Edição 529 | 01 Outubro 2018

Filosofia de Nietzsche influenciou muitas gerações de intelectuais brasileiros

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Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi

Luís Rubira destaca que ideias do filósofo alemão cedo despertaram interesse no país, já no início do século 20, marcando a produção intelectual anarquista

O professor Luís Rubira, ao tratar das considerações da Segunda Dissertação de Nietzsche, destaca que o esquecimento é uma “força ativa”, uma “forma de saúde forte”, e “que o esquecimento era o elemento que o permitia estar inteiramente no presente, no instante”. No entanto, “para viver em comunidade, desenvolveu-se uma força contrária, a da memória”.

Para exemplificar esta questão, Rubira cita os “eventos traumáticos que ocorrem com uma determinada pessoa (dor, luto, morte etc.): a lembrança permanente do evento faz com que se reviva o acontecimento. Só o esquecimento é capaz de restituir o presente, e com isto a possibilidade do novo, da alegria de viver”.

Ao aproximar o filósofo alemão a Michel Foucault, afirmar que, sem a existência da Genealogia, não haveria o desenvolvimento de Vigiar e Punir: “As obras, portanto, interligam-se, mas suas perspectivas de interpretação dos acontecimentos possuem, cada qual, sua própria singularidade”.

Rubira integra o Grupo de Estudos Nietzsche, que atua no desenvolvimento de pesquisas, publicações e eventos acerca do pensamento do filósofo alemão. Ao tratar da recepção do pensamento de Nietzsche no Brasil, lembra que Scarlett Marton, no final de seu livro Das forças cósmicas aos valores humanos, de 1990, destacou que as ideias do filósofo alemão cedo despertaram interesse no Brasil, já no início do século 20, marcando a produção intelectual anarquista.

Entre 1935 e 1945, “vários intelectuais europeus haviam saído em defesa do filósofo, de modo a desvincular seu pensamento do nazismo e do fascismo. E no Brasil, quando Nietzsche chegava ao auge da difamação, Antonio Candido tomou sua defesa. “É uma área de pesquisa que ainda dará muitos frutos e que mostra, sobretudo, a forte influência da filosofia de Nietzsche tanto em nossa cultura quanto entre muitas gerações de intelectuais brasileiros”, avalia Rubira.

Luís Rubira é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel, mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral em Filosofia pela Université de Reims Champagne-Ardenne. É professor da UFPel, membro do Grupo de Estudos Nietzsche - GEN e do Groupe international de recherches sur Nietzsche - GIRN.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se entrelaçam consciência, moral e dor em Genealogia da Moral?
Luís Rubira – Antes de responder a complexa questão, gostaria de aportar alguns elementos introdutórios. Comecemos por um comentário que o filósofo faz de Para a genealogia da moral (Zur Genealogie der Moral) um ano depois de publicá-la. Ao enviar uma carta para a amiga Meta von Salis no dia 22 de agosto de 1888 (ou seja, na véspera de abandonar o projeto da obra A vontade de potência e inaugurar a tarefa da Transvaloração, cujo “primeiro livro”, O Anticristo [Companhia das Letras, 2016], seria redigido durante o mês de setembro de 1888), Nietzsche observa que com sua Genealogia (Companhia das Letras, 1998) abordou “Problemas extremamente difíceis para os quais ainda não havia uma linguagem, uma terminologia”. Um destes problemas diz respeito ao modo como surgiu no animal-homem (Menschen-Thiere) a consciência. Como defenderá de modo sintético na obra que concluirá em novembro de 1888: “A consciência não é como se crê, ‘a voz de Deus no homem’ – é o instinto de crueldade que se volta para trás, quando já não pode se descarregar para fora” (Ecce Homo, “Para a Genealogia da Moral”). Esta tese sustenta-se no fato de que na segunda dissertação da Genealogia, Nietzsche retoma reflexões que já fizera alguns anos antes nas seções 9, 14 e 16 de Aurora sobre a moralidade do costume (Sittlichkeit der Sitte) e dá a elas um novo desenvolvimento e uma maior explicitação com base em seu conceito de vontade de potência. Como sabemos, no momento em que redige a Genealogia ele já pensa a vontade de potência a partir de sua teoria das forças: sendo assim, tanto no domínio orgânico, quanto no inorgânico, cada força busca efetivar a sua potência, tal como bem sintetizado por Scarlett Marton : “Querendo vir-a-ser mais forte, a força esbarra em outras que a ela resistem; é inevitável a luta ‒ por mais potência” (“Vontade de potência”. In: GEN [Org.]. Dicionário Nietzsche, p. 423-425).

