Edição 529 | 01 Outubro 2018

Por uma leitura rigorosa dos conceitos de Nietzsche

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Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Walter O. Schlupp

Werner Stegmaier, pesquisador alemão, aborda aspectos teóricos da literatura nietzschiana buscando as minúcias de seus conceitos

Pensar questões morais a partir das obras de Nietzsche requer deslocar o olhar do senso comum no qual haveria a possibilidade de uma sociedade sem a existência de uma “moral”. “Sua intenção [de Nietzsche] era apontar para possíveis origens imorais de determinada moral, isto é, esclarecer, no intuito de desbaratar o farisaísmo dessa moral. Trata-se da moral que até hoje continua dominando a nós e os traços básicos do nosso pensamento, justamente no Ocidente esclarecido”, esclarece Werner Stegmaier em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Ele queria elevar a moral acima daquela que aposta na igualdade e na reciprocidade e para tanto apela para a razão”, complementa.

Quanto ao niilismo, outro termo recorrente ao se discutir a obra do pensador alemão, Stegmaier ressalta que Nietzsche não o refutava em sua totalidade, mas em uma certa tendência. “Mesmo o niilismo ele não pretendia ‘superar’ como tal, como muitas vezes se diz com base em Martin Heidegger, mas apenas uma forma específica do niilismo que ele enxergava na forma de moral existente então (e até hoje). O niilismo original e primeiro, o fato de que os valores supremos não estão com nada, ele considerava um ‘estado normal’, como ele anotou para si próprio”, postula o entrevistado.

Werner Stegmaier é professor emérito da Ernst-Moritz-Arndt-Universität Greifswald, Alemanha. Entre seus livros publicados, destacamos Nietzsches 'Genealogie der Moral' (1994) e Europa im Geisterkrieg. Studien zu Nietzsche (Open Book Publishers, 2018). É coeditor e diretor de redação do periódico Nietzsche-Studien Internationales Jahrbuch für die Nietzsche-Forschung (Walter de Gruyter).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor é autor do clássico Nietzsche, ‘Genealogie der Moral’. Werkinterpretation (1994). Tomando em consideração sua pesquisa, em que sentido Genealogia da Moral é uma elucidação de uma elucidação?
Werner Stegmaier – O Esclarecimento, tal como o conhecemos e como ele atingiu seu clímax no trabalho de Immanuel Kant , atribuiu às pessoas uma razão a qual todas poderiam utilizar por igual, independentemente de suas condições individuais e sociais. Com a sua obra Nietzsche questionou essa premissa, particularmente em sua Genealogia da Moral. O sociólogo Niklas Luhmann , que tinha muitas posições filosóficas fundamentais em comum com Nietzsche, mesmo sem se referir muito explicitamente a ele, falou de uma “clarificação do Esclarecimento”. É também um esclarecimento, o esclarecimento do Esclarecimento no tocante a uma premissa que deixou de ser sustentável. Nietzsche pensava “razão”, conceito que ele usou com frequência, de maneira diferente, isto é, como “razoabilidade” diversificada e dinâmica, que combina virtudes da orientação humana, como circunspecção, antecipação, visão do todo, apercepção, cautela, deferência, compreensão empática e esperança confiante, que podem se desenvolver diferentemente na orientação de cada indivíduo.

IHU On-Line – Dentro de um contexto mais amplo da filosofia de Nietzsche, como se pode compreender o lugar ocupado pela obra Genealogia da Moral?
Werner Stegmaier – Existe amplo consenso na pesquisa de Nietzsche de que com a Genealogia da Moral sua obra assumiu um caráter intensamente polêmico; ele a chamou expressamente de “libelo”, em seu subtítulo. Ela fora diretamente precedida pelo muito ponderado e equilibrado Livro V da Gaia Ciência (São Paulo: Companhia das Letras, 2001), que na minha opinião contém os mais maduros e serenos aforismos de Nietzsche; ali os famosos ensinamentos do seu Zaratustra acerca do Super-homem e do eterno retorno das coisas já saíram de cena. Para o libelo Nietzsche voltou a adotar o formato de tratado, o qual ele havia usado em suas primeiras obras, O Nascimento da Tragédia (São Paulo: Companhia de Bolso, 2007) e Considerações Extemporâneas; entretanto ele evitou uma reflexão contínua e coerente (portanto uma espécie de “sistema”, que ele rejeitava), subdividindo a Genealogia em três tratados, em cada um dos quais ele fazia um novo começo.

