Edição 530 | 16 Outubro 2018

A “hinduização” do cristianismo na experiência missioneira no Oriente

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João Vitor Santos

A historiadora Célia Tavares analisa as particularidades e consequências das ações dos jesuítas nas primeiras incursões na Índia e as influências dessas vivências na América

Pouco tempo depois de a Companhia de Jesus se constituir enquanto ordem religiosa, Francisco Xavier partiu no que seria uma das primeiras missões dos jesuítas. Seu destino foi o Oriente, inaugurando a presença da congregação no movimento ibérico de colonização. Entretanto, o que não se imaginava ainda no início dessa jornada é o quanto o cristianismo seria modificado pela ação das culturas locais. “É inegável que a cristianização foi uma inserção da cultura europeia na realidade indiana, especificamente na de Goa. Mas não se deve esquecer que as fronteiras entre as culturas são maleáveis e comportam trocas”, analisa a professora Célia Tavares. “Pode-se observar a “indianização” – ou “hinduização” – de algumas práticas religiosas dos grupos cristãos de Goa. É muito comum a prática de colocar colares de flores nas imagens de santos, especialmente de São Francisco Xavier, reproduzindo uma prática de tratamento dada a deuses hindus”, completa.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Célia também aborda as formas particulares com que os jesuítas conduzem a cristianização na Índia e como isso acaba gerando reações da própria Igreja. Segundo ela, houve um esforço de evangelização “que privilegiava os batismos em massa, colaborava para a frouxidão do conhecimento da doutrina e franqueava a possibilidade de se cometerem heresias”. Isso passou a não ser bem visto. “Sem dúvida houve colaborações entre a Inquisição de Goa e a Companhia de Jesus, mas com certeza muitos dos conflitos basearam-se numa divergência fundamental em relação à postura do que se entendia ser o ato de cristianizar”, avalia.

A pesquisadora ainda pontua que, embora inspire as missões na América, as obras de jesuítas no Oriente se dão noutro contexto, já que Portugal não tinha interesse em ocupar terras, e sim dominar as rotas comerciais. “Os portugueses nunca promoveram um real esforço de conquista de territórios que não aqueles que consolidariam suas posições. Pode-se dizer o mesmo em relação à cristianização, aliás, associada diretamente à expansão portuguesa”, explica. “Por mais missionários que se dirigissem para o Oriente, a tarefa era hercúlea e fadada a enfrentar enormes obstáculos”.

Célia Cristina da Silva Tavares é formada em História pela Universidade Federal Fluminense - UFF, desde a graduação, passando pelo mestrado e doutorado. Ainda realizou estágio pós-doutoral na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - FFP-UERJ e pesquisadora do Núcleo de Estudos Inquisitoriais, no Grupo de Pesquisa Companhia das Índias - Núcleo de História Ibérica e Colonial na Época Moderna. Entre suas publicações, destacamos Jesuítas e inquisidores em Goa (Lisboa: Roma Editora, 2004), Goa: a cidadela cristã no Oriente (Medellin: Historia y Sociedad, 1994) e Francisco Xavier e o Colégio de Goa (Em Aberto, v. 78).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senhora descreve as missões jesuíticas no Oriente? Quais os principais legados e quais foram seus limites?
Célia Tavares – A abrangência territorial e a longa duração das missões jesuíticas no Oriente são impressionantes, mesmo que se tenha em mente que também foram limitadas. Explico. Se recortarmos o período de 1542 a 1759, conseguimos contar um pouco mais do que mil jesuítas que foram para o Oriente sob o Padroado de Portugal . A despeito das enormes dificuldades que temos de contar o número de convertidos pelas missões destes padres, sabemos, com certeza, que este número sempre foi infinitamente menor que as populações que existiam em toda a Ásia. O tamanho de seu alcance, mesmo que impressione, deixou um legado muito limitado, se comparado com as crenças religiosas locais. Dizer isso não diminuiu a grandeza do esforço de “missionação” jesuíta, apenas reforça a ideia de que foi uma tarefa hercúlea.