Ora, quando busca refletir sobre a formação dos primeiros núcleos de domínio e convivência do animal-homem no longo período de sua pré-história, Nietzsche intenta mostrar que, nos dominadores, o “instinto de liberdade (na minha linguagem: a vontade de potência)” (Para a Genealogia da Moral, II, 18) acaba exercendo-se como um instinto de crueldade sobre os dominados e que estes, por sua vez, impossibilitados de exercerem o seu instinto de liberdade (e, portanto, incapazes de exercerem seu instinto de crueldade sobre o dominador) acabam por inverter sobre si mesmos a direção de seu instinto de liberdade, que se desafoga em seu interior como instinto de crueldade. É isto que explica que o “instinto de crueldade” se volte “para trás”, ou seja, para o interior do animal-homem, instinto este que será o responsável, ao longo de milênios, pela lenta criação da consciência. Mas como se dá o fenômeno? Segundo Nietzsche, neste período da pré-história, os dominados são animais-homens que possuem uma inteligência voltada apenas para o instante, para o presente e, sendo assim, são a encarnação do próprio esquecimento. Mas, no caso de um animal-homem que foi dominado, o esquecimento de algo que ele não pode fazer no interior de uma comunidade implica em que o dominador exerça o seu poder de modo cada vez mais cruel ou violento. Manuseando códigos antigos de diversos povos e culturas nos quais observa a “dureza das leis penais”, o filósofo desenvolve a reflexão de que, para viver em comunidade, o instinto do dominado acaba por divisar na formação da mnemônica (uma primeira forma de memória, na qual o que é retido são imagens que estão associadas à dor) uma ferramenta para evitar o esquecimento e, por conseguinte, evitar o instinto de crueldade dos dominadores.

É neste ponto, portanto, que entra o entrelaçamento entre a memória e a dor, algo que permitirá a criação da consciência, possibilitará a moralidade do costume, a formação da moral e, ao final de longos milênios, também a existência de “indivíduos autônomos supramorais” (Nietzsche mesmo observa, na segunda seção da segunda dissertação da Genealogia, que “autônomo” e “moral” se excluem). Em síntese, a inovação que o filósofo faz na segunda dissertação é basicamente mostrar como foi um sistema de crueldade exercido sobre os dominados que gravou “a ferro e fogo” em suas memórias aquilo que eles não podiam fazer para poder viver no interior de uma comunidade. Mas, se com o auxílio da mnemônica o instinto desenvolveu no animal-homem a capacidade de não poder livrar-se de uma impressão recebida (no caso, por exemplo, do castigo violento e cruel que sofre aquele que comete um assassinato ou um roubo, por exemplo), este mesmo instinto possibilitou, através do desenvolvimento da memória, que o animal-homem chegasse também à capacidade de não querer mais livrar-se de uma impressão recebida, de fazer promessas, de empenhar a palavra e cumpri-la. Em outras palavras: a capacidade de querer algo e “prosseguir-querendo o já querido”, ação que cria uma “memória da vontade”, fazendo com que a vontade humana consiga não ser prisioneira do instante, mas capaz de prometer algo e assim comprometer-se em cumprir com sua promessa no futuro. Por meio da capacidade de prometer e cumprir a promessa o homem torna-se, inclusive, senhor de seu próprio destino, e com isto consegue, em muitos casos, até mesmo evitar a dor.

IHU On-Line – A partir das considerações da Segunda Dissertação, em que sentido a capacidade de esquecer é uma manifestação de saúde e funciona como um contramovimento à memória?
Luís Rubira – Já desde as primeiras seções da Segunda Dissertação, Nietzsche diz que o esquecimento é uma “força ativa”, uma “forma de saúde forte”. Diz também que o animal-homem era a própria “encarnação do esquecimento”, ou seja, que o esquecimento era o elemento que o permitia estar inteiramente no presente, no instante. Ora, como vimos, para viver em comunidade, desenvolveu-se uma força contrária, a da memória. Quando se é dominado por algo ou alguém o “instante” precisa ser suspenso, pois a vontade (que até então exercia-se livremente) deve submeter-se a uma outra vontade mais forte, que estabelece os “termos” do “acordo”, o qual deve ser lembrado e cumprido, de modo a ser evitado o castigo.

