Edição 529 | 01 Outubro 2018

“Freirear” em sala de aula, uma alternativa contra a violência curricular

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João Vitor Santos

Valter Giovedi analisa a recepção da Pedagogia do oprimido e retoma Paulo Freire para refletir acerca dos desafios da escola de hoje

Patrono da Educação no Brasil, Paulo Freire não é um desconhecido no ambiente escolar. Entretanto, para o professor Valter Martins Giovedi, a sua experiência de educação libertadora ainda hoje é apreendida perifericamente. “A aprendizagem de Freire não é uma experiência meramente intelectual de assimilação de um conjunto de códigos que ampliam o vocabulário do sujeito”, analisa. E acrescenta: “tão importante quanto a apropriação de conteúdos, é o testemunho vivencial da pedagogia freireana”. É essa vivência que está na gênese da Pedagogia do oprimido e que, na perspectiva de Giovedi, mantém esse pensamento atual. “’Freirear’ em sala de aula é tão ou mais importante que falar de conceitos de Freire. Freirear é existenciar em sala de aula a Pedagogia do oprimido”, pontua.

Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Giovedi também aborda a “violência curricular”, aquela que não respeita a particularidade da escola, do aluno e impõe uma padronização que acaba amarrando o indivíduo. “No fundo, a base da violência curricular é a velha mentalidade opressora de quem acha que sabe o que é melhor para os outros”, resume. Por isso, vê em Freire e na sua didática libertadora uma forma de resistência. “A perspectiva freireana acumulou experiências suficientes e bem-sucedidas. Os princípios e as ações que definem essa experiência é o que denominei como currículo crítico-libertador. É nele que eu acredito e aposto como caminho para resistir e superar a violência curricular”, destaca.

Caminho esse que também se abre como frente para libertar pessoas além da escola. “A formação de sujeitos coletivos que se organizam para lutar contra as situações de opressão que recaem sobre as comunidades, a cidade, o estado, o país e sobre o planeta é o grande objetivo da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire”, finaliza.

Valter Martins Giovedi é professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo - UFES, lecionando principalmente no curso de Licenciatura em Educação do Campo. Também atua no mestrado profissional em Educação da UFES e foi professor da rede pública estadual de São Paulo. Possui doutorado pelo Programa de Educação: Currículo da PUC - SP e mestrado, realizado na mesma instituição. Sua dissertação abordou a inspiração fenomenológica da concepção de ensino-aprendizagem de Paulo Freire. Graduado e licenciado em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu, ainda é membro da Rede Freireana de Pesquisadores.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – 50 anos depois, como é a recepção da Pedagogia do oprimido na formação docente e no ambiente escolar?
Valter Martins Giovedi – A recepção é bastante genérica. Ou seja, são raros os espaços institucionais educacionais em que Paulo Freire não seja mencionado. Inclusive, é muito comum vermos estampado em murais de escolas alguma frase de Paulo Freire.

No entanto, digo que é uma recepção genérica, pois entre a presença de citações e menções abstratas (às vezes até descontextualizadas e com conotação de autoajuda) e a influência real do pensamento de Paulo Freire na política educacional, na organização administrativa, na formação de educadores e educadoras, na organização curricular e nas práticas didático-pedagógicas... das nossas escolas e dos espaços de formação de professores e professoras, há uma distância imensa. Em outras palavras, a apropriação que prevalece é superficial, reduzida a chavões, frases soltas, referências a “conta-gotas”. Nesse sentido, Freire ainda é desconhecido em termos mais rigorosos pelos nossos educadores e educadoras. As implicações mais radicais da sua proposta educacional e a realização dela no contexto concreto das escolas e das salas de aula ainda são muito tímidas. Mesmo assim, o fato de Freire ser reconhecido pelos profissionais da educação é algo que precisamos valorizar. Penso que, entre os educadores e educadoras do nosso país, prevalece o entendimento de que Freire traz uma contribuição valiosa ao trabalho pedagógico.

