Edição 530 | 16 Outubro 2018

“Os outros” que se tocam na experiência de missão

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João Vitor Santos

Guilherme Felippe observa as transformações que ocorrem a partir do momento da colonização, que coloca duas culturas distintas frente a frente

As ações da Companhia de Jesus nas missões estão entre as muitas experiências de aproximação de europeus, costumeiramente vistos no papel de colonizadores, com indígenas, quase sempre vistos como os colonizados. Entretanto, o historiador Guilherme Galhegos Felippe chama atenção para a virada dessas lógicas. “A primeira coisa que me vem à mente é que o outro são sempre dois. Há o índio imaginado, construído e registrado pelos padres que estão em missão, assim como há o missionário que é observado, interpretado e incorporado pelos indígenas”, observa. Por essa lógica, é possível acreditar que há, sim, imposição de um sobre o outro, mas também há transformações a partir desses contatos. “Não é raro, desde os registros do padre Antônio Ruiz de Montoya, de 1639, encontrar relatos de indígenas praticando ‘desbatismos’ ou batismos ao seu modo, sem a supervisão dos padres. A historiografia não pode mais ignorar que, assim como havia os índios do Montoya, que foram observados e descritos por ele, havia o Montoya dos índios”, acrescenta.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Felippe detalha os desafios de conceber uma outra historiografia que não tome o índio só como vítima, mas como protagonista de um momento de transformações. “Deve sempre estar em alerta para não se ver encerrada em uma narrativa que acabe contribuindo para um discurso mea culpa, como ocorreu em meados do século passado, com toda uma enxurrada de estudos mais preocupados em vitimizar os indígenas e cobrar de um passado europeu imperialista a ‘derrocada cultural’ dos índios”, aponta. Isso porque, seja pela imagem de vítima que se tem por causa dos extermínios de índios, seja pela visão de que eles aceitaram a conquista europeia, se retira dessas populações a possibilidade de participarem da História. “As pessoas em geral notam muito mais as mudanças que ocorrem nos outros do que em si – e se estendermos esta visão para a história, que se depara com populações indígenas aderindo ao uso de armas de fogo, à escrita ou, mais recentemente, às tecnologias como a antena parabólica ou o celular, as transformações parecem muito maiores do que são”, pontua, ao indicar que não se olha como se dá a mudança do outro lado. Para o pesquisador, “pensar em um protagonismo indígena hoje em dia é ter que superar estas visões”. Afinal, isso vai impactar na própria relação que estabelecemos hoje com todas as populações indígenas, com o seu passado e com o nosso também.

Guilherme Galhegos Felippe possui graduação em licenciatura e mestrado em História, ambos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e doutorado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. Seu foco de pesquisa é História e Etno-história indígena. Atualmente, cumpre estágio de Pós-Doutorado (PNPD/Capes) na PUCRS. Entre suas publicações mais recentes, destacamos o livro, do qual é um dos organizadores, Debates sobre a questão indígena (Porto Alegre: Edipucrs, 2018).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios para a constituição da história indígena hoje?
Guilherme Galhegos Felippe – Se estivermos falando da produção intelectual que pensa as relações dos (e com os) indígenas no passado, acredito que os desafios giram em torno de fazer, ensinar e divulgar uma história que não os exclua ou que reproduza preconceitos e ignorância. Pode parecer contraditório pontuar que as adversidades de uma história indígena sejam anular o indígena de sua narrativa, mas infelizmente não é. Mesmo a produção acadêmica, que se alça como autoridade no que diz respeito ao pensar e refletir sob o rigorismo do método científico, deve sempre estar em alerta para não se ver encerrada em uma narrativa que acabe contribuindo para um discurso mea culpa, como ocorreu em meados do século passado (e que ainda reverbera), com toda uma enxurrada de estudos mais preocupados em vitimizar os indígenas e cobrar de um passado europeu imperialista a “derrocada cultural” dos índios.

