Edição 211 | 12 Março 2007

Perfil Popular - José Alencar Pereira, o “Dico”

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IHU Online

A nova editoria da revista IHU On-Line descreve o perfil popular de alguém que, mesmo não vivendo no mundo acadêmico, sempre tem o que ensinar. Contaremos aqui a história de vida e a visão de mundo de pessoas que lutam pela sobrevivência e pela dignidade e que, apesar das dificuldades, têm sonhos e anseios de uma vida melhor.

José Alencar Ponciano Pereira, o Dico, 26 anos, é presidente de Associação de Trabalhadores Urbanos de Resíduos Orgânicos e Inorgânicos, a ATUROI, de São Leopoldo. Ele é o entrevistado da editoria Perfil Popular da edição desta semana. Dico é natural de Sobradinho. Nasceu e se criou numa olaria, onde trabalhou dos 14 aos 17 anos. Em 1999, surgiu para ele uma oportunidade de emprego em São Leopoldo. Começou a trabalhar em uma firma de plástico. Morava com a avó e com um tio, que o ajudaram muito. “Trabalhei três meses no contrato, porque o produto que lavava o material não me fez bem. Fui afastado da empresa”, lembra. Depois disso, Dico ficou desempregado durante dois anos. Em seguida, foi conseguindo alguns “biscates”, empregos “frios”. Depois, ficou desempregado de novo, por mais seis meses. “Foi nesse período que surgiu a oportunidade de trabalhar em coletivo. Minha tia e minha mãe montaram um barzinho, onde se concentrava todas as tardes um grupo de amigos. Todos desempregados. Em 2002, apareceu a companheira de luta Gorete, de São Leopoldo, que tinha entrado no Movimento dos Trabalhadores Desempregados, o MTD, movimento nacional.” Gorete ofereceu a oportunidade da criação de grupos de produção. Ela representava o MTD em São Leopoldo, na época. “Conseguimos reunir 27 pessoas na cidade, divididas em três frentes de trabalho. Nós, da Vicentina, optamos pela frente de reciclagem. Gostamos da proposta e nos juntamos à primeira marcha, em maio de 2002. Foi uma grande marcha, com 2.600 pessoas, para brigar por essas frentes de trabalho. E não era só gente do MTD. Eram vários movimentos: pela moradia, MST, Movimentos de Catadores. Juntamos todos os desempregados e fomos para essa luta durante três dias. Começamos a caminhar em Gravataí e foram três dias até chegar em Porto Alegre, no Palácio Piratini. A luta deu resultado e o grupo começou a se articular em coletivo”, conta Dico.

Força de vontade - O grupo da reciclagem começou a fazer a coleta meio ano antes de receber a primeira parcela do governo estadual. “Foi massacrante”, lembra Dico. “A gente não tinha nada, só força de vontade de gerar nossa própria renda. Nós éramos entre 12 e tínhamos só uma bicicleta. Com a primeira parcela compramos nossa primeira ‘carreta’, com umas cantoneiras e duas rodas de bicicleta. Já começou a melhorar”. O pai de Dico também estava desempregado e começou a catar resíduos para ele também. Montou uma prensa manual de maneira, para prensar o material que recolhido. “Com o apoio que o MTD ia conseguindo para o nosso grupo, conseguimos verba para comprar a prensa que temos até hoje. Com essa verba, conseguimos também fazer mais carretas, comprar mais bicicletas, capas de chuva e outros instrumentos de trabalho”.

Personalidade de líder - Há três anos Dico é presidente da ATUROI. Ele faz parte da coordenação estadual do MTD e representa São Leopoldo. “O Movimento me ajudou muito nessa questão de liderança. Eu nem queria assumir isso. Não tenho muito estudo. Fiz só até a 5ª série. Mas as pessoas apostaram em mim e a gente se encontrava em uma situação difícil”. A ATUROI conta hoje com 15 pessoas, que tiram da Associação o seu sustento. A melhora mesmo veio depois que o grupo conseguiu aprovar o projeto de coleta seletiva em São Leopoldo, que era um sonho de todos. Dico relembra que em 2004 houve o Encontro Latino-americano dos Catadores, em São Leopoldo. “Foram três dias, quando nós apresentamos nosso primeiro projeto ao prefeito Ari Vanazzi . Hoje fazemos coleta seletiva compartilhada, de porta a porta. Há um ano e meio entregamos um saco vazio e pegamos um cheio. Além da nossa, há mais uma associação e uma cooperativa fazendo o mesmo trabalho em regiões diferentes de São Leopoldo. Nós cuidamos da região oeste. Vendemos o material por quinzena para atravessadores que vendem para empresas maiores que trabalham com sucata. Ainda estamos na mão dos atravessadores. Nós coletamos, separamos o material, reciclamos: papel, plástico, pet, vidro. Por quinzena, conseguimos juntar uma média de R$ 3 mil por cerca de 7 ou 8 toneladas”, explica.   