A memória, portanto, exerce uma função capital tanto para a vida em comunidade quanto para o indivíduo autônomo que se compromete com algo. Todavia, lembrar de tudo permanentemente, estar permanentemente à mercê das impressões recebidas e gravadas na memória, é estar ausente do presente, não conseguir vivenciar o instante. Por esta razão, Nietzsche diz que para que a consciência esteja no presente, é necessário a força ativa do esquecimento, que o esquecimento é capaz de “fechar temporariamente as portas e janelas da consciência”. Ou ainda: que o esquecimento é “uma espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica” (Para a Genealogia da Moral, II, 1). Se o leitor quiser um exemplo de como isto funciona, basta pensar nos eventos traumáticos que ocorrem com uma determinada pessoa (dor, luto, morte etc.): a lembrança permanente do evento faz com que se reviva o acontecimento. Só o esquecimento é capaz de restituir o presente, e com isto a possibilidade do novo, da alegria de viver.

IHU On-Line – É correto aduzir que Foucault levou essas ideias em consideração, sobretudo em Vigiar e Punir? Por quê?
Luís Rubira – Vania Dutra de Azeredo mostrou há alguns anos no artigo “A metodologia de Foucault no trato dos textos de Nietzsche” (Cadernos Nietzsche, vol. 1, n. 35, São Paulo, Dez. 2014) que Foucault apropria-se de Nietzsche para levar a termo as suas próprias concepções filosóficas. Neste sentido, na medida em que Nietzsche em Para a Genealogia da Moral desferiu uma crítica contra todas as tentativas realizadas para tentar compreender a proveniência da moral, em particular as hipóteses dos ingleses, e estabeleceu um método de investigação, a saber, a consulta ao “cinza” dos arquivos, da “coisa documentada” (Para a Genealogia da Moral, Prólogo, 7), é possível dizer que, sem a existência da Genealogia de Nietzsche não haveria o desenvolvimento de Vigiar e Punir, de Michel Foucault . As obras, portanto, interligam-se, mas suas perspectivas de interpretação dos acontecimentos possuem, cada qual, sua própria singularidade.

IHU On-Line – Ainda no âmbito da Segunda Dissertação, qual é a contribuição de Nietzsche para a compreensão do conceito de Schuld como culpa e dívida, concomitantemente? Qual é a atualidade dessa ideia?
Luís Rubira – Para responder à questão, aporto inicialmente uma contribuição de João Evangelista Tude de Melo Neto dada no Dicionário Nietzsche: “Na língua alemã, o termo Schuld comporta duas acepções. A primeira diz respeito à noção de débito e pode ser traduzida para o português por ‘dívida’. Já a segunda acepção expressa um conceito moral que é designado por nossa palavra ‘culpa’. Tomando como premissa a tese de que a acepção da palavra ‘culpa’ é um desdobramento histórico da noção de ‘dívida’, Nietzsche vai tentar explicar a origem genealógica da ‘culpa’ a partir de uma primitiva relação contratual entre credor e devedor” (“Culpa”. In: GEN [Org]. Dicionário Nietzsche, 2016, p. 169). De fato, na segunda dissertação de Para a Genealogia da Moral, o filósofo sustenta que o conceito de culpa provém do conceito de dívida. A tese não chega a ser nova, pois já em O andarilho e sua sombra Nietzsche formulava a hipótese de que a moralidade tem a sua gênese nas relações comerciais entre os homens. É difícil sintetizar em poucas linhas como se operou esta passagem (que inclusive é explicada também na primeira dissertação da Genealogia), mas, caso o leitor tenha interesse, remeto a um estudo que fiz sobre o modo como o homem, a partir do momento em que descobriu “a medida e o medir, a balança e o pesar”, acabou internalizando um procedimento que dizia respeito às relações comerciais, internalização que cria o modo como medimos valores, ou seja, como avaliamos moralmente (a este respeito ver Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração. São Paulo: Editora Barcarola/Discurso Editorial, capítulo II).

