Edição 531 | 17 Dezembro 2018

A necessidade de reconhecer o mal no humano para enfrentá-lo

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João Vitor Santos

Eduardo Losso reflete sobre as inquietudes que afligem o nosso tempo, perversidades que, se não forem apreendidas nas pequenas ações, acabam personificando o pior da humanidade

Em geral, quando se fala que Etty Hillesum esteve diante da face do mal por ter vivido a Shoá, a afirmação é aceita. Entretanto, quando se diz que esse mal que nutriu uma guerra é composto de sentimentos presentes ainda hoje, um estranhamento pode se estabelecer. “Se não estamos pensando radicalmente o nosso mal, é porque ele está vencendo. Bem, diante dos fatos recentes, isso é uma evidência”, aponta o professor Eduardo Losso, que quer chamar atenção justamente para esse ponto. Afinal, a maldade da Shoá não surge do nada, mas de sentimentos bem humanos que se convertem em ações perversas. “Hoje, contudo, temos bons motivos para dizer que o abismo de nosso niilismo é bem mais grave que o de nossos antecessores modernos, mas não vejo ninguém encarando o assombroso alcance dele, isto é, o nosso mal”, observa. “Isso significa que, por mais que tenhamos lido Nietzsche, Kierkegaard, Benjamin, Adorno, Cruz e Sousa, Augusto do Anjos, Machado de Assis, Drummond, não estamos à altura dos abismos de nosso tempo como eles, no seu tempo, estiveram, talvez precisamente porque o nosso é bem maior”, completa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Losso se propõe a refletir acerca de formas de fazer resistência ao mal de nosso tempo. Para tanto, reitera, é preciso conhecer esse mal. “Todo ser humano é um nazista diante de outros animais, dito famoso de Isaac Bashevis Singer. Nunca houve tantos corpos dóceis, tantos trabalhadores produtivos, logo, tanta riqueza detida por tão poucos, proporcionalmente, e nunca houve uma nobreza tão poderosa e intocável quanto a atual elite financeira global”, reconhece.

Segundo o professor, o ser humano é livre, “nosso corpo deseja ambientes naturais, não cubículos emparedados, nem prédios gigantescos, luzes ofuscantes, barulhos gritantes, ruas apinhadas e carros numerosos”. Ou seja, é na natureza que o ser humano se completa. Mas, no nosso tempo, nos movemos para cada vez mais longe desses ambientes naturais. “O mercado, essa mão invisível, inquestionável e soberana, quer eliminar as poucas reservas naturais que sobram, multiplicar mais seres como nós retirando todos os seus direitos mínimos e engordar cidades: isso não tem como dar certo”, analisa. Assim, das muitas possibilidades de buscar essa reconexão, está o silêncio. Aquele mesmo que faz Etty encontrar a paz dentro de si num ambiente tão inóspito. Para Losso, o desafio é buscar essa conexão. “O silêncio diz mais do que todos os sons que incessantemente nos perseguem, e é e será cada vez mais, sem dúvida, um dos maiores luxos da contemporaneidade”.

Eduardo Guerreiro Brito Losso é professor adjunto de Teoria da Literatura do Departamento de Ciência da Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e coeditor da Revista Terceira Margem, do PPG-CL da UFRJ. É graduado em Letras, mestre e doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ, com estágio na Universität Leipzig, Alemanha. Entre os livros que organizou, destacamos Diferencia minoritaria en Latinoamérica (Georg Olms, 2008), O carnaval carioca de Mário de Andrade (Azougue, 2011) e Música Chama (Circuito, 2016). Ainda é autor de Renato Rezende por Eduardo Guerreiro B. Losso (EdUERJ, 2014).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Etty Hillesum encarou de frente as faces mais perversas do mal. O que é o mal do nosso tempo? E como resistir a ele?
Eduardo Losso – Ao longo da história de diferentes civilizações dominantes, a humanidade desenvolveu orgulho por suas habilidades e conquistas, que levaram, no período moderno, à crença no progresso: social, tecnológico e espiritual. O capitalismo é um sistema que se alimenta de suas próprias crises. Houve muitos questionamentos a respeito de seus perigos, houve muita luta contra seus princípios, houve a crise dos mais caros valores ocidentais, cristãos e iluministas, mas mesmo tal crise engendrou uma eufórica transvaloração de todos os valores.