Preconceito - José Alencar, o Dico, fica feliz ao reconhecer que as pessoas já estão se adequando ao projeto. “Passou a fase de ser mal-encarado na rua. Sempre tem os que buscam material para sobreviver, mas também tem aqueles que vão na lixeira para disfarçar e roubar”.

Suporte- Dico e todo o pessoal da ATUROI é muito grato ao Programa Tecnosociais, do Instituto Humanitas Unisinos. “Há dois anos nessa parceria, eles, para nós, são os nossos pais. Em tudo o que a gente precisa, eles nos apóiam: conseguem cursos na área de reciclagem, de como fazer uma reunião, um planejamento. Isso fortalece cada vez mais a nossa associação”.

Família - Dico conta que é “amasiado” com sua companheira Anelise, com quem tem dois filhos: um de nove e um bebê de um ano: Maicon e Marlon. Anelise é a secretária da Associação. A família reside no Loteamento Cerâmica Anita, considerado por Dico um lugar “não muito bom”. “Tive que ocupar, né? Eu dependia de favor para morar. Por causa dos filhos, toda hora dava briga. Achei melhor achar um cantinho pra mim. Me joguei pra dentro de um banhado. Faz quase três anos que eu moro dentro do banhado, no meio dos mosquitos, nessa situação”. A região foi recentemente beneficiada com 120 casas populares. E Dico tem a esperança de conseguir uma dessas 120 casinhas.

Lições de vida - Dico quer ensinar para seus filhos a importância do que ele faz: proteger o ambiente. “Isso é muito importante. Vemos muita gente tocando lixo no rio, dentro do valão, sendo que tem onde dar fim aos seus resíduos. Essa questão de conscientizar é um pouco demorada. Mas quero passar isso para meus filhos. Meu guri mais velho não gosta do que eu faço. Ele tá na primeira série, rodou dois anos já. Ele é meio caborteirinho , sabe? Não gosta que eu saia para uma lixeira. No início, ele ia junto e gostava de ir nas lixeiras achar coisinhas, porque a gente acha muita coisa. Mas, hoje, ele cresceu um pouco mais, de repente os amiguinhos dele falam coisas. Porque o catador muitas vezes é chamado de vagabundo pra cima. Tem muito preconceito. As pessoas dizem que a gente não quer trabalhar, não quer arrumar serviço. A gente não tem possibilidade de achar um emprego de carteira assinada, tudo certinho. Eu muitas vezes chegava a chorar de raiva, com vontade de dar porrada, porque o que eu faço é um trabalho! Eu tô ali, não tô roubando, tô fazendo meu dinheiro digno! Pra mim, esse é um trabalho como qualquer outro. No começo eu até ficava meio com vergonha, mas hoje o que eu mais gosto de fazer é estar na rua, na coleta, conversando com as pessoas. Essa troca de idéias é muito boa”.

Sonho - “Meu sonho é conseguir gerar nossa própria renda, se manter pelo nosso próprio trabalho. Acredito que o ‘Pai Velho’ tá olhando e tá dando tudo certo, com nosso esforço, com todas as nossas lutas. O meu maior sonho é que eu consiga, da reciclagem, do que eu escolhi para fazer, conseguir uma vida digna para minha família, meus filhos, meus companheiros”.

Relação com Deus - Dico enche a boca para dizer “sou católico”. “Claro, não vou todos os domingos à missa, mas acredito muito em Deus, rezo, peço pra Ele que proteja a família, os amigos, a nossa Associação, que é o nosso trabalho, nossa sobrevivência”.

Medo - Dico tem “um monte de medos”, porque está na rua, e não sabe o que pode acontecer. “Trabalhamos de bicicleta. Eu saio do galpão e penso ‘será que eu volto?’”.

Movimentos sociais - Para Dico, os governos deviam apostar mais nos movimentos. “Só que o povo não bota na cabeça que quem tem que buscar a conquista é ele. Os movimentos procuram juntar pessoas, porque vai fortalecer, e vai ter mais possibilidades de ser beneficiado”.

Brasil - Sobre nosso País, o presidente da ATUROI é enfático: “Eu só acredito no Brasil vendo ele acontecer. Claro, deu umas mudadas em vista do que era o Brasil uns anos atrás, principalmente na classe mais baixa, que é a nossa classe. Quantas casas, quanta ajuda foi dada ao pessoal que não tinha água. Acho que falta mais dedicação em todas as questões: trabalho, saúde, segurança. Hoje a gente sai de casa e talvez nem volte por causa de um celular, de um tênis, um boné. Mas acho que vai melhorar quando a população começar a cobrar”.

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