O passo seguinte, que seria efetivar práticas freireanas nas várias dimensões do trabalho pedagógico: seleção de conteúdos, organização metodológica, reordenação do espaço físico, reconstrução do papel da avaliação, tratamento das questões interpessoais etc., ainda não foi dado pela nossa educação. Por isso, é muito injusto atribuir a Paulo Freire, à sua Pedagogia do oprimido, qualquer responsabilidade pelos processos e resultados que a nossa educação tem alcançado. A pedagogia de Paulo Freire, quando compreendida na sua profundidade, nos mostra que os processos que têm sido predominantes nas escolas, as políticas educacionais hegemônicas, bem como os critérios que se utilizam para avaliar a qualidade da educação não têm nada a ver com as propostas dele.

Formação freireana de professores

É importante dizer que formar professores na perspectiva de Freire não ocorre, senão por uma “experiência de corpo inteiro”. Ou seja, os(as) nossos(as) futuros(as) educadores e educadoras vão praticar Freire na medida em que os seus professores formadores “corporeificarem” a pedagogia freireana nas suas aulas: com diálogo, relações horizontais, respeito e consideração dos saberes dos educandos, seleção de conhecimentos demandados pela realidade dos estudantes. A aprendizagem de Freire não é uma experiência meramente intelectual de assimilação de um conjunto de códigos que ampliam o vocabulário do sujeito. Isso também é importante, porém, tão importante quanto a apropriação de conteúdos, é o testemunho vivencial da pedagogia freireana. “Freirear” em sala de aula é tão ou mais importante que falar de conceitos de Freire. Freirear é existenciar em sala de aula a Pedagogia do Oprimido.

IHU On-Line – Como a tecnologia tem impactado as relações no ambiente escolar e reconfigurado os processos de ensino e aprendizagem? E como compreender esses novos ambientes a partir de uma inspiração freireana?
Valter Martins Giovedi – Não há dúvidas de que a maioria das crianças, jovens e adultos de hoje crescem em contextos em que as tecnologias da comunicação e da informação compõem significativamente a trama de suas existências. Suas percepções de mundo estão altamente moldadas pela alta velocidade, pelas imagens e pelas lógicas sensoriais e intelectuais próprias das tecnologias. Isso obviamente tem um impacto. O aprendizado escolar exige paciência, saber esperar, concentração em um mesmo foco, saber ouvir, saber pedir a palavra, renunciar ao “eu” em nome do “nós”, escrever, refazer tarefas, ler textos mais longos do que os que geralmente se lê etc. Ou seja, há um conflito inevitável entre a cultura das tecnologias e vários aspectos indispensáveis da cultura escolar. A questão é como fazer para que a experiência cultural escolar possa ser significativa sem que tenha que necessariamente sempre se ajustar à lógica, ritmos, recursos e características das novas tecnologias. A escola não pode ser subserviente às tecnologias, tanto quanto não pode simplesmente ignorá-las.

Esse conflito poderá ser bem equacionado na medida em que a vida concreta dos estudantes for objeto de estudo da escola. Essa vida, ao ser tematizada, exige conhecimentos disponíveis em múltiplas plataformas de informação. É aí que eu vejo a incorporação das tecnologias sem deixar de trabalhar com livros, textos, caderno, cartazes, vídeos etc. Acho que é aí que Freire contribui de modo fantástico.

Gosto muito de uma explicação bem-humorada feita por Mário Sérgio Cortella a respeito da questão das tecnologias na educação. Ele diz mais ou menos o seguinte: se você der um fogão de última geração para alguém que não sabe cozinhar, não vai adiantar nada. O fogão não fará a comida pelo cozinheiro. Ele não tem o poder, por si mesmo, de garantir o bom resultado: a comida saborosa. O bom cozinheiro, às vezes, não tem esse fogão todo sofisticado. Às vezes só tem um forno à lenha: algo considerado ultrapassado nos dias atuais. Porém, se ele sabe cozinhar, daí sairá coisa boa. Cortella prossegue dizendo que, com a educação, ocorre algo parecido. Você pode equipar as escolas do país com todos os aparelhos tecnológicos de última geração. Você pode investir pesadamente em tudo. Não só pode como deve. No entanto, mesmo assim, isso não será suficiente caso o essencial não seja tratado. Quando falamos de educação, as tecnologias são importantíssimas, mas não são “o essencial”. A educação de boa qualidade não se define pela quantidade de tecnologias que estão à disposição dos sujeitos. Elas só abrem uma possibilidade a mais de construção de conhecimento.