Hoje, contudo, temos bons motivos para dizer que o abismo de nosso niilismo é bem mais grave que o de nossos antecessores modernos, mas não vejo ninguém encarando o assombroso alcance dele, isto é, o nosso mal. Isso significa que, por mais que tenhamos lido Nietzsche , Kierkegaard , Benjamin , Adorno , Cruz e Sousa , Augusto do Anjos , Machado de Assis , Drummond , não estamos à altura dos abismos de nosso tempo como eles, no seu tempo, estiveram, talvez precisamente porque o nosso é bem maior. Se não estamos pensando radicalmente o nosso mal, é porque ele está vencendo. Bem, diante dos fatos recentes, isso é uma evidência.

Não estamos mais diante do niilismo nietzschiano, que serve de base para a afirmação trágica da vida e a descoberta libertadora da vontade de poder. Não estamos mais diante da crítica da burguesia que resulta numa utopia revolucionária. Não estamos mais diante da descoberta abissal do inconsciente e do entusiasmo modernista diante de mundos desconhecidos a serem revelados pela inovação artística da forma, de uma autodestruição criativa e radicalmente renovadora da arte. Tampouco estamos no período de revolta dos jovens diante das inúteis mortes da guerra do Vietnã, nos EUA, que levou à descoberta de toda uma geração do pacifismo, da liberação sexual, da alteração da percepção, motivando o projeto de colocar a “imaginação no poder”, no maio de 68 francês, assim como na possibilidade de transformar antropofagicamente a cultura de massa internacional numa modernização complexa em que o local só enriquece uma perspectiva global, no tropicalismo brasileiro.

Não temos mais motivo de nenhum grande entusiasmo metafísico, pós-metafísico, existencial, artístico e político. Todo ser humano é um nazista diante de outros animais, dito famoso de Isaac Bashevis Singer . Nunca houve tantos corpos dóceis, tantos trabalhadores produtivos, logo, tanta riqueza detida por tão poucos, proporcionalmente, e nunca houve uma nobreza tão poderosa e intocável quanto a atual elite financeira global.

Morte de Deus e do homem

Nunca na história da humanidade setores progressistas tiveram uma consciência tão clara das ilusões de sua superioridade frente a outros seres. O ser humano escraviza animais, extingue várias espécies, desequilibra profundamente a biosfera e multiplica a sua população – para quê, afinal? Para emburrecer passando horas na timeline das redes? Para assistir insultos e piadinhas de youtubers? Para aumentar a desigualdade dentro de sua própria espécie, para manter o bem-estar de cada vez menos pessoas e agravar o estresse e o sofrimento de uma maioria crescente?

Se todo o polo progressista sabe muito bem aonde esse monumental empreendimento levará – para o fim dos recursos naturais, o fim das grandes florestas, o completo desequilíbrio ecológico e, por conseguinte, o aquecimento global, a tragédia anunciada das mais terríveis catástrofes –, não estamos mais somente diante da morte de Deus e da consequente morte do homem, da qual falava Foucault . Estamos diante da inversão de todo motivo de orgulho em vergonha de ser homem. Homem: nos dois execráveis e interligados sentidos da palavra. Nunca na história chegamos à conclusão de que era melhor não termos existido. Somos baratas mamíferas fazendo porcarias no único planeta que temos. Uma certa leitura da metamorfose de Kafka se tornou o nosso retrato. Os poucos índios que ainda e sempre resistem têm toda razão em sentirem nojo de nós. Se o homem branco via-se a si mesmo como o paladino da racionalidade e, consequentemente, da responsabilidade, que fazer diante da descoberta de que sua racionalidade instrumental é a destruidora da vida no planeta, incapaz de frear a ânsia exterminadora de gerar lucro a todo custo?

Banalização das pautas

Podemos afirmar aqui e ali que temos novos projetos pela frente: sustentabilidade, movimentos identitários, democratização das mídias. Apesar de serem pautas urgentes e extremamente necessárias, a própria lógica propagandística do escândalo do dia, perpetrada pela estrutura conjunta da grande mídia, mídias alternativas oportunistas e Facebook, banaliza tais pautas, para, como resposta, propagar a ascensão das mentiras que a contrariam, das ilusões favoráveis ao sistema, e desagregam o árduo trabalho formativo, prático e crítico que deveríamos ter nelas. As pautas da esquerda viram pequenas crenças, uma separada da outra, brigando por espaço.

Talvez os evangélicos sejam mais sinceros em sua fé do que a fé dos progressistas. As diferentes modalidades de culto ao escândalo se tornam, então, manifestações de nossa cegueira fundamental: estampa-se o nosso fracasso, mas ele é tão definitivo e gritante que, justamente, não somos capazes de assumi-lo, aí podemos inventar o simulacro substitutivo que quisermos para tampar o vazio.