Para Serge Gruzinski , as monarquias católicas ibéricas e seus domínios se transformaram no teatro de interações entre o cristianismo, o islã e as “idolatrias”, como eram designados os cultos existentes na América, África e as grandes religiões asiáticas. O esforço de cristianização, que pode ser entendido como “ocidentalização”, fez com que essas monarquias sustentassem pela primeira vez uma burocracia em escala planetária, cujos principais representantes foram a Companhia de Jesus e a Inquisição. Não obstante, os contatos entre as civilizações produziram uma realidade múltipla, com a mistura de elementos tradicionais das culturas envolvidas num “processo de mestiçagem”, como é definido pelo autor. Diante dessa realidade múltipla, o historiador tem de transformar-se numa espécie de “eletricista” – que Gruzinski e Sanjay Subrahmanyam chegam a enunciar sob a forma da expressão “eletricista-historiador” –, capaz de estabelecer as conexões geradas a partir dos contatos de civilizações, de culturas, as chamadas “histórias conectadas”. Um bom exemplo desse processo descrito por Gruzinski pode ser encontrado na experiência de cristianização ocorrida em Goa durante os séculos XVI e XVII.

Trocas culturais e religiosas

Geralmente destaca-se a originalidade da ocupação de Goa no conjunto da expansão portuguesa, na medida em que os colonizadores se utilizaram das práticas comerciais e da estrutura da vida rural goesas, embora tenham deixado marcas religiosas católicas muito evidentes nessa sociedade. É inegável que a cristianização foi uma inserção da cultura europeia na realidade indiana, especificamente na de Goa. Mas não se deve esquecer que as fronteiras entre as culturas são maleáveis e comportam trocas. Dessa forma, pode-se observar, em contrapartida, a “indianização” – ou “hinduização” – de algumas práticas religiosas dos grupos cristãos de Goa. É muito comum a prática de colocar colares de flores nas imagens de santos, especialmente de São Francisco Xavier , apóstolo das Índias, reproduzindo uma prática de tratamento dada a deuses hindus.

Por outro lado, símbolos externos da vida cristã podem ser vistos nas casas e aldeias da cidade e adjacências. Em Salcete, os jesuítas conseguiram, com o tempo, que os moradores substituíssem a planta sagrada usada como proteção – tulâss – que todo o hindu mantinha na entrada de sua casa, por uma roseira de Santa Catarina ou por um cruzeiro, tornando, assim, fácil a identificação das habitações dos cristãos locais, ao mesmo tempo em que se combatia uma manifestação de “gentilidade”.

Cristãos no Oriente

Outro aspecto comumente ressaltado para indicar o enraizamento da cristianização de Goa é o número de cristãos existentes na região. É verdade que nos séculos XVI e XVII esse número foi sempre crescente, ao basear-se especialmente nas fontes jesuíticas, mas o século XIX oferece um quadro distinto, mesmo que se considerem as diferenças territoriais, uma vez que desde meados do século XVIII os portugueses haviam acrescentado ao território de Goa as terras das Novas Conquistas, cujas populações não sofreram o mesmo esforço evangelizador dos séculos anteriores. Considera-se que o primeiro censo confiável realizado em Goa é o de 1881, quando foi detectado que 58% da população era de cristãos e 42% de hindus. Em 1950, ainda sob o domínio português, outra estatística demonstrou que a população hindu era majoritária, com o índice de 55% dos habitantes, enquanto os cristãos constituíam-se em 42%.

No entanto, mesmo havendo uma tendência demográfica de diminuição de cristãos, esse último censo indicava uma predominância da população cristã na região das Velhas Conquistas, nomeadamente em Salcete, com o índice de 79%. Em 1981, vinte anos após a independência de Goa, as estatísticas indicavam um maior número de hindus, com índice ainda superior ao de 1950, 64%, contra um significativo declínio dos habitantes cristãos, 31%. Não há a informação nesse caso do índice de cristãos nas Velhas Conquistas, mas mesmo esses indicadores gerais revelam uma tendência de diminuição desse número, o que comumente é explicado por uma estagnação do crescimento dessa população derivada, principalmente, de uma dramática migração de goeses cristãos para outras regiões da Índia e do mundo.

IHU On-Line – De que forma a experiência de Francisco Xavier vai “forjando” a ideia, o conceito de missão para a Companhia de Jesus?
Célia Tavares – Basta notar o pequeno lapso de tempo entre a fundação da Companhia de Jesus e a chegada de Xavier em Goa – são dois anos. Mesmo se pensarmos em período mais elástico, desde a formação do núcleo fundador da Companhia de Jesus em torno de Loyola , não chega a um período de 10 anos. Portanto, a experiência de Xavier no Oriente foi elemento fundamental para se forjar o conceito de missão inaciano, mesmo que já possuísse algumas diretrizes gerais. Gosto de exemplificar este raciocínio contando sobre a hesitação que Xavier teve em relação a assumir a direção de um Seminário que estava sendo fundado em Goa, à época de sua chegada.