O essencial da educação de qualidade, em termos freireanos, é o diálogo. Professores cheios de recursos tecnológicos e que não sabem dialogar, muito pouco contribuirão para que as tecnologias sejam utilizadas de modo significativo. Serão apenas recursos motivacionais para tentar diminuir a indiferença dos estudantes ou até mesmo para tomar o tempo deles. Essa tem sido a apropriação predominante das tecnologias. Elas têm sido meios diferentes, mais sofisticados, para que coisas sem sentido sejam ensinadas aos estudantes. Não tem sido um recurso para radicalizar o diálogo.

IHU On-Line – Quais os desafios para se conceber uma didática libertadora em nosso tempo?
Valter Martins Giovedi – São vários os desafios. Vou destacar dois: um desafio de natureza curricular e outro de natureza cultural.

Tornou-se uma “epidemia” a disseminação de pacotes e bases curriculares, sejam eles municipais, estaduais ou nacionais. Toda padronização curricular proveniente de órgãos superiores do sistema educacional (ministérios ou secretarias) é sempre um obstáculo para a concepção e desenvolvimento de uma didática libertadora. E é um obstáculo por um motivo muito simples: a Didática Libertadora exige que a(s) realidade(s) local(is) que as escolas atendem sejam o ponto de partida das escolhas curriculares. A seleção de conhecimentos precisa ocorrer no nível da própria escola, no exercício de sua autonomia, como produto da participação direta do corpo docente, dos estudantes e da comunidade nos processos decisórios. Essa é uma condição indispensável para a efetivação de uma Didática Libertadora.

Desafio cultural

Quando falo dessa questão, refiro-me à cultura pedagógica hegemônica dos docentes. Em regra, quando os docentes foram estudantes nas escolas e nas universidades, não vivenciaram, enquanto alunos, a experiência de Didática Libertadora. Ou seja, poucos puderam testemunhar, sentir na pele, vivenciar essa Didática. O significado de ser professor que se constitui a partir da Didática hegemônica é ser alguém que leva o conteúdo oficial para dentro da sala de aula e que o transmite para os estudantes, sendo que o professor, no máximo, faz algumas escolhas metodológicas e de recursos didáticos. A participação dos estudantes, quando ocorre, é mais protocolar: é uma participação que se dá dentro de um roteiro preestabelecido pelo sistema. Essa falta de vivência de Didática Libertadora na condição de aluno é um obstáculo cultural, pois como foram muitos anos experimentando outra Didática, o professor só poderá recorrer à sua imaginação para vislumbrá-la. A tendência primeira é dizer: isso é impossível.

Minha experiência de mais ou menos 10 anos na Educação Básica pública me mostrou que é sim possível fazer a Didática Libertadora na sala de aula e que os limites político-institucionais não são suficientes para impedir essa iniciativa. É claro que essa possibilidade só se realiza quando o professor assume isso como um desejo, adere a essa concepção e busca descobrir os princípios e modos de fazê-la. Quando nos arriscamos a praticá-la com os nossos alunos na sala de aula, muito rápido percebemos a diferença. Muito rápido os estudantes reconhecem que a vida deles começou a ser objeto de estudo na sala de aula e motivam-se a interagir.

