Edição 528 | 17 Setembro 2018

Catolicismo: uma ponte para ligar a China ao mundo

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João Vitor Santos e Ricardo Machado | Tradução: Isaque Gomes Correa

Para Francesco Sisci, apesar do crescimento e da influência econômica, ainda há uma lacuna entre o gigante asiático e o Ocidente, mas que pode ser preenchida pela Igreja

Acolhendo a ideia de que o mundo de hoje é predominantemente alicerçado em valores e lógicas ocidentais, só seria possível de fato conquistar esse mundo se estivesse em consonância com essas perspectivas. É olhando por essa perspectiva que se pode compreender porque a abertura da China em relação à Igreja Católica tem se dado de forma tão intensa nos últimos tempos. “Se a China quer se tornar uma grande potência, precisa se enquadrar neste mundo e, de novo, ganhar apoio. Neste processo de dar-se bem com a Igreja Católica, talvez a China possa aprender muito”, destaca Francesco Sisci. Para ele, pela primeira vez a China compreendeu a importância da influência da Santa Sé no mundo. “Do lado do Vaticano, penso na compreensão deste papa que vem da América Latina, uma compreensão não envolvida grandemente no pensamento romano”, completa, ao pontuar o grande interesse desse pontificado em acolher diversas formas de ‘ser católico’.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Sisci observa os meandros dessa relação que parece servir para ambos os lados. “É claro que não existe nenhuma solução mecânica: você fica comigo um mês e, então, aprenderá a falar a minha língua. Não é assim”, complexifica. Além disso, observa que essas relações não podem ser reduzidas a categorias imperialistas em uma tentativa de usar do outro para ganhar espaço. “Não penso haver uma estratégia chinesa de expansão. O que acontece é que, de fato, a China cresce economicamente e cresce também em sua pegada política, econômica e, evidentemente, cultural”, analisa. E completa: “O que eu diria é que na expansão chinesa — econômica, política e cultural (expansão da sua influência) —, a religião pode desempenhar uma função. Isto é, a China precisa do cristianismo, de novo, para preencher uma lacuna com o restante do mundo”.

Francesco Sisci é italiano, escritor e especialista na civilização e história chinesas. Atualmente é pesquisador sênior da People’s University da China e, desde o país asiático, escreve para diversas publicações sobre questões geopolíticas. Em 2016, o papa Francisco concedeu a ele a primeira entrevista sobre a China que teve grande repercussão no mundo todo . Entre seus livros publicados, destacamos China: in the Name of Law. A New Global Order (goWare, 2016), La Cina cambia. Piccola antropologia culturale dei grandi mutamenti a Pechino (goWare, 2015) e Chi ha paura della Cina (Ponte alle Grazie, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação sobre a atual relação entre a China e a Santa Sé?
Francesco Sisci – Essa questão é extremamente importante, porque a China é a potência emergente no mundo. E, pela sua ascensão, tem transformado muitos elementos geopolíticos também. No entanto há inúmeras questões, como o fato de a China, por vários motivos, ser muito diferente do resto do mundo, mas que tem adotado práticas ocidentais, queiramos ou não.

Por outro lado, a grande questão é que não se pode simplesmente desejar que a China vá embora. A China veio para ficar e terá um impacto. Mas também devemos evitar um choque entre a China e o restante do mundo. Nesse sentido, a Santa Sé pode desempenhar um enorme papel na tentativa de preencher a lacuna de compreensão entre esse país e o mundo, pois o Vaticano, a Santa Sé, tem interesse na paz. Portanto, nesse sentido, a normalização das relações poderia ser extremamente importante para todos.

IHU On-Line – Que mudanças, numa perspectiva histórica, esse pontificado tem trazido à relação Santa Sé e China?
Francesco Sisci – Vejo mudanças mais intensas, por vários motivos. Do lado chinês, a razão é que a China, pela primeira vez, percebeu a importância da influência da Santa Sé. E, portanto, aqui há um interesse na normalização das relações. Pela primeira vez, o governo chinês está disposto a avançar nessa relação.

Do lado do Vaticano, penso na compreensão deste papa que vem da América Latina, uma compreensão não envolvida de forma mais profunda o pensamento romano. Penso também neste secretário de Estado, Parolin , quem tem grande experiência em lidar com os chineses. Aqui temos uma combinação de duas figuras que têm uma abordagem e uma experiência novas ao lidar com a China. A química pode funcionar.

No entanto, há um problema. Isto é, nas últimas duas décadas, a atmosfera internacional em torno da China esteve positiva para a normalização das relações. E também essa atmosfera esteve positiva em torno da Igreja Católica. Hoje, há uma atmosfera em torno da China muito negativa. Uns pensam que existe uma guerra comercial, e há inúmeros choques geopolíticos com o país. Então, há elementos positivos, mas também elementos negativos. Devemos observar como as coisas vão se desdobrar.