A revolta progressista, que continuamente conclama um novo slogan, retira uma nova hashtag do bolso para reivindicar suas pautas, só responde à agenda prévia de notícias do dia ditadas pela mídia e impostas pela estrutura programática das redes sociais. Em suma, ela é tão niilista quanto o desejo de grandeza nacional da extrema direita. Uma reage impotente diante da catástrofe, outra alucina, potente, e torna a catástrofe o seu triunfo. Essa sede de grandeza, tanto dos ideólogos de Trump quanto do atual ministro das Relações Exteriores do novo presidente, é uma reação compreensível à derrocada de todos os valores passados que a esquerda hoje só pode entender como mentira, e não consegue encontrar outro valor senão nos oprimidos por essa mentira, naqueles tidos como fracos, que agora devem se tornar fortes.

O mal

Um é o fundamentalista da grandeza, outro não deixa de idolatrar o oprimido. Ambos fogem, do mesmo modo, do niilismo, isto é, do mal de nosso tempo. Entendo o mal não como a força de atração do pecado, mas como a consequência da fragilidade diante da poderosa treva da falta de sentido. Tal abismo leva à proliferação de culpas e dívidas infinitas, concretas ou imaginárias, monetárias ou morais, que se pode atribuir aos dominantes, por seus privilégios, ou aos dominados, por sua suposta incapacidade meritocrática, mas que não serve a outro motivo senão dar sentido ao que não tem.

Só ganhamos força diante do vazio, primeiro, descobrindo que ele faz parte de nós; segundo, o quanto somos pequenos diante dele, sendo partes dele; terceiro, o quanto tal pequenez tem sua grandeza. Uma lição dos grandes pensadores do niilismo foi sempre a seguinte: não existe a mínima perspectiva de resposta a ele senão reconhecendo e assumindo toda a extensão de seu alcance. Antes de passar para qualquer proposta de solução, que já deve ser entendida de saída como parcial, é preciso demorar-se mais tempo no insolúvel. Ora, é precisamente isso que não estamos fazendo.

IHU On-Line – Como o mal se perfaz no totalitarismo? E como ele se revela no tecido social em nosso tempo, em que também somos atravessados pelas tecnologias?
Eduardo Losso – Nunca setores dominantes, como celebridades da política e do entretenimento, foram tão atacados e injuriados. Toda e qualquer pessoa, por mais respeitada ou querida que seja ou tenha sido, pode ser vítima de escracho nas redes sociais. Esse fenômeno não está desligado daquele, da vergonha de ser homem. O destronamento da humanidade e de suas personalidades modelares cria, naturalmente, uma histeria moral, pois todo mundo quer apontar os defeitos dos outros, as qualidades perderam o atrativo. Manipuladores de opinião perceberam que o ódio deve ser estimulado e direcionado para os seus interesses.

Contudo, essencialmente, esse império do ódio, essa impossibilidade de admiração substancial, vem de uma vergonha de toda a espécie, que não está sendo nem pode ser dita. Mas, na prática, a sensação de asco do ser humano por outros seres humanos existe, especialmente nas cidades cada vez mais numerosas, e vai aumentar, e vai buscar justificativas ideológicas advindas de orgulho ferido, preconceito, bolhas, polarização, moralismo, do que seja, para se expressar e agir.

Nosso corpo deseja ambientes naturais, não cubículos emparedados, nem prédios gigantescos, luzes ofuscantes, barulhos gritantes, ruas apinhadas e carros numerosos. Nossos olhos desejam olhar paisagens de verdade, não telas durante horas por dia. Nosso olfato deseja respirar o ar de vegetação exuberante, não cheiros de comida por todo lado só para atrair clientes, perfumes artificiais, poluição. Não preciso dizer que nosso sistema nervoso deseja andar tranquilo e não com medo de agressores e assaltantes. Mas o mercado, essa mão invisível, inquestionável e soberana, quer eliminar as poucas reservas naturais que sobram, multiplicar mais seres como nós retirando todos os seus direitos mínimos e engordar cidades: isso não tem como dar certo.

Para alienar-se de suas necessidades reais, as pessoas se deixam atrair não pelo remédio, mas pelo veneno. A lógica dispersiva da notícia e da propaganda, que já era parte integrante da grande mídia, é agravada mil vezes com as postagens e os encaminhamentos das redes sociais. Muitos acreditaram piamente no potencial de informação e democratização da internet, que, de fato, seria enorme, se o seu potencial destrutivo não fosse maior, se o último pudesse ser alertado, aplacado, e não estimulado, como é o caso.

Renovação bem-sucedida do totalitarismo

Enquanto os técnicos da internet estavam testando e sofisticando novas modalidades de controle com seus complexos algoritmos, intelectuais progressistas vips estavam rebatendo alegremente os teóricos da manipulação de cinquenta anos atrás com sorriso no rosto. Enquanto argumentos da teoria pós-moderna estavam se regalando com relativismos, o cinismo dos manipuladores atuais estava se servindo deles para uma renovação muito bem-sucedida do totalitarismo.