Nesse sentido, quem primeiro legitima a Didática Libertadora são os estudantes. Só depois dessa legitimação junto a eles que nós vamos conquistando legitimidade junto à escola. Quando começamos a mostrar para os gestores da escola os resultados de aprendizagem que estamos alcançando nas suas várias dimensões (cognitiva, afetiva, ética, política, estética etc.), a própria gestão tende a reconhecer que aquela Didática, que se contrapõe às fórmulas impostas pelo sistema, é muito mais bem-sucedida do que a Didática hegemônica que tem sido praticada pela maioria dos educadores e educadoras.

IHU On-Line – De que forma essa didática libertadora pode se configurar como um caminho para redução das desigualdades no país?
Valter Martins Giovedi – A Didática Libertadora é o encontro dialógico dos educandos e dos educadores, mediatizados pela realidade da comunidade dos educandos, tendo em vista a sua transformação. Ou seja, o ponto de partida e de chegada da Didática Libertadora é a realidade existencial concreta dos educandos com quem trabalhamos.

Ao desvelarmos dialogicamente com eles essa realidade, suas determinações, as causas dos problemas que ela possui e vislumbrarmos caminhos para a superação de tais problemas, estaremos contribuindo de modo significativo com a formação de sujeitos coletivos engajados. A formação de sujeitos coletivos que se organizam para lutar contra as situações de opressão que recaem sobre as comunidades, a cidade, o estado, o país e sobre o planeta é o grande objetivo da Pedagogia do oprimido de Paulo Freire. Aí está a relação possível entre a redução das desigualdades sociais que é um problema macrossocial e a Didática Libertadora que se dá no nível local da sala de aula.

Ou seja, não é a adaptação dos sujeitos aos processos vigentes de seletividade social que poderá contribuir com a redução das desigualdades sociais. Essa mera adaptação não contribui com a redução das desigualdades. As desigualdades não são enfrentadas pelo “cada um por si” e pelo “salve-se quem puder”. As desigualdades são realmente enfrentadas quando as comunidades se organizam e lutam para que (dentre outras coisas) o fundo público seja destinado à resolução dos problemas comunitários, municipais, estaduais etc., sejam eles de saúde, transporte, moradia, segurança, alimentação etc.

Em suma, lutar contra as desigualdades por meio da educação não significa adaptar estudantes para uma competição desigual cujos critérios de seletividade beneficiam os que já nasceram privilegiados. Pelo contrário, significa contribuir para que os estudantes se vejam como sujeitos coletivos e, portanto, sujeitos históricos que podem transformar a realidade quando se juntam, contestam a ordem e propõem alternativas a ela.

IHU On-Line – No que consiste a chamada “violência curricular” das escolas? E, em alguma medida, essa reforma da educação básica em curso imprime algum tipo de violência?
Valter Martins Giovedi – A violência curricular é a negação da vida humana e do seu desenvolvimento em alguma de suas dimensões a partir dos processos que se dão na educação formal (seja ela escolar ou não escolar). Na minha tese do doutorado intitulada O currículo crítico-libertador como forma de resistência e de superação da violência curricular , que foi defendida em 2012 na PUC-SP, sob a orientação da professora Ana Maria Saul , busquei desvelar diversas formas pela qual a violência curricular se manifesta no dia a dia das escolas e também a partir das decisões que são tomadas fora da escola e sobre ela recaem.

É violência, pois na escola há uma negação da dignidade humana nas suas necessidades intelectuais, culturais, afetivas, físico-biológicas, estéticas, políticas, lúdicas etc. É curricular, pois essa violência se realiza a partir do próprio funcionamento regular do currículo vigente. Ou seja, a violência não é uma disfunção temporária e pontual do funcionamento da escola. Trata-se de uma característica inerente à concepção curricular hegemônica vigente.

Nesse sentido, a violência curricular pode ser observada em acontecimentos pontuais protagonizados pelos diversos sujeitos (estudantes, professores, gestores, supervisores, dirigentes, corpo técnico-administrativo etc.) e em lógicas que estruturam o trabalho da escola: horários, disciplinas, tempos, espaços, avaliações, conteúdos, gestão, métodos pedagógicos, reuniões, falta de recursos, falta de funcionários etc.