IHU On-Line – Ainda a partir da experiência de Francisco Xavier, no que a missão da então recém-fundada Companhia de Jesus se distingue das demais ações de religiosos que já vinham sendo desenvolvidas no Oriente?
Célia Tavares – Há, atualmente, uma forte polêmica nos meios acadêmicos em torno desta questão. Há cada vez mais trabalhos de historiadores indicando que outras ordens religiosas já faziam procedimentos que depois serão imputados à Companhia de Jesus, especialmente os franciscanos que estavam presentes desde a chegada dos portugueses à Índia. Apesar de concordar com esta visão, creio que não se pode negar que a capacidade organizadora dos jesuítas, especialmente por sua dedicação e disciplina de manter uma intensa correspondência entre as suas missões, criou uma marca muito exclusiva na ação da ordem.

A Companhia de Jesus foi uma das ordens que mais esforços envidou para a missionação. É verdade que não agiu de maneira uniforme como costumeiramente são apresentadas as ações dos jesuítas. No meu estudo de doutoramento foi possível notar que havia modelos diferenciados nos métodos de conversão das populações indianas, causa inclusive de graves embates entre grupos de inacianos. É interessante perceber que, onde a presença portuguesa não era efetiva, a abordagem dos jesuítas tendia mais a um modelo de “orientalização”, a partir do último quartel do século XVI. Nas regiões onde havia o respaldo das autoridades portuguesas houve maior tendência à “ocidentalização”, mesmo que houvesse níveis de flexibilização junto às populações locais; a contraposição dos métodos de conversão utilizados em Salcete e no Maduré comprova essa afirmação.

IHU On-Line – Podemos afirmar que as primeiras missões jesuíticas no Oriente inspiraram as ações da Companhia na América? Por quê?
Célia Tavares – Mais uma vez, a dedicação em promover uma constante circulação de informações através das cartas fez com que as experiências fossem partilhadas e, mesmo diante de etnias tão diferentes em termos culturais, algumas práticas foram repetidas. Por exemplo, a preocupação com a confecção de catecismos nas línguas locais; a preocupação com o aprendizado dessas mesmas línguas; coisas assim distinguem o esforço dos jesuítas nas "quatro partes do mundo", expressão usada no título de interessante livro de Serge Gruzinski .

Quando se compara o processo de cristianização de Goa com o da América hispânica, especialmente nas regiões onde existiam sociedades organizadas de maneira mais complexa, como eram os casos das civilizações asteca e inca, nota-se que os resultados, tanto do ponto de vista quantitativo como no de enraizamento do cristianismo, são muito diferentes. No caso americano, a cristianização difundiu-se de forma generalizada. Não se está aqui avaliando a mecânica do processo, se há assimilação, aculturação, ou inculturação. Apenas destaco que, nos dias atuais, os países que pertenceram ao domínio espanhol têm na fé católica um elemento de identidade cultural inquestionável. Na América portuguesa e em outras regiões dos domínios americanos pertencentes à Espanha, de maneira diferente, a cristianização também se consolidou, mas graças à própria lógica de colonização, que se baseou na ocupação do território onde viviam esparsas populações indígenas.

Ao referir-se aos contatos entre as civilizações e culturas menos complexas, usando o Brasil como exemplo, Braudel afirma que: “o português aparece e o índio primitivo retrai-se, cede o seu lugar”. No caso do Oriente, especificamente no de Goa, a realidade era muito diferente, ou, “tudo se complica e a toada já não é a mesma quando o avanço não é feito sobre o vazio”. Não só as densidades demográficas eram infinitamente maiores na Índia, como se tratava de civilizações muito antigas e profundamente enraizadas. O hinduísmo, como um conjunto de concepções e práticas religiosas que pautavam a vida dos indianos, possuía um complexo sistema de castas que ditava uma organização da sociedade em termos de grupos, e toda sua lógica reforça a totalidade social em detrimento do interesse individual.

Trata-se, portanto, de uma poderosa barreira que dificultava a aproximação das culturas que a expansão portuguesa proporcionava. Na América espanhola, especificamente nas regiões das civilizações asteca e inca, também havia dificuldades de superar as altas densidades populacionais, apesar dos recursos técnicos de defesa serem mais frágeis no caso americano do que no do Oriente. Os esforços de cristianização feitos pelos espanhóis nos seus domínios na América, por outro lado, foram formidáveis. No plano institucional numerosas ordens religiosas instalaram-se desde o início da ocupação territorial, universidades, bispados e arcebispados em toda parte, três tribunais do Santo Ofício em pontos estratégicos do império, todas essas iniciativas serviram para formar uma forte estrutura com o propósito de desenvolver a evangelização.

