanças climáticas. Para não causarmos o sofrimento de bilhões de animais. Para que possamos alimentar as pessoas que não têm o que comer. Para cuidar da nossa saúde. Para alinhar os valores mais profundos em nosso coração com as nossas ações”, pontua.

Jéssika conta que, em seu caso, o valor mais profundo tinha relação direta com a comida. “Hoje somos completamente desconectados da nossa comida. Não entendemos como foi produzida, de onde vem, que caminho fez até chegar ao nosso prato e muitas vezes não sabemos o que ela é, e essa desconexão faz com que tenhamos dificuldades em entender o impacto que causamos ao consumi-la”, observa. “Me tornei vegana por todos os motivos citados, mas tem um que não é comum às pessoas e que foi importante para mim. Há muitos restaurantes veganos fundados por pessoas incríveis, com sistemas de trabalho e produção inspiradores, e o mesmo vale para vários produtores locais de legumes, frutas e verduras. Decidi que é para essas pessoas que quero dar o meu dinheiro”, acrescenta.

Assim, em pouco tempo percebeu transformações pessoais na relação com o planeta. “Para mim, a principal mudança foi me conectar mais com a minha comida”, diz. Hoje, a ativista integra a organização Million Dollar Vegan, definida pelo grupo que coordena a ação como “uma campanha que objetiva aumentar a conscientização sobre algumas das questões mais urgentes dos nossos tempos”. Recentemente, a jovem Genesis Butler, de 12 anos, ativista pelos direitos dos animais e pela proteção ambiental, que também integra o grupo, ofereceu um milhão de dólares ao Papa Francisco para que ele seguisse uma dieta vegana durante a Quaresma. O pontífice agradeceu a iniciativa e destacou a importância de ações como essas da menina, mas não prometeu aderir ao veganismo.

Jéssika Oliveira é coordenadora da campanha Million Dollar Vegan no Brasil. Formada em Jornalismo, trabalha com relações públicas e coordena a comunicação do Banana-Terra, um projeto do Greenpeace e da Anistia Internacional. Vegana, para ela, comer é um ato político.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como surgiu a ideia da campanha Million Dollar Vegan ? Por que provocar as pessoas a experimentar o veganismo no tempo de Quaresma?
Jéssika Oliveira – A ideia da campanha surgiu no Reino Unido, quando um grupo de amigos conversava sobre como fazer informações sobre a ameaça das mudanças climáticas, o sofrimento dos animais na indústria de alimentação e a solução para esses problemas – o veganismo – chegar ao maior número de pessoas, o mais rápido possível. Nesse grupo estavam os ingleses Matthew Glover e Jane Land , que já tinham criado a campanha de sucesso Veganuary. Ela basicamente convida as pessoas a experimentarem o veganismo durante o mês de janeiro, porque, como na virada do ano muitas delas já fazem promessas de mudança de hábitos, entende-se que estariam mais abertas a ideia nesse período.

A suposição estava certa! O Veganuary está em seu quarto ano e, só em janeiro de 2019, 250 mil pessoas experimentaram o veganismo por causa dele. A Million Dollar Vegan segue a mesma lógica: entendemos que como muita gente já deixa de consumir alguns tipos de alimentos – frequentemente a carne – durante a Quaresma, estariam mais abertas a experimentarem o veganismo.

IHU On-Line – O que levou o grupo a propor esse desafio ao Papa Francisco? Qual o papel da religião, ou da fé, no desafio de promover uma mudança como as que defende o veganismo?
Jéssika Oliveira – O Papa Francisco era a escolha óbvia. Ele já publicou uma Carta Encíclica – a Laudato Si’ , em 2015 – onde mostra sua preocupação com o meio ambiente e com o bem estar animal. Ele também, por ser o líder da religião católica, tem o poder de influenciar o 1,2 bilhão de pessoas que a seguem, além de que o catolicismo, por natureza, tem muitos dos valores do veganismo. “Ame o próximo como a si mesmo” está na Bíblia e é basicamente o que o veganismo defende: que você ame os animais e respeite o direito deles de viverem uma vida de qualidade; ame o planeta – a nossa “casa comum”, como o papa diz – e respeite a sua capacidade de suprir as nossas necessidades, sem destruí-lo com a nossa ganância.

O poder das religiões de estimularem uma mudança de grande escala é imenso, porque elas trabalham os valores que as pessoas têm mais profundamente em seus corações. A compaixão é um desses valores que todas as religiões estimulam e, na verdade, as pessoas também, mas não se manifesta na forma como a maioria de nós se alimenta. Uma reflexão que proponho é: “O que Jesus diria da forma como os animais são tratados na indústria alimentícia hoje?” Por tudo isso, acreditamos que muitas pessoas – crentes ou não – podem se identificar com o veganismo, pois é uma oportunidade de alinhar os seus valores mais íntimos com os seus hábitos.