Sabe aquela tese de Lyotard de que as metanarrativas dominantes deram lugar a micronarrativas fragmentadas, e cujo conceito de “narrativa” se tornou tão onipresente? Bem, talvez estejamos vendo justamente o avanço de metanarrativas que se alimentam de polarização recíproca. O mais confortável é sempre estar, inclusive, do lado de uma vituperando outra. Quem critica ambas e busca algo genuinamente diferente vive no meio do tiroteio, desprotegido. A hipótese das micronarrativas, nos locais mais globalizados, não é senão mais uma metanarrativa.

IHU On-Line – Em meio à dor do campo de concentração, Etty Hillesum encontra espaço para agradecer a vida e enxerga o céu azul em meio ao cinza. Poderia esse ser um exemplo da poesia como exercício espiritual que valoriza a arte do viver, apesar de toda adversidade?
Eduardo Losso – O que não faltam são exemplos da poesia como uma forma moderna de prática espiritual, por mais que críticos literários pós-modernos impliquem com a palavra “espiritual” e não saibam como um Pierre Hadot a utilizou em relação à filosofia antiga. A poesia moderna, especialmente desde o simbolismo, não foge do niilismo, pelo contrário, ela dedica boa parte de suas energias a ele e, ao mesmo tempo, exercita a fundo vias sutis de reencantamento do mundo, através de experiências embriagadoras que ela mesma pode originar, sem apelar nem para drogas, nem para grandes rituais ou festas.

Do mesmo modo, em vários casos ela se propõe a estabelecer um novo tipo de prática de vida material e espiritual em meio à apoteose da produtividade, do consumo e da desigualdade. Um traço característico da poesia moderna é, antes de mais nada, ser uma nova medida de sobrevivência ascética, nunca fuga ou passatempo intimista. É a resistência da experiência que deseja se tornar uma reexistência do encantamento.

IHU On-Line – A mística de Etty Hillesum é revelada nos escritos de seus diários e cartas. De que forma a relação com a escrita é capaz de fornecer um caminho para o transcendente?
Eduardo Losso – Não há nada transcendente sem que não ganhe existência no imanente, assim como não há nada espiritual que não se dê senão a partir e por meio do material, daí o conceito de Hadot se intitular prática espiritual. De fato, o ato de escrever é uma das principais atividades da história da ascese, isto é, da prática de si, cuja meditação demorada e registrada se dá nas anotações pessoais, quando a escrita serve ao desenvolvimento espiritual do sujeito, e não a trabalhos meramente burocráticos. A escrita sai do âmbito utilitário e entra no terreno da autotransformação e, sempre quando imerge em si mesmo, necessariamente serve para outros que estejam numa busca, numa quête.

Evidentemente, a investigação espiritual que ocorreu no terreno da filosofia antiga, do monasticismo e, no renascimento, dos filósofos herméticos da natureza, influenciou profundamente a imersão subjetiva da poesia nos mesmos períodos até a modernidade, bem como vice-versa. Isto é, a poesia também influenciou tais movimentos. A conexão entre os dois é uma das pesquisas comparatistas mais importantes de se fazer hoje em dia, e esse é um foco central do meu trabalho.

IHU On-Line – Etty Hillesum também fala da necessidade dos silêncios. Qual o espaço do silêncio e da contemplação na mística moderna?
Eduardo Losso – “O silêncio me diz muito mais, muito mais/ do que todos os sons: diz-me aos ouvidos da alma”, afirma a poeta simbolista, feminista e negra e ainda hoje infelizmente pouco conhecida Gilka Machado , em 1917, no fabuloso livro Estados da alma.

Quando alguém vive na cidade grande, mesmo num bairro residencial relativamente tranquilo, quando se mora num prédio de sete andares ao lado de outros de dez, ouvirá ininterruptamente ruídos de obras, músicas de alto-falantes estridentes de pessoas que não sabem escutar sem incomodar os outros, latidos de cães infelizes porque vivem dentro de apartamento, festas, brigas, TVs no máximo volume. Dificilmente teremos a perspectiva social de uma reeducação para o respeito ao espaço acústico do outro e para a apreciação do silêncio. Tenho insistido muito nesse ponto.