Uma violência sempre presente

A história da violência curricular é tão longa quanto a história da escola moderna que já nasce com uma intenção homogeneizadora. Cada vez que esse impulso homogeneizador se intensifica, tanto mais a violência curricular se exacerba. Por isso, sempre que a reforma da educação básica se justificar pelo critério da qualidade auferida pelas provas de larga escala, sejam elas internacionais, nacionais, estaduais ou municipais, a tendência homogeneizadora estará regendo o processo. Isso provocará cada vez mais violência curricular, já que os sujeitos estarão cada vez mais alienados dos processos dos quais são os principais afetados.

Enfim, o enfrentamento da violência curricular não se dá por ações pontuais que atuam em focos específicos da organização escolar de modo isolado. Esse enfrentamento exige múltiplas ações que precisam recair sobre a gestão, a política educacional, a organização dos espaços, tempos, financiamento, formação permanente em serviço, avaliação, conteúdos, métodos didático-pedagógicos etc.

A perspectiva freireana acumulou experiências suficientes e bem-sucedidas. Os princípios e as ações que definem essa experiência é o que denominei como currículo crítico-libertador. É nele que eu acredito e aposto como caminho para resistir e superar a violência curricular.

IHU On-Line – De que forma a Pedagogia do oprimido pode se configurar como alternativa a essa violência curricular?
Valter Martins Giovedi – A Pedagogia do oprimido propõe que a educação deve se colocar a serviço das causas coletivas dos sujeitos que têm as suas vidas negadas em alguma dimensão. Para tanto, ela considera que a gestão, o currículo escolar e as práticas pedagógicas devem abrir-se para os corpos e para as vozes dos moradores das comunidades atendidas pela escola e dos estudantes.
Isso não é possível se os profissionais da escola não reconhecerem esses sujeitos como iguais em dignidade e necessidades. Se prevalecer o histórico preconceito pedagógico que entende o estudante e a comunidade como inferiores intelectual e politicamente, e que marca a nossa cultura institucional escolar há séculos, não existe possibilidade de Pedagogia do oprimido.

O educador libertador (seja ele professor ou gestor) é alguém que superou a crença em uma suposta desigualdade essencial entre educador e educandos, entre profissionais e comunidade. No fundo, a base da violência curricular é a velha mentalidade opressora de quem acha que sabe o que é melhor para os outros. Ela começa a ser superada quando o diálogo passa a ser o princípio forjador das relações humanas. Porém, precisa ser um diálogo que parte dos anseios, necessidades, problemas, situações significativas da comunidade e dos estudantes.

Sei que há muitas concepções educacionais que tentam responder aos problemas das escolas. Conheço muitas. No entanto, penso que a Pedagogia do oprimido é a que traz a melhor compreensão e proposta para que o diálogo se estabeleça como regra de convivência humana e a violência curricular seja paulatinamente superada.


IHU On-Line – O que é possível encontrar de perspectivas freireanas nas escolas, públicas ou privadas, do Brasil de hoje?
Valter Martins Giovedi – Essa questão começou a ser tratada no primeiro momento dessa entrevista. Por isso, agora vale a pena fazer alguns comentários complementares.

Tenho muita dificuldade de imaginar a perspectiva freireana em escolas particulares e em universidades privadas mercantis por um motivo muito simples: o objetivo maior dessas instituições é o lucro. Isso coloca muitos limites para a gestão democrático-participativa e também para a construção de currículos que partem dos sujeitos concretos. Mantenedores de escolas particulares que, em última instância, decidem as coisas do seu negócio, não vão correr os riscos da resistência às provas de larga escala e às imposições curriculares daí provenientes. Nesse contexto, o máximo que dá para fazer é algum “trabalhinho” pontual e isolado de algum professor com seus alunos. Mesmo assim, precisa ser muito bem avaliado para podermos dizer que se trata de um trabalho freireano. Reconheço a importância dessas iniciativas, porém não acredito que poderão chegar muito longe. Não existe democracia possível nas relações em que um sujeito, dono do capital, tem o poder de tomar as decisões a partir da racionalidade meramente econômica do que é bom para os seus negócios. O quanto antes aqueles que desejam a educação libertadora assumirem o espaço público como lócus de ação, tanto mais poderão viver de acordo com o seu projeto.