Enfim, é possível dizer que, com base na reflexão nietzschiana, o modo como internalizamos a dívida/culpa (Schuld), bem como a maneira como avaliamos e valoramos, sobrepesando e emitindo juízos de valor em cada situação com que nos deparamos, é algo que ocorre em cada situação de nossa vida em sociedade e está presente até hoje, em cada momento de nosso dia a dia.

IHU On-Line – Qual é o papel do eterno retorno em Genealogia da Moral? Como ele se apresenta?
Luís Rubira – A hipótese cosmológica do eterno retorno do mesmo surge no final da segunda dissertação da Genealogia de modo figurado. A ideia inicial de Nietzsche era concluir a Genealogia com este segundo capítulo, projeto que acaba por mudar depois, quando então ele escreve uma terceira dissertação intitulada “Que significam os ideais ascéticos?”. De todo o modo, quando pensamos que esta segunda dissertação foi pensada como uma abordagem da “psicologia da consciência” para mostrar o caminho percorrido desde a proveniência da moral até o desembocar no niilismo, então faz sentido que a penúltima seção remeta ao eterno retorno do mesmo: afinal, é por meio desta hipótese cosmológica que Nietzsche concebe uma nova medida de valor para todos os valores. Como dissemos, surge de modo figurado por meio da referência ao “meio-dia”. Já em 1881, após ter o pensamento do eterno retorno do mesmo, Nietzsche registrou em seu caderno de anotações o seguinte: “há sempre uma hora, em que primeiro para um, depois para muitos, depois para todos, emerge o mais poderoso dos pensamentos, o pensamento do eterno retorno de todas as coisas [ewigen Wiederkunft aller Dinge]: – é cada vez, para a humanidade, a hora do meio-dia [Mittags]”. (Fragmentos póstumos, 11(148) – Primavera – outono de 1881. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho). Esta figura do “meio-dia” volta a aparecer diversas vezes em Assim falava Zaratustra, obra cuja concepção fundamental é o pensamento do eterno retorno do mesmo. A associação entre a imagem do “meio-dia” e o pensamento do eterno retorno do mesmo é tal que Nietzsche chegou a pensar em intitular seu Zaratustra como: “Meio-dia e eternidade. Assim falava Zaratustra.” (Fragmentos póstumos, 4(39) – Novembro de 1882 – fevereiro de 1883). Não deixa também de ser significativo que após surgir esta imagem do “meio-dia” na penúltima seção da Genealogia, na última seção, de número 25, Nietzsche remeta seu leitor à obra Assim falava Zaratustra.

IHU On-Line – É correto afirmar que em Genealogia da Moral, a criação de novos valores e uma moral revigorada são uma espécie de preparação para o grande projeto de transvaloração dos valores, núcleo central de seu pensamento? Por quê?
Luís Rubira – É no final da terceira dissertação da Genealogia, ou seja, após mostrar que o ideal ascético (para Nietzsche: o ideal de décadence) teria sido o único a vigorar durante os últimos dois milênios, “porque foi até agora o único ideal, porque não tinha concorrentes” (Ecce Homo, “Para a Genealogia da Moral”), que o filósofo anuncia publicamente que está escrevendo uma obra destinada à transvaloração: “A vontade de potência. Tentativa de uma transvaloração de todos os valores”. O título desta obra, na verdade, aparece pela primeira vez em suas anotações compreendidas entre o outono de 1885 e o outono de 1886. Todavia, o primeiro título que Nietzsche havia pensado para a transvaloração lhe ocorrera em 1884: “O eterno retorno: tentativa de transvaloração de todos os valores” (Fragmentos Póstumos, XI, 26(259) – Verão – outono de 1884). Dito isto, sim: é correto afirmar que a Genealogia prepara, de certo modo, não somente o projeto, mas também a tarefa da transvaloração. Esta tarefa, a meu ver, é levada a termo com O Anticristo e os Ditirambos de Dioniso, mas para bem compreendê-la é necessário levar em conta toda a produção de Nietzsche realizada entre agosto e dezembro de 1888. Algo que inclui as obras Crepúsculo dos ídolos (Companhia das Letras, 2006), Nietzsche contra Wagner (Companhia das Letras, 1999) e Ecce Homo (Companhia das Letras, 1995), mas também as anotações do filósofo em seus cadernos e ainda sua correspondência.