Conquista espiritual

Campanhas como “conquista espiritual” e “extirpação de idolatrias” foram modos essenciais da presença espanhola na América, sobretudo nos dois primeiros séculos. Mas tudo isso só se tornou possível, evidentemente, em razão de ter ocorrido uma efetiva conquista territorial, militar e política do mundo indoamericano. Partindo do exemplo espanhol e para além das características da sociedade hindu já ressaltadas, deve-se buscar na própria estrutura do Estado da Índia explicações sobre os limites da cristianização que ali teve lugar.

O Império português no Oriente estava montado como uma rede e tinha como principal ambição o controle da circulação de mercadorias. Os portugueses nunca promoveram um real esforço de conquista de territórios que não aqueles que consolidariam suas posições. A tarefa provavelmente estaria além das capacidades da Coroa portuguesa. Pode-se dizer o mesmo em relação à cristianização, aliás, associada diretamente à expansão portuguesa. Por mais missionários que se dirigissem para o Oriente, fossem jesuítas, franciscanos, agostinianos, dominicanos ou religiosos da Propaganda Fide , a tarefa era hercúlea e fadada a enfrentar enormes obstáculos, que se não eram totalmente intransponíveis, mesmo depois de ultrapassados, alcançavam resultados modestos.

IHU On-Line – Como se deu o processo de cristianização no Oriente e em que medida esse processo foi capaz de promover a enculturação da fé, sem dizimar a cultura originária?
Célia Tavares – Não costumo usar o conceito de enculturação. Dou preferência para o conceito de mediação cultural. A cristianização no Oriente foi um processo extremamente complexo e nunca conseguiu se impor completamente. Ao contrário do que aconteceu na América Portuguesa, o confront0 entre culturas não resultou em sufocamento das culturas originárias. É importante notar que o processo de cristianização no Oriente, na época moderna, ou na primeira modernidade, como queria chamar, foi sempre pontual e residual diante das manifestações locais. Gosto de usar a imagem de uma cristandade sitiada, muito associada ao esforço de colonização europeu.

IHU On-Line – Que transformações o catolicismo sofreu a partir da experiência de jesuítas em Goa? Gostaria que a senhora destacasse, também, as particularidades do Tribunal da Inquisição no Oriente.
Célia Tavares – O conceito de mediação cultural também é bem útil para pensar esse tipo de movimento. Muitas práticas católicas sofreram alterações. Um bom exemplo pode ser dado pela suspensão do uso da saliva no batismo, pois causava grande repugnância entre os hindus. Mas essas adaptações não devem ser entendidas como “transformações”. No difícil processo de mediação cultural que muitos jesuítas tentaram promover no Oriente, muitas vezes houve flexibilização de ritos e práticas que foram entendidos como ameaças à ortodoxia da fé católica e foi neste ponto que o Tribunal da Inquisição no Oriente se desenvolveu.

É importante entender que a cristianização não estava apenas a cargo dos jesuítas ou de outras ordens religiosas. A Inquisição também desempenhava seu papel nessa ação. Como tribunal que julgava as questões de fé, mas atrelado à Coroa portuguesa, o Tribunal do Santo Ofício de Goa tornou-se o mais poderoso instrumento no processo de “ocidentalização” da sociedade goesa. O esforço foi grande, a tal ponto que promoveu a alteração do alvo tradicional desse tribunal: a perseguição aos cristãos-novos.

A partir dos finais do século XVI a preocupação com as gentilidades ocupou o centro das atenções dos inquisidores. Mesmo com a recorrente recomendação de brandura em relação aos neófitos, a própria natureza das conversões feitas em Goa servia de material quase inesgotável para a ação persecutória inquisitorial. Nesse aspecto, chega-se a uma importante contradição: o enorme esforço de evangelização feito principalmente pelos jesuítas, que privilegiava os batismos em massa, colaborava para a frouxidão do conhecimento da doutrina e franqueava a possibilidade de se cometerem heresias, retroalimentando o próprio alvo da Inquisição oriental.

Além disso, os batismos em massa eram interessantes também pelas próprias características do sistema de castas, pois a conversão em grupo facilitava a inserção social desses novos cristãos, que assim perpetuavam um elemento fundamental da cultura hindu, constituindo-se em forte elemento de “indianização” ou “hinduização” do catolicismo. Sem dúvida houve colaborações entre a Inquisição de Goa e a Companhia de Jesus, mas com certeza muitos dos conflitos basearam-se numa divergência fundamental em relação à postura do que se entendia ser o ato de cristianizar.