Os escritos seguintes, Crepúsculo dos Ídolos (São Paulo: Companhia de Bolso, 2017), O Caso Wagner (São Paulo: Companhia de Bolso, 2016) e O Anticristo (São Paulo: Companhia de Bolso, 2016), acentuam ainda mais o caráter de libelo. Em termos de conteúdo, Nietzsche deu maior desenvolvimento a seu modo histórico de fazer filosofia, o qual ele tinha iniciado com Humano, Demasiado Humano (São Paulo: Companhia de Bolso, 2008), ampliando essa abordagem para um grande projeto geral da história do Ocidente, incluindo a história da filosofia, ali transformando a moral em seu pano de fundo e tema principal. Ele ali acabou encontrando, no meio do tratado intermediário da Genealogia da Moral (São Paulo: Companhia de Bolso, 2009), sua formulação filosófica sobre seu conceito de conceito, o conceito da forma fluida e do sentido fluido, que na perspectiva de hoje talvez possa ser considerado sua principal contribuição para a filosofia. Em Ecce Homo (São Paulo: Companhia de Bolso, 2008), genealogia do seu próprio pensamento (“Por que eu seria tão sábio?”, “Por que eu seria tão inteligente?” ...), ele deu início à sua “campanha contra a moral”, a saber, em seu livro de 55 aforismos Aurora (São Paulo: Companhia de Bolso, 2016).

Em termos comparativos, Nietzsche então só ainda aplicou um tratamento relativamente breve à Genealogia da Moral, enfatizando principalmente “expressividade, intenção e arte da surpresa”, ou seja, sua forma literária. Nem ali, nem no resumo dos três tratados aparece o termo “moral”; ao invés, três vezes o termo “psicologia”, naquele sentido da sua frase de Além do Bem e do Mal n° 23: “Pois psicologia agora voltou a ser o caminho para os problemas fundamentais”. Como assim “voltou a ser”? Ela tal veio a ser plenamente apenas na Genealogia da Moral; também a psicologia de Nietzsche é uma espécie de genealogia (ao lado do seu filosofar histórico), sendo que o aforismo n° 23 de Além do Bem e do Mal pode ser lido como escrito programático [da sua psicologia ou genealogia], incluindo a formulação “ousado viajante e aventureiro”, para “cuja apercepção se abre um mundo mais profundo”.

IHU On-Line – Seria adequado afirmar que o intento de Nietzsche com esse escrito é superar não a moral em si, mas um determinado tipo de moral, expresso pelos valores judaico-cristãos?
Werner Stegmaier – Nietzsche certamente não quis superar “a moral” – nenhuma sociedade consegue subsistir sem moral. Sua intenção era apontar para possíveis origens imorais de determinada moral, isto é, esclarecer, no intuito de desbaratar o farisaísmo dessa moral. Trata-se da moral que até hoje continua dominando a nós e os traços básicos do nosso pensamento, justamente no Ocidente esclarecido. Nietzsche desempenhou seu esclarecimento, conforme ele escreve pouco antes da Genealogia da Moral, em seu prefácio para a nova edição de Aurora, “por uma questão de moralidade”, ele queria elevar a moral acima daquela que aposta na igualdade e na reciprocidade e para tanto apela para a razão. Na Genealogia da Moral, com sua polêmica contraposição entre moral dos escravos e moral dos senhores, isto não se manifesta com tanta evidência. Isto porque Nietzsche já havia tratado detalhadamente do seu novo conceito de moral, de uma moral “nobre”, em Além do Bem e do Mal e no livro V da Gaia Ciência. Mesmo o niilismo ele não pretendia “superar” como tal, como muitas vezes se diz com base em Martin Heidegger , mas apenas uma forma específica do niilismo que ele enxergava na forma de moral existente então (e até hoje). O niilismo original e primeiro, o fato de que os valores supremos não estão com nada, ele considerava um “estado normal”, como ele anotou para si próprio.