IHU On-Line – Qual é a importância do amor fati nesse processo de destruição dos valores decadentes para a construção de outros, que rompem com o modelo niilista cristão?
Luís Rubira – O amor fati, como Nietzsche esclarece em Ecce Homo, é a “fórmula para a grandeza do homem” e significa: “não querer nada de outro modo, nem para diante, nem para trás, nem em toda a eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo (...) mas amá-lo...” (Ecce Homo, “Por que sou tão inteligente”, §10. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho). Amar aquilo que é necessário nas coisas, o que nos acontece, sem querer que algo seja diferente seja em relação ao futuro ou ao passado, mesmo diante da possibilidade de repetição cíclica de todos os acontecimentos (o eterno retorno do mesmo) é algo contrário ao modo como, desde Platão (que procurou resolver a equação entre a filosofia de Parmênides e a de Heráclito criando uma relação entre o mundo do Ser – o mundo das ideias – e o mundo do vir-a-ser, o mundo sensível), se compreendeu a “realidade”, o “mundo das aparências”, em outras palavras, o mundo mesmo no qual vivemos e existimos. Sobretudo para Nietzsche, o Cristianismo levou ao extremo a desvalorização deste mundo “temporal” e “perecível” em detrimento de outro, do “verdadeiro” mundo, “atemporal” e “imperecível”. A consequência desta desvalorização do mundo “imanente” em detrimento do “transcendente”, segundo o filósofo, teria conduzido, lentamente e por diversos caminhos, ao surgimento do niilismo. Em breves palavras: o amor fati é o núcleo afirmativo da filosofia nietzschiana, um ativo querer que tudo seja tal como é, uma certeza de que “se todas as coisas são um fatum, eu também sou um fatum para todas as coisas” (Fragmentos Póstumos, 29(13) – Outono de 1884 – fim de 1885), de que o destino tanto nos determina quanto nós determinamos o destino. Este modo de compreensão interdita os valores decadentes e é a perspectiva afirmativa para que não sucumbamos ante a desvalorização de todos os valores, ou seja, o avanço do niilismo.

IHU On-Line – Como analisa a recepção moral e política de Nietzsche no Brasil?
Luís Rubira – A recepção da filosofia de Nietzsche no Brasil é uma das linhas de pesquisa que o Grupo de Estudos Nietzsche inaugurou em 2014. Membro do GEN, Geraldo Pereira Dias publicou nos Cadernos Nietzsche n. 35, de dezembro de 2014, uma série de artigos de jornal que apareceram na imprensa brasileira sobre Nietzsche entre o final do século XIX e o início do XX, a começar pelo texto “Um filósofo”, de Leopoldo de Freitas , editado num jornal do Rio de Janeiro chamado O Paiz, texto este que apareceu em 16/10/1899. Poucos depois, Geraldo Dias também publicou nos Cadernos Nietzsche um texto ainda mais antigo, de autoria de Julio Erasmo chamado “Neo-cinismo”, editado também no Rio de Janeiro na Gazeta de Notícias em 20/5/1893. As pesquisas levaram também à descoberta de que a abordagem mais antiga de Nietzsche no Brasil, até agora conhecida entre nós, é de autoria de Tobias Barreto , na Escola do Recife, em 1876.