O que poetas e místicos mais fizeram ao longo da história foi evidenciar uma verdadeira recherche do silêncio, interior e exterior, inclusive da complexa interpenetração espacial entre o material e o espiritual que se dá na ambiência, na Stimmung, dentro do fora e fora do dentro. O silêncio diz mais do que todos os sons que incessantemente nos perseguem, e é e será cada vez mais, sem dúvida, um dos maiores luxos da contemporaneidade. Feliz de quem possui a dádiva rara de algum tempo de silêncio em sua residência. Alceu Amoroso Lima , no livro Meditações sobre o mundo interior, de 1953, reflete já naquele tempo sobre a dificuldade do amante do silêncio viver na cidade grande, no caso, no Rio de Janeiro. Imagine então o que ele não diria hoje, já que a maioria da população vive em cidades e não mais no campo, estando os centros urbanos brasileiros certamente entre os mais barulhentos e hostis do mundo?

Poesia e espaço para quietude

A violência social não está só no âmbito mais grosseiro da ameaça à integridade física, ela também se dá no estresse ininterrupto do desconforto físico e psíquico, que poderíamos chamar de tortura suave, soft torture. A poesia, nesse sentido, é mais, repito, do que um passatempo de pessoas instruídas, ela pratica um modo de vida que já é uma forma de sobrevivência. Ela abre um espaço de quietude que permite observar a ansiedade exterior e interior de longe, de modo semelhante a meditações budistas.

Tenho escrito frequentemente sobre essa questão, justamente porque quase ninguém reflete sobre isso em termos históricos, concretos e contemporâneos. Louvar o silêncio abstratamente, sem ter em mente essa dimensão concreta, é insatisfatório.

IHU On-Line – De que forma a Modernidade reconfigura a poesia e como isso impacta no místico, no transcendente?
Eduardo Losso – A Modernidade deu à poesia a possibilidade de sua autonomia, de seu destaque de ideologias e doutrinas religiosas. Como a mística, inclusive a poesia mística, especialmente desde o século XII, tinha sido uma ameaça ao controle eclesiástico, a mística deu à poesia moderna a chave de como perseguir o reencantamento do mundo num mundo desencantado, sem ignorar o abalo dos valores doutrinários e, mesmo que a mística tradicional não pretenda romper com autoridades doutrinais, são elas que rompem com a mística, devido a sua incorrigível ousadia.

As variadas místicas do século XII ao XVII deram à poesia moderna tanto uma lição de rebeldia quanto de prática de si, tanto de disciplina quanto de indisciplina extática. Recomendo a audição da canção “Indiscipline”, do King Crimson dos anos 80, um bom exemplo de peso dionisíaco pós-psicodélico, feita de uma estrutura contrastiva, cheia de jogos rítmicos internos, que ilustra musicalmente o assunto.

A outra questão que a sua pergunta toca é o que seria, afinal, uma mística da própria poesia moderna, não é?

IHU On-Line – O senhor trabalhou a secularização da mística na arte moderna. No que consiste essa secularização? Podemos considerar que o transcendente foi esvaziado? Por quê?
Eduardo Losso – Foi. A crença numa transcendência eterna foi completamente abalada, sim, no setor mais avançado da poesia moderna, mas isso não se deu sem muitas perturbações coletivas e pessoais. Baudelaire e Rimbaud expõem um conflito interior muito intenso com seu destino de pecadores. Lautréamont assume a maldição, Huysmans produziu um decadentismo maldito para depois se converter de novo ao catolicismo. Depois, muitos escritores católicos defendem o catolicismo de Baudelaire e Rimbaud; outros, especialmente os surrealistas, defendem seu caráter anticlerical. Essa briga fica evidente, aqui no Brasil, nas diferentes leituras que Mário e Oswald de Andrade , de um lado, e Murilo Mendes , Jorge de Lima e Alceu Amoroso Lima , de outro, fazem dos precursores, e como os desdobram em suas poéticas.

Uma coisa é a rebeldia anticlerical que é explícita nos movimentos simbolista e surrealista, outra é a proximidade de ambos com o esoterismo. A presença constante do esoterismo no século XIX e em boa parte do século XX nos movimentos artísticos sempre foi vista com extrema repulsa tanto por católicos e protestantes quanto por ateus anarquistas, comunistas, socialistas e liberais. Tal esoterismo tem raízes antigas, mas suas bases floresceram no hermetismo renascentista e ele explodiu, tornando-se moda, na segunda metade do século XIX, e não se entende o simbolismo sem ele. No modernismo, o esoterismo foi uma presença central em todas as suas vertentes, especialmente em figuras como Kandinsky e Breton ; em seguida, todo um espiritualismo da vida alternativa, fora da cidade, vai mobilizar beatniks e hippies. O belo filme Hilda Hilst pede contato (2018) , de Gabriela Greeb , deste ano, exemplifica o lado paranormal dessa vertente.