Particularidades da inquisição oriental

Mesmo com variações, pode-se dizer que, de maneira geral, os jesuítas tendiam a uma postura de flexibilização de determinadas práticas culturais, desde que elas fossem consideradas apenas manifestações exteriores de identidade política ou social, o que era aceitável dentro do espírito de adaptação paulina. Em contrapartida, os inquisidores pautavam-se pela ortodoxia, e mesmo que tenham ficado perplexos diante da complexa realidade indiana, logo procuraram os padrões usuais de perseguição e de ação na conduta social dos indianos cristãos recém-convertidos.

Essa tarefa mostrou-se também extraordinária, pois num mundo onde as fronteiras eram extremamente flexíveis, maleáveis, porosas, aumentar-se a pressão poderia resultar em esforço perdido, como fica evidente quando se constata a migração de goeses para outras regiões da Índia, fugindo da legislação feita pelos vice-reis ou do aumento da atuação da Inquisição de Goa, o que ameaçava seus interesses e seu estilo de vida. Deve-se ainda aqui dimensionar melhor a atuação do Tribunal goês. Há a necessidade de fazer-se um ajuste no olhar sobre sua ação, a modo de evitar a tradição de “lenda negra” que a envolve.

Não há como negar que foi o tribunal de fé mais ativo dos que existiram na Coroa portuguesa. Mas com certeza era também a realidade mais complexa com a qual um tribunal da Inquisição já se havia confrontado, o que pode ser verificado no número de processados registrados. Mas é importante notar que os níveis percentuais dos relaxados ao braço secular não fugiam das médias históricas dos tribunais inquisitoriais lusitanos, até onde foi possível constatar a partir dos dados fragmentários que sobreviveram à destruição da documentação do tribunal goês.

IHU On-Line – Atualmente, a senhora tem trabalhado com escritos de jesuítas no Oriente e na América. O que as primeiras cartas de jesuítas que chegam à Índia revelam? A partir desses relatos, o que podemos inferir acerca da visão sobre o outro, de uma cultura e um mundo diferente do seu?
Célia Tavares – Era comum que os jesuítas, depois de passarem longo tempo em viagem – em geral, de Lisboa a Goa, podia demorar seis meses ou mais –, escreviam uma carta ou para seus irmãos ou superiores que ficaram na Europa. O mais interessante nesses relatos é o choque que os jesuítas sofriam com as cores, os cheiros e o barulho da importante cidade de Goa. A variedade cultural era muito destacada nessas cartas, para além da força da própria natureza.

IHU On-Line – E sobre as cartas dos primeiros jesuítas na América, o que mais chama atenção?
Célia Tavares – De uma maneira geral, o deslumbramento era muito semelhante, especialmente com aspectos naturais.

IHU On-Line – A experiência dos jesuítas no Oriente e no Novo Mundo foram cruciais para as ações de um catolicismo que adentrava na Modernidade. Hoje, como compreender o papel geopolítico da Igreja na Pós-Modernidade? E como a Companhia de Jesus e suas missões se inserem nesse contexto?
Célia Tavares – Atualmente, muitos historiadores estão trabalhando o conceito de “primeira globalização” para explicar a expansão marítima europeia e, a partir deste raciocínio, pensam a Companhia de Jesus como uma “empresa globalizada”, ou como a principal integrante de um “conglomerado globalizado” que seria a Igreja Católica. Utilizar estes conceitos aproxima reflexões sobre as questões da Pós-Modernidade e traça um importante quadro para se pensar a Mundialização. É uma tendência muito atual da historiografia.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Célia Tavares – Apenas destacar que a marca da cristianização de Goa está no seu caráter insular, confinado, posto sob cerco, pois em torno da cidadela cristã, capital do Estado da Índia, da considerada Roma do Oriente, existiam multidões que não compartilhavam a fé católica com os portugueses, e que por isso eram consideradas inimigas e uma ameaça à cristandade. Mas essa ilha de cristãos em que Goa havia se transformado também convivia, dentro de suas defesas, com a presença desse universo de diferenças religiosas que promovia contraditoriamente a orientalização dos cristãos que viviam na cidade.

As fronteiras existiam nos limites físicos do domínio português na Índia, mas também havia fronteiras dentro da cidade de Goa e, por suas características intercambiáveis, foi possível promover uma rica circulação de padrões culturais nesse espaço. Portanto, a originalidade da cristianização de Goa repousa em três elementos que se antagonizaram, mas que também promoveram uma síntese singular: a ocidentalização dos hindus, a orientalização ou indianização dos portugueses e a insularidade do catolicismo goês, finisterra da cristandade lusitana.■

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