IHU On-Line – Como está, hoje, a relação do episcopado chinês com o papa Francisco?
Francesco Sisci – Penso que existe um grande apreço pelo papa Francisco. Eles leem as homilias, os seus discursos e o Papa consegue, de algum modo — estes materiais também são traduzidos para o chinês — tocar a alma do povo. O Papa fala aos chineses por tratar de temas, eu diria, comuns. Ele é um pastor, consegue se fazer presente, o que o difere dos outros papas que, de fato, não conseguiram comunicar o que o povo chinês sentia.

IHU On-Line – Como é ser católico na China? Por outro lado, em que medida a China se abriu ao catolicismo?
Francesco Sisci – Eis um tema longo e complexo. Como é ser católico na China não é grande coisa. Quero dizer, vamos à igreja, vamos à missa. Não há restrições, a menos que se queira fazer algo do tipo fora da lei. Mas se a pessoa quer se comportar — se a pessoa se comporta — dentro da lei, não há, de fato, nenhuma restrição.

O catolicismo na China tem uma história complexa, muito longa. Eu diria que ela foi muito importante no século XVII com os jesuítas , mas que ficou confinada somente em Pequim, só dentro da corte do imperador. E então, depois que a ordem dos jesuítas foi dissolvida, seus membros foram mandados embora e alguns permaneceram na clandestinidade.

O catolicismo retornou no meio do século XIX com as tropas francesas, com a Segunda Guerra do Ópio . Desde então, o catolicismo tem estado marcado por elementos do colonialismo. E este fator permaneceu por muitas e muitas décadas. Só recentemente eu diria que a Igreja Católica conseguiu rever estes elementos colonialistas e renascer na China.

IHU On-Line – Que associações podemos fazer entre o soft power chinês e a aproximação com o Vaticano?
Francesco Sisci – Em teoria, a China precisa do Vaticano. A China tem uma visão de mundo diferente, este país precisa de uma narrativa diferente. Nesse sentido, aprender com o Vaticano, permanecer com a Santa Sé, em teoria, pode ajudar o país. É claro que não existe nenhuma solução mecânica: você fica comigo um mês e, então, aprenderá a falar a minha língua. Não é assim. É mesmo uma oportunidade, mas esta oportunidade precisa ser explorada, e não sabemos, na verdade, no que irá resultar.

IHU On-Line – Essas aberturas da China a outras culturas seriam uma nova forma de se sobrepor e impor sua lógica ao diferente, o outro?
Francesco Sisci – Em teoria, sim, porque se exige dos católicos chineses que sejam tanto chineses quanto universais. Eles têm que se fundar na cultura chinesa, mas, ao mesmo tempo, têm de pertencer à Igreja universal. Isto é típico da fé católica. Como disse o papa Francisco, a Igreja Católica respira com dois pulmões: um é o pulmão local e o outro é o pulmão universal. São necessários dois pulmões para respirar adequadamente.

Isso pode não servir só para os católicos. O povo chinês também precisa ser, evidentemente, chinês e universal. Eles não podem se isolar do mundo, precisam pertencer ao restante do mundo. Então, de certa forma, os chineses — todos os chineses — precisam se tornar mais universais. Talvez a Igreja Católica tenha de se tornar mais chinesa na China, mas certamente o povo chinês precisa se tornar mais católico, universal, também.

IHU On-Line – Em que medida a ascensão da China como uma potência mundial pode impactar a cultura ocidental?
Francesco Sisci – A ascensão da China como potência mundial é uma grande incógnita. Há muitas questões, muitas preocupações. A China precisa abordá-las. Não é possível ascender a uma grande potência e assustar a todos. É preciso apoio do exterior assim como, evidentemente, dentro do próprio país. Não se pode ignorar a oposição que se tem fora dele. Portanto, se a China quer se tornar uma grande potência, precisa se enquadrar neste mundo e, de novo, ganhar apoio. Neste processo de dar-se bem com a Igreja Católica, talvez a China possa aprender muito.

IHU On-Line – A democracia, categoria tipicamente ocidental, poderia ser soterrada pelo soft power chinês?
Francesco Sisci – A democracia é uma ferramenta de governo, um instrumento de governo. Não é que o Ocidente sempre fez uso da democracia o tempo todo, pois houve épocas em que havia rei, havia imperadores. Quero dizer, durante a maior parte da história ocidental não houve democracia. No entanto, hoje, a democracia é o menor mal das ferramentas de governo. E de fato acredito que a China precisa de algumas reformas democráticas.

Dito isso, a aproximação com a Igreja Católica pode ajudar a China? Não sei. Espero que sim. Definitivamente, não acho que a Igreja esteja no negócio de difundir democracia. Claro que ela se preocupa com a liberdade de crença, com o bem-estar do povo, mas a Igreja não é uma espécie de instituição política que visa impor a democracia, ou o que quer que seja. Portanto, tenho certeza de que há alguma relação entre a Igreja Católica, a China e a democracia. Mas, de novo, não é uma relação mecânica.