Na briga entre ateus e cristãos, escritores ateus ou supostamente ateus ou disfarçadamente ou discretamente religiosos são bem aceitos para críticos literários laicos, enquanto escritores orgulhosamente cristãos são bem aceitos em terrenos teológicos, e menos aceitos do outro lado. Muitos escritores que flertaram com o esoterismo ou tiveram esse seu lado menosprezado (como é o caso de Hugo , Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé , Nerval , Breton , entre tantos outros), ou foram quase apagados da história (é o caso do grande poeta e intelectual simbolista brasileiro Dario Vellozo ). O que nossa academia pós-moderna não quer ver é que o esoterismo pode ter tanto tentáculos progressistas quanto os mais temerariamente conservadores. Se você não reconhece os progressistas, se você teima em manter o tabu de não falar dele, de não estudá-lo, o resultado é lógico: ele vai prosperar lá no outro lado.

Tudo isso para dizer que existe uma problemática nessa questão que está puramente atrelada a meros conflitos de influência política, em que os terrenos de saber e poder se digladiam e criam forças de atuação no reconhecimento de escritores modernos. Quando se fala levianamente de “cânone”, dever-se-ia pensar nessas relações de força mais específicas de sua configuração.

O abismo do niilismo

O outro lado da questão é o drama do sujeito diante da morte de Deus – o abismo do niilismo – que foi experimentado intensamente por todos esses nomes que citei aqui e que motivou idas e vindas de todos eles entre os três territórios que eu mencionei: cristianismo, ateísmo e esoterismo, e que, inclusive, deu margem a incursões em religiões orientais, hinduísmos e budismos, especialmente.

Não podemos desconsiderar o fato de que a política se tornou, estruturalmente, a verdadeira religião, com direito a fidelizações inabaláveis ou conversões extremas, demonizações do lado oposto, cismas, projetos messiânicos, e a maior prova disso é, justamente, como a importância da religião na política só tem crescido. Deveríamos pensar num outro fenômeno: escolas de pensamento dentro de formações profissionais, tanto na universidade como fora dela, contêm uma estrutura que tem suas modalidades de conversão, iniciação e sacerdócio secular. Certamente que elas convivem entre si, seja com discussões amigáveis, seja com formas de blindagem e tipificação recíprocas. Pessoas podem pertencer a uma, ou a duas escolas, ou áreas de conhecimento, ou de estudo (studies), podem criar espaços de mediação metodológica ou “interdisciplinar”, ou mesmo podem existir pessoas híbridas, “contemporâneas”, perdidas ou não, mas essas possibilidades de afrouxamento não diminuem seu poder de estabelecimento não só no plano mental, mas no âmbito de todo um modo de vida. Uma pode estar em baixa e diminuir sua influência e voz, outra pode estar em alta e obrigar todas a ser levada em consideração. Chegando a esse ponto, ela vai incidir em costumes, comportamentos, modos de existência.

Recentemente, no plano político, houve, para um grande número de pessoas, uma experiência radical de conversão ao feminismo, ou ao ativismo ecológico, ou ao veganismo, em que o mundo se revelou completamente diferente do que havia sido outrora. Essa capacidade de transformação profunda de subjetividades que movimentos políticos, intelectuais, ideológicos e culturais possuem molda a visão de mundo dos envolvidos. No elevado nível de promessa e potencial de autotransformação, escolas de pensamento laicas e ordens esotéricas não estão nada distantes umas das outras.

Os conservadores reagem religiosamente a um fenômeno que, de fato, não pode ser excluído do âmbito religioso, mesmo que advindo de um terreno tido como secular. O que geralmente é trabalhado no plano discursivo, em cursos, palestras, artigos e livros, tendo um projeto de expansão ideológica, depois pode chegar em notícias, memes, posts, vídeos, compartilhamentos e encaminhamentos de WhatsApp e Facebook. Vivemos hoje uma espécie de hiperpenetração de ideologias na vida virtual dos usuários. O nível de constância e intensidade de informação, advinda de diversas mídias e interatividades, pode compor um indivíduo tão preenchido por uma visão de mundo quanto o monge mais devoto e o ativista mais empenhado.