IHU On-Line – De que forma o veganismo é compreendido pelo movimento Million Dollar Vegan?
Jéssika Oliveira – Vemos o veganismo como o caminho para resolver alguns dos problemas mais graves que nossa sociedade enfrenta. As mudanças climáticas, porque a pecuária é uma das maiores emissoras dos gases que aceleram o fenômeno. A crueldade com os animais. A fome mundial, pois uma alimentação sem carne, leite, ovos e outros produtos de origem animal exige menos espaço para ser cultivada e nesse espaço seria possível cultivar mais comida para pessoas, em vez de para animais, como fazemos hoje.

Por fim, problemas de saúde, pois o consumo de produtos de origem animal está ligado ao desenvolvimento de doenças cardíacas, diabetes tipo 2 e até alguns tipos de câncer. Além disso, também é uma das causas de estarmos desenvolvendo imunidade a antibióticos.

Porém, para nós, o veganismo é sobre compaixão e não sobre perfeição, então estimulamos as pessoas a continuarem no caminho mesmo se cometerem algum erro. Cada refeição sem nada de origem animal já salva algumas vidas e já contribui para um mundo mais compassivo.

IHU On-Line – Podemos falar numa ética vegana? E no que consiste essa ética?
Jéssika Oliveira – Há muitas formas de explicar a ética do veganismo, mas eu costumo usar a mais simples: não fazer ao próximo o que você não gostaria que fizessem com você. Esse próximo normalmente é entendido como os animais, mas também vale para a natureza. Muitas vezes também estamos tratando mal a nós mesmos. Por exemplo, quando consumimos produtos de origem animal que nos fazem mal ou então quando sofremos por consumir alimentos que causaram sofrimento em outros seres.

IHU On-Line – Como e por que se tornar um vegano hoje?
Jéssika Oliveira – Há cinco motivos comumente citados. Pelo planeta, pois o consumo de produtos de origem animal causa desmatamento, extinção de espécies animais e acelera as mudanças climáticas. Para não causarmos o sofrimento de bilhões de animais – anualmente são mortos em torno de 70 bilhões de animais em todo o mundo na indústria de alimentação. Para que possamos alimentar as pessoas que não têm o que comer. Para cuidar da nossa saúde. Para alinhar os valores mais profundos em nosso coração com as nossas ações. Porém, há outras, então cada um que tiver vontade de experimentar o veganismo deve ser honesto consigo mesmo e entender o que te faz ter essa vontade.

IHU On-Line – Quais os desafios para conscientizar as pessoas da importância da complexa mudança de hábitos do veganismo que vão além de “não comer carne”?
Jéssika Oliveira – Há três principais desafios. O primeiro deles é econômico, pois as empresas que produzem esse tipo de produto são muitos poderosas, doadoras de campanhas eleitorais e se vendem como grandes geradoras de emprego, apesar de estudos mostrarem que o agronegócio concentra renda, em vez de distribuí-la. Então, mostrar para as pessoas que essa lógica econômica não está beneficiando-as é um desafio.

O segundo é que ainda há muita desinformação sobre o veganismo. Muitos pensam que ser vegano é caro, pois acreditam que é necessário consumir produtos industrializados, mas não é. Uma pessoa que decida se tornar vegana agora, lendo essa entrevista, provavelmente já tem a maioria dos alimentos necessários na geladeira e no armário. Uma das pastas de dente veganas (por não testar em animais) mais conhecidas custa R$ 3,00, mais barata do que a maioria. Também é comum as pessoas pensarem que é necessário comer produtos de origem animal para ser saudável e inteligente, o que não é verdade, como não só mostram muitos estudos, mas muitas pessoas veganas que estão aí saudáveis, inteligentes e muitas até famosas e fazendo um sucesso estrondoso.

O terceiro é que hoje somos completamente desconectados da nossa comida. Não entendemos como foi produzida, de onde vem, que caminho fez até chegar ao nosso prato e muitas vezes não sabemos o que ela é, e essa desconexão faz com que tenhamos dificuldades em entender o impacto que causamos ao consumi-la. Vou citar um exemplo. Se você ver qualquer postagem em uma rede social de alguma página que defende o veganismo e o vegetarianismo, falando do impacto da produção de soja para o desmatamento, provavelmente vai ver alguém dizendo que isso acontece por causa dos próprios veganos e vegetarianos que comem soja. As pessoas não sabem que a maior parte de soja do mundo é produzida para alimentar os animais que comemos.

Maus-tratos aos animais

Outro exemplo: a maioria de nós pensa que os animais criados na indústria alimentícia têm uma vida plena. No imaginário popular, os porcos brincam na lama, as galinhas ficam caçando minhocas em grandes terrenos abertos, logo ao lado de vacas que pastam o dia todo, e só depois de viverem muitas aventuras e alegrias é que são mortos. A realidade é que as porcas são inseminadas, então são colocadas em gaiolas onde não conseguem nem se mexer durante o período de gestação e, por fim, quando seus filhotes nascem, são inseminadas de novo e o ciclo recomeça, um processo tão cruel que faz esses animais ficarem “gastos” aos olhos da indústria e serem sacrificados.