IHU On-Line – Como avalia a relação do partido comunista chinês com outras religiões? Qual a questão de fundo presente quando de Xi Jinping fala sobre as religiões?
Francesco Sisci – Xi Jinping fala sobre religião e o seu antecessor, Hu Jintao , falava também. Desde o 17º Congresso do Partido em 2007, eles perceberam que a religião pode desempenhar um papel bastante positivo no que chamaram de harmonia social. Perceberam que a sociedade é complexa, que é difícil administrar e, nesta administração da sociedade, a religião pode ter uma boa função. E, na verdade, temos aqui um avanço importantíssimo no sentido de que a religião pode ter um papel bastante positivo na administração da sociedade. Mas também o Partido Comunista quer se certificar de que ele possui o comando, que possui o poder político. Então, aqui estamos num campo bastante delicado. É claro que a Igreja quer manter todos os seus poderes religiosos, e que o Partido Comunista, na China, quer manter todo o seu poder político.

No entanto, só por causa disso — um tem a ver com política, um tem a ver com religião — em teoria, é que pode haver espaço para um compromisso, porque as duas áreas, as duas esferas, teoricamente não se tocam. Uma tem a ver com política; a outra, com religião. Na prática, é claro, mas as coisas não são tão claras. Se os dois lados estiverem dispostos, em teoria essas questões podem ser superadas, de um jeito ou de outro.

IHU On-Line – A mesma China que cresce e conquista mais espaço no cenário global, parecendo se abrir para as religiões, tem, hoje, segundo as Nações Unidas, mais de três milhões de muçulmanos uigures detidos em campos de “reeducação”. Como compreender essa realidade?
Francesco Sisci – A situação dos uigures é horrível, muito triste. Ao mesmo tempo, a questão [da Região Autônoma Uigur] de Xinjiang é também muito complexa. Havia fundamentalistas islâmicos em Xinjiang. Entretanto, é impossível achar que três milhões de pessoas, um milhão de pessoas ou centenas de milhares de pessoas estiveram envolvidas com o terrorismo ou fundamentalismo. O que aconteceu foi um erro grosseiro de administração pelo poder chinês em Xinjiang durante, pelo menos, os últimos trinta anos, por motivos que são complexos demais para tratarmos aqui. O atrito entre os uigures e os hans , a maioria chinesa, ficou mais acirrada nestes trinta anos.

Na verdade, o atrito esteve relativamente contido, mas depois se acirrou. A China errou na administração destes conflitos. Aí, elementos do extremismo muçulmano revidaram. Nessa situação, o governo chinês reagiu conforme o seu sistema imperial, isto é, o de conter a população inteira. Não deixar ninguém do lado de fora. E daí, assim que todos estão contidos, permite-se soltar lentamente aqueles que são considerados seguros, por assim dizer.

A China poderia ter lidado com esta situação de uma forma diferente? Penso que sim. Mas, ao mesmo tempo, a China é a China. A China não é o Brasil, não é os Estados Unidos, não é a Itália. A China carrega a sua própria cultura, cultura que precisa mudar também na forma de lidar com temas complicados, como o terrorismo. No momento, a cultura chinesa de lidar com o terrorismo remonta aos tempos imperiais, isto é, isola-se um grupo e, depois, vê o que se faz. Infelizmente é assim.

IHU On-Line – Dentro desta estratégia da expansão chinesa, qual o espaço para a diversidade religiosa?
Francesco Sisci – Honestamente, não penso haver uma estratégia chinesa de expansão. O que acontece é que, de fato, a China cresce economicamente e cresce também em sua pegada política, econômica e, evidentemente, cultural. Mas é diferente, pensar algo em Pequim e mandar tropas para a Itália ou o Rio de Janeiro. É diferente. Então, eu não chamaria de uma estratégia de expansão. Não acho que seria uma avaliação justa.

Mas o que eu diria é que na expansão chinesa — econômica, política e cultural (expansão da sua influência) —, a religião pode desempenhar uma função. Isto é, a China precisa do cristianismo, de novo, para preencher uma lacuna com o restante do mundo. Na maior parte do mundo, os valores cristãos são muito importantes. E com os cristãos, tem consigo este espírito duplo de serem tanto locais quanto globais. Portanto, os cristãos chineses podem ajudar os demais chineses a se tornarem mais globais e, eu diria, os chineses poderiam se tornar mais globais na compreensão das questões que se levantam em seu país.■

Leia mais

- China-Vaticano: vigília de um possível acordo. Artigo de Francesco Sisci, reproduzido nas Notícias do Dia de 25-2-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- China e Santa Sé. Como quebrar a confiança. Artigo de Francesco Sisci e Francesco Strazzari, reproduzido nas Notícias do Dia de 18-2-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Os mistérios chineses na guerra comercial com os Estados Unidos. Artigo de Francesco Sisci, reproduzido nas Notícias do Dia de 18-8-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- O papel de liderança do Partido da China sobre as religiões. Entrevista com Francesco Sisci, reproduzido nas Notícias do Dia de 14-8-2018, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

- Papa Francisco instiga o mundo a não temer a ascensão da China. Entrevista com papa Francisco concedida a Francesco Sisci, reproduzida nas Notícias do Dia de 5-2-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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