IHU On-Line – No Brasil de hoje, há espaço para a arte em meio a tantas crises? Por quê?
Eduardo Losso – Deve haver, não tem como não haver. Depende de nossa saúde mental, de nossa medida de sobrevivência, hoje, não ficar só dando importância a eternas discussões sobre política partidária, que geralmente nos tornam reféns de projetos de poder dos políticos e dos partidos, e destituem nossa própria autonomia e espaço de circulação enquanto produtores culturais, isto é, ofuscam a nossa política. O holofote constante na polarização apagou a cena artística de tal forma que geralmente as únicas manifestações culturais que se destacam são aquelas que se referem a ele. Isso já é um certo silenciamento da cultura, justamente na sua capacidade única de singularização de vozes. A espetacularização da guerra moral (que é chamada, ironicamente, de “cultural”) retira a atenção para outras dimensões do olhar. Trata-se de um dos efeitos da cultura do déficit de atenção, sobre a qual filosofa o grande teórico crítico Christoph Türcke , cujo último livro lançado no Brasil José Pedro Antunes traduziu e eu revisei: ela leva a um empobrecimento inédito da percepção, uma tremenda cegueira para sutilezas. Francisco Bosco , importante figura da política cultural de hoje, é um dos poucos pensadores conscientes desse problema.

Então, se artistas, críticos e produtores culturais de alto nível não param de trabalhar, devemos é dar espaço a eles, e não duvido que, junto com o árduo esforço de educadores, essa é a melhor coisa que podemos fazer para lidar com os terrores contemporâneos, por isso vou aqui citar alguns nomes. Thiago Amud acabou de lançar o CD O cinema que o sol não apaga. Junto com os dois outros, a obra de Amud tem se revelado como a melhor coisa que já ouvi da MPB nos últimos 30 anos, não é à toa que Caetano tem falado dele em quase toda entrevista que dá recentemente.

Ainda insisto no CD do Pedro Sá Moraes , Além do princípio do prazer, de 2013, que merece mais atenção do que teve. Tanto o CD de Amud quanto o do Pedro tiveram a inventiva produção de Ivo Senra. O trabalho de incursão na Amazônia profunda de Thiago de Mello , na voz da divina cantora Ilessi, também me entusiasma. O livro que organizei com Pedro Sá Moraes, Música chama, fala sobre essa produção.

Além da MPB

Já não sei se seria fora da MPB, mas de qualquer modo mais dentro do rock alternativo, as composições solos de ex-integrantes da histórica banda dos anos 90 de “rock regressivo”, Zumbi do Mato, refiro-me a Löis Lancaster e Marlos Salustiano, estão simplesmente no auge de sua criatividade e produtividade e revelam-se a fina flor do melhor que o rock brasileiro produziu em toda sua história, motivo pelo qual eu os considero, junto com Amud, os principais nomes de uma construtiva ousadia artística na música popular.

A banda Dos Cafundós foi, a meu ver, a grande revelação de 2012, mas, por ser um trabalho sofisticado demais para atrair um público mais extenso (é o que sempre lamento na vida…), um de seus integrantes, Pedro Carneiro , por vezes com o nome artístico “Vovô Bebê”, passou para o terreno da MPB e aí tem sido mais reconhecido, e nos últimos dias fez um quarteto com Amud, Sylvio Fraga e Luiza Brina, cujo show recente foi lindo de se ver, aliás, o trabalho poético, musical e cancional de Sylvio Fraga é especial. Nos últimos anos também se sobressaíram as belíssimas composições mineiras de Kristoff Silva, que recomendo expressamente. Gosto também de Rômulo Fróes e Bruno Cosentino .

Poesia

Poetas em atividade não faltam: merecem especial louvor os veteranos que sempre aparecem com grandes surpresas, como Afonso Henriques Neto, o verdadeiro mago surreal da geração marginal, que em breve vai lançar seu primeiro épico; a vida no estranho mundo natural de Leonardo Fróes e seu último livro, Trilha; a incansável e ininterrupta produção de Armando Freitas Filho ; impressionam também os últimos livros de Salgado Maranhão.

O trabalho crítico e poético de Alberto Pucheu , também intenso e numeroso, tem sido uma voz singular ao pensar sobre política a partir de seu desguarnecimento poético-filosófico. Também impressiona o nosso acadêmico Marco Lucchesi , um dos maiores pensadores e praticantes da contemporaneidade da mística na poesia hoje. Dessa geração, sempre acompanho Claudia Roquette Pinto , Carlito Azevedo e Eucanaã Ferraz ; vale destacar a extravagante poesia de Waldo Motta .

A mais incansável e ativa de todas as pessoas que conheço é Sergio Cohn e sua Azougue Editorial, cujo trabalho crítico é imprescindível, revigorador de um viés do pensamento poético pouco visível antes dele e do qual sinto fazer parte. Sua produção encantadora tenho estudado como o ponto de chegada daquilo que chamamos de tradição delirante na poesia brasileira, bem como o trabalho editorial e poético de Renato Rezende , sobre o qual já escrevi um livro. Da minha geração, também destaco a produção de André Luiz Pinto, Tarso de Melo , Rodrigo Petronio e Mariana Ianelli .