E se formos tratar sobre a história indígena que é exportada para o currículo escolar, a situação se torna mais preocupante. Como em todas as matérias, há uma defasagem entre o que se produz nas universidades e o que se ensina aos alunos nas escolas. Mas, no que diz respeito ao conhecimento sobre populações nativas, a defasagem vem acompanhada de muita ignorância. E não é preciosismo acadêmico, como se eu achasse que os alunos devessem ler os mesmos artigos e livros que circulam no meio científico. A questão aqui é a reprodução do senso comum dentro das escolas, na formação dos estudantes, que chegarão à vida adulta com a imagem de que o índio é um ser que vive no passado e cuja sobrevivência depende de manter-se neste passado.

Infelizmente, o que se ensina nas escolas ainda está muito atrelado a um evolucionismo do século XIX que, ironicamente, anda de mãos dadas com um relativismo cultural, em que “eles”, os “não civilizados”, são uns pobres coitados que ou devem ser protegidos e tutelados por nós, ou eliminados do plano de progresso nacional. Qualquer uma dessas visões geralmente resulta em políticas públicas inadequadas ou em hostilidades.

IHU On-Line – Quais as distinções entre História e Etno-história indígena?
Guilherme Galhegos Felippe – Parece-me que a diferença entre elas está tanto no objetivo que o estudo quer alcançar, como na metodologia pretendida. Se formos para o campo político, da ação, acredito que ambas possam ser instrumentos importantes – mas, de novo, cada uma à sua forma. Levando ao pé da letra, História indígena é a disciplina que investiga, por meio das evidências documentais produzidas no passado, as relações estabelecidas entre os grupos indígenas e as sociedades envolventes. Como estas evidências geralmente são produzidas pelos não indígenas, esta é uma história que necessita de aportes teóricos de suas vizinhas, como a Antropologia. De qualquer forma, o seu objetivo me parece muito claro: compreender um contexto, seja em micro ou macroanálise, que explica um conjunto de situações envolvendo grupos ou indivíduos indígenas que tenham atuado como mediadores ou protagonistas.

Já a Etno-história indígena, por ter a Etnologia em seu DNA, permite ao pesquisador uma abrangência temporal que não se restringe ao passado, possibilitando o estudo de grupos indígenas contemporâneos. Talvez mais como um método do que como uma disciplina em si, a Etno-história permite que os dados coletados em trabalho de campo sejam analisados juntamente com os dados fornecidos pela pesquisa em arquivos.

Não há uma hierarquia preestabelecida aqui, como se os dados dos etnógrafos fossem mais confiáveis ou que as informações documentais fossem mais valiosas: tudo depende da formação do pesquisador. Se eu sou um historiador de formação e carreira, é claro que terei mais experiência com o trato da documentação dos arquivos e darei mais atenção às evidências históricas. Mas isto não impede que a Etno-história seja uma rica contribuição aos estudos que se proponham a investigar largas temporalidades ou alterações, adaptações, ressignificações e restruturações das relações culturais de um povo.

IHU On-Line – É recorrente a afirmação de que os colonizadores, seja pela ação da espada ou da cruz, destituíram e transformaram a cultura de povos originários, transformando a forma de vida indígena. Você concorda com essa afirmação? A transformação se deu realmente só de um lado?
Guilherme Galhegos Felippe – Concordo na parte da transformação. Todo contato, principalmente que se deu ou dá de forma intensa e duradoura, altera aspectos substanciais não só da vida das populações em jogo, como também provoca mudanças no que diz respeito à ontologia destas sociedades. Se a língua de uma população, sejam os espanhóis do período da conquista ou os Guarani das reduções jesuíticas, passa a ter que adaptar novos termos e ajustar conceitos devido ao contato e convívio com o outro, é porque muitas coisas anteriores a isto já se alteraram para que o conjunto das pessoas que formam determinado grupo possam continuar entendendo-se.