Pintinhos machos são triturados na indústria dos ovos, pois, afinal, eles não dão ovos e, além de não darem lucros, ainda dariam a despesa de alimentá-los. Eu poderia dar mais muitos exemplos, mas posso resumir dizendo que todos esses animais vivem curtas vidas de extrema crueldade. Por fim, não entendemos também que para produzir essa comida gastamos espaço – terrenos mesmo! –, água, energia, poluímos o solo, assim como rios, mares etc. Essa falta de entendimento sobre o que é a nossa comida e o seu processo de produção é outro dos principais desafios.

IHU On-Line – Oferecer dinheiro para que as pessoas assumam uma outra ética de vida não monetiza demais uma conversão que vai além dessas lógicas do capital?
Jéssika Oliveira – Quando oferecemos ao Papa Francisco 1 milhão de dólares para que ele experimentasse o veganismo nesta Quaresma, o que lhe demos foi a oportunidade de combater todos os problemas anteriormente citados e ainda ajudar uma ou mais instituições de caridade. A oferta está alinhada com o valor da compaixão, estimulado e valorizado por tantos de nós, inclusive pelo papa.

IHU On-Line – A campanha Million Dollar Vegan conquistou a adesão de várias celebridades. No que consistem essas adesões? E como estão as adesões, de modo geral, no Brasil e no mundo? Qual imagina ser a efetividade dessas adesões?
Jéssika Oliveira – As celebridades nos apoiam de três formas. Algumas assinaram a carta da ativista Genesis Butler, de 12 anos, líder do desafio Million Dollar Vegan, ao papa. Outras fizeram postagens em suas redes sociais e deram entrevistas divulgando a campanha. Outras nos permitiram usar fotos e vídeos delas contando por que se tornaram veganas, para inspirarem outras pessoas que quisessem experimentar o veganismo nesta Quaresma.

No Brasil, as pessoas que nos apoiam são Luisa Mell , Sonia Abrão , Alana Rox , Ellen Jabour, o fisiculturista Paru e a nutricionista Alessandra Luglio . No mundo, contamos com Paul McCartney , Moby , Joaquin Phoenix , Brigitte Bardot , Woody Harrelson , entre muitos outros. Essas adesões são fundamentais. No Brasil, por exemplo, o fato da Luisa Mell ter divulgado a carta da Genesis ao papa e a petição que todos podem assinar , fez com que o país fosse o líder em assinaturas. Essas celebridades podem levar a mensagem da campanha para pessoas que nós mesmos não atingimos e ainda são inspiração para muita gente. Somos gratos pelo apoio delas.

IHU On-Line – O que levou você a se tornar vegana? Que mudanças implicaram – ou implicam –, para você, essa mudança?
Jéssika Oliveira – Me tornei vegana por todos os motivos citados – meio ambiente, animais, saúde etc. – mas tem um que não é comum às pessoas e que foi importante para mim. Há muitos restaurantes veganos fundados por pessoas incríveis, com sistemas de trabalho e produção inspiradores, e o mesmo vale para vários produtores locais de legumes, frutas e verduras. Decidi que é para essas pessoas que quero dar o meu dinheiro, que é esse tipo de negócio que quero financiar, não a destruição do planeta e uma crueldade sem fim com os animais. Para mim, a principal mudança foi me conectar mais com a minha comida. Buscar conhecer mais sobre o processo de produção dela e saber o que estou comendo.

IHU On-Line – Sua trajetória pessoal e profissional esteve sempre associada ao trabalho em organizações que desenvolvem ações de proteção ao meio ambiente. Mas nem sempre proteger o meio ambiente envolve a adesão ao modo de vida vegano. Como compreender essa relação?
Jéssika Oliveira – As pessoas são diferentes e isso faz com que existam muitas formas de fazer ativismo. Há aquelas que acreditam que o veganismo é o caminho; há outras que acham que esse caminho é demorado e que é melhor cobrar empresas e políticos para a produção de alimentos não destruir o meio ambiente e não ser cruel com os animais, pois essa seria uma solução mais rápida e em larga escala. Pontos de vista diferentes são importantes porque garantem pessoas atuando em frentes diversas e a pressão pela mudança vinda de muitos lados e em vários formatos.■

Leia mais

- Menina oferece um milhão de dólares ao papa: ''Mas ele deve seguir uma dieta vegana durante a Quaresma''. Reportagem publicada em La Repubblica, reproduzida nas Notícias do Dia de 07-02-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Papa envia bênção a ativista mirim, mas não promete virar vegano durante a Quaresma. Reportagem publicada em National Catholic Reporter e reproduzida nas Notícias do Dia de 08-03-2019, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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