Como disse anteriormente, nas escolas Freire têm sido uma presença constante nos discursos, mas muito tímida nas práticas. Ultrapassar o campo das boas narrativas e intenções, desaguando em práticas permeadas pela realidade concreta como ponto de partida, pelo conteúdo significativo, pelo diálogo como princípio metodológico, pela gestão democrático-participativa paritária, pela avaliação como reflexão sobre o trabalho coletivo, pela autonomia como princípio regulador das relações interpessoais etc. ainda é um desafio para a esmagadora maioria das escolas públicas. As iniciativas nesse sentido encontram território favorável em municípios e estados com governos populares que assumem deliberadamente a perspectiva freireana como referencial de organização da política educacional.

Educação do Campo

É preciso ressaltar o quanto a Educação do Campo, forjada no interior dos movimentos sociais camponeses, em especial no Movimento dos Sem Terra - MST, e que nos últimos anos vem conquistando cada vez mais espaço na agenda educacional, tem sido influenciada por Paulo Freire. Escolas de assentamentos rurais, de acampamentos, escolas itinerantes e também escolas agrícolas que se baseiam na chamada Pedagogia da Alternância são casos que precisam ser destacados como experiências consagradas e também promissoras de reinvenção do legado de Paulo Freire. Meus olhos se enchem de alegria quando eu tomo contato com essas experiências.

De qualquer forma, não é possível decretar que todos devem a partir de amanhã referenciar-se na Pedagogia do oprimido. Isso seria um contrassenso. Nós freireanos devemos apostar no diálogo e no convencimento, abrindo-nos inclusive para os argumentos que se opõem à nossa concepção. Precisamos ouvi-los e ponderar. Só podemos falar com os nossos interlocutores quando testemunhamos a eles a nossa abertura para escutá-los.

IHU On-Line – Em 2016, o movimento secundarista realizou uma série de mobilizações e ocupações em colégios . A principal bandeira era melhorar as condições das escolas. Como compreender fenômeno com esses a partir do pensamento de Paulo Freire? E hoje, dois anos depois dessas grandes mobilizações, como o senhor observa os movimentos por melhorias no sistema educacional?
Valter Martins Giovedi – Chamei aquele momento de “Primavera Estudantil”. Acompanhei de perto no Espírito Santo, já que os estudantes do Centro de Educação da UFES (onde leciono) aderiram às ocupações. Lembro-me de que no nosso estado todo, mais ou menos, 50 escolas foram ocupadas. Foi um momento muito bacana. Até hoje guardo na minha memória o discurso feito pela estudante secundarista Ana Júlia na Assembleia Legislativa do Paraná . Fantástico, inspirador.

Foi um daqueles momentos em que os nossos jovens nos lembraram de que não existe saída para os nossos problemas fora da organização coletiva e da mobilização. Eles se arriscaram por uma causa que estava acima dos meros interesses individualistas imediatos. Era uma causa da vida pública. Uma causa que dizia respeito a toda a nação. É como se dissessem: “vocês todos os dias nos induzem à competição para ver quem vai melhor no Exame Nacional do Ensino Médio - Enem, ou para ver quem vai se dar bem no mercado de trabalho, e nós demonstramos união por algo muito maior: a dignidade coletiva”.