IHU On-Line – Nessa outra moral, qual é a importância da valorização do tipo nobre, daquele que diz Sim, em lugar dos espíritos de gravidade e ressentidos, negadores da vida?
Werner Stegmaier – A pessoa do tipo nobre e afirmativo é para Nietzsche o tipo “distinto” [vornehm], aquela pessoa que não só na moral mas em toda a sua postura de vida consegue renunciar à igualdade e reciprocidade como ela se manifesta na chamada “regra de ouro”; ao invés, sem ficar dependendo do reconhecimento de outras pessoas, ela estabelece para si própria padrões que podem vir a ser sinais, mas não normas para outras pessoas; na Genealogia da Moral ele definiu o tipo distinto como “indivíduo soberano” ou “autônomo, supramoral”. Seu “outro ideal” ele formulara no final do livro V de A Gaia Ciência, aforismo 382.

IHU On-Line – Quais são as particularidades do debate acerca da Genealogia nas tradições interpretativas francesa, alemã e italiana? Quais são os pontos de convergência e divergência principais?
Werner Stegmaier – Toda e todo pesquisador/a de Nietzsche fará seus próprios destaques. Por isso, justamente no espírito de Nietzsche, é preciso evitar generalizações levianas, principalmente no tocante a países. Talvez se possa dizer o seguinte: a pesquisa italiana mais recente sobre Nietzsche projetou-se especialmente por sua pesquisa das fontes de Nietzsche. Já na pesquisa francesa enfatizou-se muito a questão da corporalidade em Nietzsche. Porém ambos os aspectos também estão presentes na pesquisa de língua alemã sobre o filósofo. De particular importância para mim próprio foi aquele conceito de conceito ao qual Nietzsche chegou na Genealogia da Moral, com as concomitantes reorientações filosóficas profundas que ali se manifestam, mas naturalmente não só nela. Na pesquisa estadunidense sobre Nietzsche a Genealogia da Moral ultimamente tem sido lida como libelo contra Darwin e sua pretensa justificativa da moral como vantagem evolucionária; mas ali ela também foi lida como paródia. Essas certamente não terão sido as últimas leituras. A Genealogia da Moral é inspiradora como poucos outros textos filosóficos, embora ela apenas em termos seja um texto propriamente filosófico. Dificilmente se há de polemizar tanto sobre uma obra como sobre esse libelo.

IHU On-Line – Além disso, qual é a importância de se ler não apenas a Genealogia, mas toda a obra de Nietzsche, à luz de seus fragmentos póstumos organizados na KSA?
Werner Stegmaier – Não se trata de “fragmentos”, mas de “notas” [Notate], isto é, mais do que meras “anotações”, porém menos do que textos elaborados. Como revela a nova edição do legado póstumo (1885-1889) numa transcrição diferenciada, que vem sendo publicada desde 2001 sob a direção de Marie-Luise Haase com a designação KGW IX (9ª Seção da Edição Crítica Completa das obras de Nietzsche), geralmente nem se trata de “textos” que possam ser lidos de forma contínua, mas como works in progress, os quais Nietzsche continuou desenvolvendo o tempo todo até transformá-los em textos das suas obras publicadas, textos esses que ele nunca adotava simplesmente do jeito que estavam. No quanto se pode reconhecer no legado póstumo, trata-se, portanto, de passos gradativos do pensamento de Nietzsche que podem ajudar na interpretação das obras que vieram a ser publicadas. Em última análise, porém, decisivos são sempre os escritos que Nietzsche publicou ou liberou para publicação; eles é que dele receberam aquela forma a partir da qual ele queria que fossem atendidos, por exemplo a forma do libelo no caso da Genealogia da Moral.