Sendo assim, as transformações que ocorreram não se restringiram apenas à cultura ou costumes dos índios. Mas é inegável que estas mudanças ganharam mais atenção não só da historiografia, como do próprio imaginário popular. Seja devido à imagem vitimizadora que se construiu sobre os nativos terem sido exterminados, destruídos, massacrados e aculturados pelos invasores, seja pela também rasteira visão de que os índios se deixaram absorver pela conquista e colonização, o resultado é o mesmo: os índios deixaram de ser índios em algum momento da história. As pessoas em geral notam muito mais as mudanças que ocorrem nos outros do que em si – e se estendermos esta visão para a história, que se depara com populações indígenas aderindo ao uso de armas de fogo, à escrita ou, mais recentemente, às tecnologias como a antena parabólica ou o celular, as transformações parecem muito maiores do que são.

IHU On-Line – O que a experiência de missão jesuítica incita a pensar acerca do contato com o outro?
Guilherme Galhegos Felippe – A primeira coisa que me vem à mente é que o outro, nesta sua pergunta, são sempre dois. Há o índio imaginado, construído e registrado pelos padres que estão em missão, assim como há o missionário que é observado, interpretado e incorporado (como aliado ou inimigo, mas incorporado) pelos indígenas. Parece-me que esta é a lição mais básica que se deveria ter para começar a pensar historicamente a experiência missionária seja onde for.

E mesmo que apenas um dos lados tenha podido registrar massivamente esta experiência, como mais ou menos foi o caso das missões jesuíticas em toda a América colonial, a escrita nunca é a expressão da observação omissa, ela sempre se envolve de alguma forma, em algum grau. E isto, ao contrário de ser um problema, é justamente o que deixa tudo mais interessante: o pesquisador pode investigar estes momentos em que a escrita jesuítica deixa aparecer os resíduos da perturbação que o contato provocou no autor do relato.

É o que eu e o professor e pesquisador argentino Carlos Paz estamos desenvolvendo com o nome de escrita afetada, ao observarmos que muitos jesuítas, principalmente em seus relatos pós-Expulsão da Companhia de Jesus, produzidos em situação de exílio, permitiram-se registrar com menos amarras as experiências que tiveram com os nativos, inclusive, dando-lhes razão em algumas situações que, nos relatos do início do processo reducional no século XVII, eram completamente diferentes.

IHU On-Line – Qual sua leitura sobre os conflitos entre europeus e indígenas, especialmente nas regiões de fronteira, na América Colonial? O que, de fato, estava em disputa?
Guilherme Galhegos Felippe – Em se tratando de fronteiras, esse era um conflito que só fazia sentido para os europeus. Os índios, me parece, não estavam nem um pouco preocupados em assegurar delimitações entre uma região e outra, nem dispostos a lutar por espaços que foram pensados e organizados pelos conquistadores e colonizadores. Se estiveram envolvidos nestes conflitos, não foi por um interesse político como desejavam os europeus, nem pelo objetivo da posse da terra em termos como propunha a diplomacia moderna.

Para os europeus, a disputa ocorria por motivos já bem conhecidos, como questões políticas, econômicas, diplomáticas... Geralmente, problemas de poder. De qualquer forma, dava-se muita importância ao estar lá, ter a posse da terra era fazer-se presente nela e, por isso, manter gente nas fronteiras era fundamental. E aí entravam os índios. Muitas reduções, principalmente no lado espanhol, guarneciam esses limites territoriais e a história da Colônia do Sacramento ou a Guerra Guaranítica (1753-1756) são exemplos do envolvimento que os índios tiveram com estes imbróglios das fronteiras coloniais.