Agora cito novos poetas que têm me chamado atenção. Em primeiro lugar, uma explosão de mulheres, o que todos estão comemorando com razão: Ana Paula Simonaci, Danielle Magalhães, Gab Marcondes, Mariana Basílio e Bruna Mitrano; além delas, Nuno Rau, Rafael Zacca e o jovem monge Tito Leite, cujo livro Digitais do caos, me surpreendeu.

Na prosa, gosto especialmente dos romances de Marcia Tiburi e os contos de Evando Nascimento.

Por que não lembrar do meu recém-lançado livro, Sublime e violência. Ensaios sobre poesia brasileira contemporânea, em que reflito sobre todas essas questões e analiso a obra de alguns dos autores que citei?

IHU On-Line – Depois da experiência de 2013, o Brasil vive um avanço da extrema direita. Como o senhor vê esse atual cenário? O que ficou das resistências e dos sonhos de 2013?
Eduardo Losso – Acho que a esquerda (não somente o PT, a esquerda como um todo) deve fazer uma profunda autocrítica de todos os erros que levaram a dar de mão beijada a vitória a eles. A meu ver, ela se enganou gravemente em quatro aspectos: desprezo pela classe média, desprezo pela religião (dos setores mais culturais e intelectualizados), desconsideração pelas preocupações morais da população e fragmentação dos movimentos identitários.

Por tudo isso, eu poderia ficar aqui falando do pavor que todos sentem pela ascensão de um pensamento extremista e nada respeitado por todos os nossos critérios. Ao contrário, o que eu vou dizer é que precisamos ouvi-los. Nossas humanidades foram criando, ao longo do tempo, uma redoma em que só se lê mais ou menos as mesmas escolas, as mesmas tradições e vive-se sempre no mesmo espectro ideológico. Um Benjamin, um Adorno, um Foucault , um Leandro Konder , um Antonio Candido não tinham esse entrave: liam o outro lado, discutiam com muitas alteridades epistemológicas e sabiam, inclusive, apreciá-las.

Eu sou um ateu que fiz de todo o meu esforço intelectual um espaço de diálogo com estudiosos de religião, e sinto muita falta desse empenho no meu campo. Não é sem motivo que meu grupo de pesquisa seja de estudos interdisciplinares de mística, o Apophatiké, e que estejamos sempre publicando e produzindo eventos e discussões. Merece menção um deles, organizado por Marcus Reis Pinheiro e pela direção do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense - UFF, em que compus a mesa com Maria Clara Bingemer , e falamos sobre a fundamental relação entre cristianismo e universidade hoje.

Este ano houve eventos necessários e produtivos dentro dessa área: participei do VII Congresso ALALITE Rio 2018. Teopoética: Mística e Poesia, que foi organizado por Alex Villas Boas, Marcio Capelli e Maria Clara, na PUC-Rio; e de outro que destaco: Teopoética - Presenças do Sagrado na Literatura, no Sesc São Paulo, organizado por Leandro Garcia. Além desses amigos citados que admiro, o trabalho de mística comparada de Faustino Teixeira, que além do mais é um leitor voraz de poesia, confirma-se a meu ver como central.

Repensando questões morais

Acho que intelectuais de esquerda precisam repensar questões morais, precisam ler mais sobre religião, precisam parar de menosprezar a classe média e precisam parar de se subdividir, de se magoar uns aos outros e ter algum horizonte de união, para além das disputas partidárias. E quando digo união, é para expandir mesmo: com religiosos, evangélicos inclusive e, naturalmente, com a classe média que ridicularizam, enfim, é preciso reconhecer os progressistas de setores que podem não estar dentro dos tipos ideais que a esquerda passou a cultuar. Eles podem ser a ponte para se chegar à base perdida.

A maior parte do povo brasileiro se considera classe média, mesmo sendo classe C, então falar mal de classe média é um disparate, como já demonstrei em um artigo que teve alguma repercussão. A maior parte do povo brasileiro gosta de moral e religião. Se quiser sensibilizá-los, é preciso deixar que eles nos sensibilizem.

Mano Brown deu um recado a esse respeito, falta seguirmos a sua indicação. Enquanto isso não ocorrer, verei o retumbante fracasso como perfeitamente natural. Se a única esperança da esquerda se reduzir a aguardar o fracasso deles, fico com a sensação de que ninguém mais sabe aprender com as derrotas, isto é, que ninguém mais sabe aprender.

IHU On-Line – Como nutrir esperança através da arte, especialmente poesia e literatura, mobilizando um conhecimento de si mesmo? E como levar esse conhecimento individual à transformação coletiva?
Eduardo Losso – Eis a questão.■

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