Em alguns momentos de sua obra, Freire nos explica que, por mais que a educação bancária tente matar a criatividade, a esperança, o ímpeto transformador, o desejo de liberdade etc., ela nunca conseguirá brecar a história. Freire não cansou de afirmar que a nossa condição humana é de possibilidades e não de determinismos. Por mais que tente, a educação opressora nunca conseguirá respostas totalmente programadas dos seres humanos. Estamos condenados a criar a partir dos condicionamentos dentro dos quais nos situamos. Freire nos dizia que aí está a raiz da esperança. A esperança não é uma teimosia. É uma constatação: seres humanos são seres da esperança.

É nesse contexto que eu interpreto freireanamente a “Primavera Estudantil”. Experiências inéditas foram vividas por aqueles estudantes. Sei disso, pois visitei umas 10 escolas no período de ocupações no estado do Espírito Santo.

Legado do movimento e necessidade de melhoras no sistema

Não sei medir o legado deste movimento. Já devem existir pesquisas nesse sentido.

Os nossos movimentos por melhorias no sistema educacional estão muito aquém do que seria necessário para que as políticas educacionais possam ser adequadas ao que necessitamos. As políticas geralmente erram na forma e no conteúdo. Geralmente são autoritárias, sem debate suficiente com os que por elas serão afetados. Geralmente são equivocadas, pois trazem propostas que sabemos que já nascem fracassadas antes mesmo de serem implantadas. Refiro-me aqui à Base Nacional Comum Curricular - BNCC . Ninguém aprende o que se decreta que deve ser ensinado. Isso é besteira.

Freire nos ensinou que os sujeitos aprendem o que suas vidas vão demandando. Ou seja, a aprendizagem é um movimento que parte dos educandos e que os educadores problematizam, trazendo elementos desconhecidos dos educandos. Esse movimento não é espontaneísta (ou seja, é planejado), mas também não ocorre de modo artificial, programado por um sabido dentro de um gabinete. Ele ocorre entre os sujeitos concretos em situações concretas.

Os formuladores da BNCC imaginam que os alunos abstratos que eles têm na cabeça deles podem servir de base para saber todos os conteúdos e habilidades que os estudantes de todos os cantos do país devem aprender em cada etapa da Educação Básica. Ou seja, ou são ingênuos, ou arrogantes, ou estão de má-fé.

Por que não conseguimos resistir a essa violência?

Estamos errando nos processos de formação e organização da categoria de professores. Sindicatos e professores universitários precisam dialogar com as necessidades dos professores e dos futuros professores. Precisam fazer levantamento dos problemas e ansiedades que ambos mais sentem em relação à profissão que exercem. Esses problemas precisam ser pautados nos momentos de formação. Do contrário, professores e estudantes que se formam para serem professores não vão se identificar com as reflexões propostas. O protagonismo da categoria docente na construção das políticas municipais, estaduais e nacionais não ocorrerá de modo espontâneo. Ele pode ser estimulado, provocado, incentivado. As lideranças e os professores de Ensino Superior precisam ficar atentos para descobrir quais são os “temas geradores” que trarão os futuros e os atuais educadores e educadoras para as disputas no espaço público.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Valter Martins Giovedi – Já estou vacinado contra a crença disseminada por muitos de que não há nada mais a ser feito. Aliás, caso alguém trabalhe na educação e já “jogou a toalha”, fatalmente entrará em um processo autodestrutivo contínuo. O que define a nossa profissão é a possibilidade de ver os estudantes falando algo que não diziam, propondo algo que não propunham, lendo algo que não leriam, reconhecendo algo que não reconheceriam sem a nossa intervenção.

Nossa profissão é uma das que mais favorece o sentimento otimista, pois, apesar de tudo que leio nos jornais, ouço de muitas pessoas, vejo no mundo etc., sei que amanhã vou me encontrar com meus alunos e alunas e com eles vou construir sentidos para os acontecimentos. Desses sentidos, alternativas vão aparecer. Eles vão falar de suas descobertas e vão me fascinar com aprendizados. Vários demonstrarão gratidão por aqueles encontros.

Em suma: quem atua nas bases, ou seja, quem atua na formação básica de seres humanos está em um lugar privilegiado para esperançar.■

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