Porém muita coisa no legado póstumo também é interessante, até mesmo muito interessante justamente por nem ter sido publicada por Nietzsche; as razões para tanto podem ser diversas: talvez ele achasse que as ideias anotadas não estivessem maduras para publicação, talvez também porque ele considerava os leitores não maduros o suficiente para elas, algo que ele dá a entender em várias ocasiões. Continuamos sem uma visão geral daquilo que consta apenas no legado póstumo e não publicado por Nietzsche, seja lá por quais razões, porém continua sendo utilizado indiscriminadamente como texto para interpretações. A distinção clara das diversas formas de Nietzsche pensar e escrever é, entrementes, padrão metodológico imprescindível da pesquisa sobre Nietzsche. No caso da Genealogia da Moral, entretanto, como dissemos, dela nada mais consta no legado póstumo.

IHU On-Line – Nietzsche queria leitores que pensassem por si mesmos. A partir dessa premissa, em que sentido a Genealogia promove uma reversão de uma mentalidade de rebanho para outra, caracterizada pela autonomia e pela afirmação da vida e de seu transbordamento?
Werner Stegmaier – Se muitos aderirem ao mesmo pensamento, neste caso ao pensamento nietzschiano da distinção, pode-se falar novamente de um rebanho, só que será um rebanho diferente daquele que ele critica, porque se trata de um rebanho, a bem dizer, de pastores que conduzem a outros, ou, como hoje dizemos, podem orientar outros. E Nietzsche desde o começo salientou que esses pastores sempre estão em concorrência mútua, ao passo que animais gregários comuns justamente procuram evitar a concorrência, por exemplo adotando a moral vigente.

IHU On-Line – Qual é a importância da ideia de potência em Genealogia da Moral? Qual é a relação da potência com a questão da superação, do nexo tensional, agonístico, em vez da aniquilação do espírito?
Werner Stegmaier – A noção de poder em Nietzsche é a noção da vontade de poder, ou mais precisamente, como se pode depreender principalmente em Além do Bem e do Mal n° 36 (diferentemente das etapas prévias no legado póstumo e na suposta obra principal compilada a posteriori A Vontade de Poder), das vontades de poder, no plural. Ali ele não está pensando em poderes existentes, políticos e religiosos, por exemplo, e sim na concepção filosófica da realidade geral enquanto constante disputa entre aquilo que ele chama de “vontade para o poder” com outras “vontades de poder”, disputa essa em que cada uma delas arrisca sua existência o tempo todo. Nesse sentido a realidade não está em algo genérico idealizado que existisse por si mesmo, na forma atribuída às ideias de Platão ou à razão em Kant, mas trata-se justamente de uma crítica radical dessa qualidade genérica.

Uma vontade para o poder não tem sustentação em algo genérico, não obedece a lei alguma, conforme Nietzsche descreve em Além do Bem e do Mal n° 22, e sim, segundo Nietzsche, ela nem tem outra opção senão superar a outras, caso não queira sucumbir ela própria ou ser incorporada pela outra, justamente “porque faltam absolutamente as leis, e todo e qualquer poder sempre tira sua última consequência a cada momento”. Com isso ele ao mesmo tempo acolhe filosoficamente a ideia de evolução de Darwin. Na incessante disputa daquilo que Nietzsche entende por vontade para o poder, o tempo todo espírito pode estar sendo “aniquilado”, porém mais ainda, segundo Nietzsche, o espírito será intensificado por estar-se expondo incessantemente ao risco. Entretanto ele também pode cansar-se e sucumbir, como expressou no aforismo n° 359 do livro V da Gaia Ciência – assim preparando o teorema do ressentimento, o qual depois desempenha tão importante papel na Genealogia da Moral.

IHU On-Line – Como analisa a crítica ao Cristianismo e seu “ódio criador do ideal”, contida na seção 8 da Primeira Dissertação?
Werner Stegmaier – Essa seção analisei detalhadamente na minha interpretação da obra Genealogia da Moral e não preciso repetir aqui. Apenas quero salientar novamente que, na parte intermediária de O Anticristo, Nietzsche mais uma vez redescobriu o “tipo Jesus”, e isso talvez com maior profundidade do que jamais tenha ocorrido na história do cristianismo. Parece que ele próprio se surpreendeu bastante com isso. Seja como for, antes já, em Além do Bem e do Mal n° 60 e depois, na própria Genealogia da Moral, seção 22 da segunda dissertação, foi por esse tipo que ele mais se sentiu arrebatado.■

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