Quando digo que o Grupo Nietzsche inaugurou a pesquisa, é preciso, no entanto, ponderar o seguinte: na verdade quem estimulou o primeiro impulso para a investigação foi Scarlett Marton, que no final de seu livro Das forças cósmicas aos valores humanos, publicado em 1990, dissera que “no Brasil, muito cedo suas ideias despertaram interesse; já no início do século deixavam marcas na produção intelectual anarquista”, e que se entre 1935 e 1945 vários intelectuais europeus haviam saído em defesa do filósofo, de modo a desvincular seu pensamento do nazismo e do fascismo, quando no Brasil Nietzsche “chegava ao auge da difamação Antonio Candido tomou sua defesa”, algo que teria ocorrido em 1946. De outra parte, é preciso lembrar que estudiosos como Ernani Chaves (com seu artigo “Nietzsche e raízes do Brasil”, Revista Cult, agosto de 2000), Carmen Lucia Figueiredo (“Uma corda sobre o abismo: diálogo entre Lima Barreto e Nietzsche”, revista Alea, v. 6, n. 1, em janeiro-junho 2004), Ivan Mello (“A antropofagia oswaldiana como filosofia trágica”, Cadernos Nietzsche n. 23, em 2007), Ivo da Silva Junior (“Notas sobre a recepção de Nietzsche no Brasil. Lebrun e os operadores teóricos”, Cadernos Nietzsche n. 30, em 2012) e Antonio Vinicius Lomeu Teixeira Barroso (“Um Nietzsche à brasileira: intelectuais receptores do pensamento nietzschiano no Brasil (1900-1940)”, Revista de Teoria da História n. 9 em Julho de 2013), foram contribuições importantes para que o GEN inaugurasse esta frente de investigação sobre a recepção de Nietzsche no Brasil.

De minha parte, iniciei a pesquisa em janeiro de 2014 quando um estudante que fazia mestrado sob minha orientação na UFPel, Fabiano Pinto, havia descoberto uma série de artigos de jornal sobre Nietzsche na cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul, e resolvemos investigar o material, o que resultou na publicação nos Cadernos Nietzsche n. 37 de Outubro de 2016 do ensaio “Nietzsche no Brasil (1933-1943): Da ascensão do nacional-socialismo ao Grande Reich Alemão”, no qual analisei mais de cinquenta artigos de jornal publicados em território nacional entre 1933 e 1943. Cabe ainda lembrar que Scarlett Marton orientou a dissertação de mestrado de Tiago Pantuzzi, defendida na USP em 2016 sob o título A primeira recepção de Nietzsche no Brasil: a Escola do Recife. Atualmente Geraldo Dias está em fase de conclusão de sua tese de doutorado em São Paulo, sob a orientação de Ivo da Silva Junior, intitulada “Renovação e conservadorismo: a recepção da filosofia de Nietzsche na formação cultural da inteligência brasileira entre 1893 e 1945”, e eu mesmo tenho um orientando de mestrado na UFPel, Rafael Silveira, que investiga a influência de Nietzsche no pensamento de Mário Ferreira dos Santos. Enfim, é uma área de pesquisa que ainda dará muitos frutos e que mostra, sobretudo, a forte influência da filosofia de Nietzsche tanto em nossa cultura quanto entre muitas gerações de intelectuais brasileiros.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios de se traduzir fontes primárias de Nietzsche como Roux, Vogt e Caspari? Em que sentido essas traduções ajudam a situar as influências teóricas de Nietzsche e compreender os desdobramentos de suas ideias?
Luís Rubira – Diria que são dois os desafios: primeiramente a tradução, que exige um trabalho lento, mas para o qual cada membro do GEN está preparado, pois entre nós dominamos vários idiomas; em segundo, o trabalho de contextualização da obra, tanto em relação ao seu autor quanto da influência que exerceu sobre Nietzsche. Recentemente Clademir Araldi e André Itaparica traduziram e publicaram A origem dos sentimentos morais, de Paul Rée e estamos trabalhando em diversas outras fontes primárias que Nietzsche utilizou e que devem ser publicadas na sequência. Trata-se também de outra frente de pesquisa inaugurada pelo Grupo de Estudos Nietzsche nos últimos anos e que, certamente, irá contribuir muito para renovadas investigações sobre o filósofo alemão em nosso país.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Luís Rubira – Sim, gostaria de convidar os leitores para visitar a nova versão da página do Grupo de Estudos Nietzsche, recém inaugurada: https://gen-grupodeestudosnietzsche.net. Ali é possível acompanhar as atividades de nosso grupo, em suas três frentes: Cadernos Nietzsche, Encontros Nietzsche e as publicações da Coleção Sendas & Veredas. Por fim, é importante dizer que Clademir Araldi e eu coordenamos um Grupo de Estudos sobre Nietzsche na UFPel desde 2009, tendo diversos orientandos de mestrado e doutorado, e estamos abertos ao diálogo com todos aqueles que possuem interesse em conhecer um pouco mais sobre o pensamento de Nietzsche. ■

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