IHU On-Line – Quais transformações o contato entre jesuítas e indígenas legou ao cristianismo? Especialmente, como os sacramentos e a própria concepção de pecado se modificam nessa sobreposição de culturas?
Guilherme Galhegos Felippe – No contexto do contato e do convívio entre os índios e os jesuítas nas reduções, muito da liturgia, dos usos de termos e conceitos e de práticas sacramentais que estavam consolidadas pela experiência na Europa e aprovadas pelo Concílio de Trento ocorrido em meados do século XVI tiveram que sofrer mudanças. Quando colocados em prática, os sacramentos, por exemplo, tiveram de ser administrados a toda uma população que não só desconhecia a essência deste tipo de intervenção, como apropriava-se deles para os seus próprios interesses e fins.

Não é raro, desde os registros do padre Antônio Ruiz de Montoya , de 1639, encontrar relatos de indígenas praticando “desbatismos” ou batismos ao seu modo, sem a supervisão dos padres. A historiografia não pode mais ignorar que, assim como havia os índios do Montoya, que foram observados e descritos por ele, havia o Montoya dos índios – que, infelizmente, não sobreviveu em registros, mas que talvez possa ser percebido nos próprios registros do Montoya. Parece confuso, mas é só observar como confissões, batismos, extrema-unções, missas e os textos de catequese tiveram que se adaptar quando postos em prática entre os índios.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre a inabilidade de reconhecer o passado de povos originários e as resistências a demarcações de terras indígenas hoje?
Guilherme Galhegos Felippe – Na nossa sociedade, dá-se muita importância para a posse efetiva da propriedade. Se você tem uma terra e pode provar com documentos que ela é sua, o Estado irá garantir o seu direito à propriedade. É um sistema que funciona muito bem, pois garante o uso do direito e das leis para assegurar que nada de errado aconteça. Mas falha quando envolvemos os povos originários. O sentido de posse e propriedade passa a ter um caráter quase abstrato, pois depende do consentimento de todas as partes para que se regularizem terras e se permita o uso delas pelas populações que, historicamente, estavam lá antes de qualquer não indígena chegar.

Daí que, pela Constituição de 1988, as Terras Indígenas são, antes de qualquer coisa, propriedade da União, que dá aos povos indígenas a permissão para as habitar e utilizar para suas atividades. Esta foi uma forma de tentar encontrada pelo Estado para sanar um problema de dívida histórica com os povos originários tentando diminuir ao máximo possível conflitos com proprietários de terra ou a sociedade envolvente. Mas sabemos que não diminui.

Os conflitos giram em torno da lentidão nas demarcações e homologação das Terras, da não aceitação, por parte de produtores rurais, de que a expansão do desmatamento para soja ou gado tem como limitadores as reservas indígenas e esta inabilidade em reconhecer os índios como habitantes primevos deste território.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios para o reconhecimento do protagonismo indígena hoje?
Guilherme Galhegos Felippe – Certamente são desafios relacionados à péssima educação formal oferecida nas escolas e à grande quantidade de informações falsas ou tendenciosas que circulam rapidamente, pois fazem eco a uma visão preconceituosa e discriminatória que está entranhada no senso comum. E por isso é mais fácil vender notícias sensacionalistas ou ensinar conteúdos desatualizados, pois infelizmente este tipo de informação tem fácil aceitação por uma opinião pública que desde sempre viu os povos originários como atrasados ou empecilhos ao desenvolvimento.

Por consequência, indígenas só aparecem nas manchetes dos jornais, em reportagens na TV, em tema de músicas ou em alegorias de escolas de samba representando o que há de mais atrasado e estagnado no país – ou tomados por um caráter romantizado e irreal como se o seu estar na modernidade fosse um erro anacrônico. Pensar em um protagonismo indígena hoje em dia é ter que superar estas visões, porque a representatividade indígena em iniciativas políticas, ações governamentais ou posicionamento social é completamente ineficiente ou nula – e não por um desinteresse deles, que cada vez mais estão fazendo cursos superiores para, depois de formados, voltarem às suas aldeias e poderem atuar como advogados, agentes da saúde, professores... É um problema quase que exclusivamente nosso, de um preconceito “congênito” da nossa sociedade, que nunca vai admitir representantes indígenas em altos cargos políticos, por exemplo.■

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