Edição 528 | 17 Setembro 2018

Constituição da literatura brasileira foi tema central para Candido

close

FECHAR

Enviar o link deste por e-mail a um(a) amigo(a).

Vitor Necchi

Walnice Galvão afirma que seu mestre se interessava pelo vínculo da produção literária com a vida social, procurando determinar a sua função

A professora Walnice Nogueira Galvão tinha uma relação muito próxima com Antonio Candido. Foi aluna, orientanda, colega e amiga. Esses vínculos permitem que ela comente não apenas a trajetória intelectual de seu mestre, mas também questões prosaicas, como o apreço dele pela cultura caipira e por óperas. “Um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve”, define em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Ela considera Candido o melhor professor que já viu em ação. “A clareza e o didatismo eram objetivos centrais nas aulas dele.” Em suas pesquisas, era tema central a questão da constituição da literatura brasileira. Ele “acompanha esse processo de formação como o desejo dos brasileiros de terem uma literatura própria, autônoma, e várias gerações trabalharam neste sentido até obter resultado”. Chamou esse mecanismo de “adaptação de modelos”. O professor se interessava pelo vínculo da produção literária com a vida social, procurando determinar a sua função. Walnice aponta que isso foi fundamental para a reflexão dele.

Candido era muito rigoroso quanto ao método. “Sempre foi contra a metodologia única”, afirma. “Lutava por uma metodologia que chamava de método integrativo, ou seja, procurava associar vários métodos, estar atento aos dados psíquicos, sociais, formais, estéticos e assim por diante.”

Toda semana, Walnice tomava chá com seu mestre. A proximidade permite que ela resuma as percepções dele a respeito da política e da realidade brasileira: “Estava muito preocupado com os rumos que o país estava tomando e com o desmonte progressivo de todas as conquistas das últimas décadas, principalmente de direitos humanos”. Ele lidava “muito filosoficamente” com a longevidade e a perspectiva da morte. “Sempre foi um ateu. Não tinha nada de religioso em sua personalidade. Sabia que a finitude é um dado, e encarava isso muito filosoficamente, como os estoicos, dos tempos romanos.”

Walnice Nogueira Galvão é professora emérita aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - USP. Graduada em Ciências Sociais, doutora em Letras (orientada por Antonio Candido) e livre-docente pelo Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Tem 40 livros publicados. Foi docente em diversas universidades no exterior. Atuou como primeira assistente de Candido e o substituiu na disciplina de Teoria Literária e Literatura Comparada.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A senhora teve uma intensa convivência com Antonio Candido. Foi sua aluna, primeira assistente e o substituiu nas disciplinas de Teoria Literária e de Literatura Comparada. Quais são as memórias mais marcantes que a senhora tem dele?
Walnice Nogueira Galvão – Antonio Candido era um excelente professor, marcante. Deu as melhores aulas a que já assisti na vida. Eram muito bem preparadas de antemão, visavam à clareza e à explicação daquilo que ele expunha. Ele se interessava, com uma imensa atenção, a quem estava ouvindo. Ele se desdobrava para que os alunos entendessem o que falava. A clareza e o didatismo eram objetivos centrais nas aulas dele, e ensinava os assistentes a prepararem aula. Dizia sempre: nunca improvisem nada. Ensinava com minúcia. Uma aula de 50 minutos equivale a quatro páginas de papel ofício datilografadas em espaço duplo. O tempo dá certinho com os comentários feitos em volta dessas quatro páginas. E se escrever as aulas, ao fim de dois ou três anos, tem-se um ensaio pronto para um livro. Dava o bom exemplo.

IHU On-Line – Como a senhora define Antonio Candido?
Walnice Nogueira Galvão – Era muito afável, de uma cortesia impecável. Um dos maiores intelectuais que o Brasil já teve. A meu ver, ele ombreia com os intelectuais que escreveram tratados que formaram a cabeça de todo mundo que veio depois deles: Gilberto Freyre, com Casa grande & senzala, Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil, Caio Prado Júnior, com História econômica do Brasil, e pouco depois deles, Antonio Candido, com Formação da literatura brasileira. Esses quatro são um marco do século 20.

IHU On-Line – No caso específico de Candido, que atributos reforçam ele ser este marco intelectual no pensamento brasileiro?
Walnice Nogueira Galvão – Ele encarou a questão da constituição da literatura brasileira, que começou copiando a portuguesa e, quanto mais copiava, mais se aproximava da originalidade, até que, em certa altura – e isso de seu na passagem do Arcadismo para o Romantismo –, a literatura brasileira se tornou autônoma, e não tinha mais nada a ver com a portuguesa. Ele acompanha esse processo de formação como o desejo dos brasileiros de terem uma literatura própria, autônoma, e várias gerações trabalharam neste sentido até obter resultado. O mecanismo desse processo é o que ele chamou de adaptação de modelos.

IHU On-Line – Quais são as obras fundamentais dele e por quê?
Walnice Nogueira Galvão – A Formação é um tratado de 800 páginas, algo extraordinário como pesquisa, como ponto de vista original. Fora esse, tem vários livros. Ele trabalhava assim: publicava artigos e ensaios, depois um dia transformava esse material em um livro coeso. Passos importantes desse trabalho estão, por exemplo, em A educação pela noite (Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul), Tese e antítese (Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul), Vários escritos (Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul), O discurso e a cidade (Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul), e finalmente o último livro dele, que foi O albatroz e o chinês (Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul). Todos esses livros são dedicados à literatura brasileira e à literatura internacional. Ele era um grande especialista em vários campos de literatura internacional. A disciplina que ele criou na universidade se chamou Teoria Literária e Literatura Comparada. Portanto, a literatura internacional estava dentro deste projeto.

IHU On-Line – Em comparação a outros críticos, qual a estatura intelectual de Candido em nível internacional? Como é a recepção da obra dele no exterior?
Walnice Nogueira Galvão – Ele era uma pessoa extremamente discreta, reservada e modesta e, portanto, tem poucas antologias publicadas em outros países e outras línguas. Para mim, que leio muitos críticos, ele sombreia. Acho ele melhor que Harold Bloom . Sem dúvida, está em nível internacional.

IHU On-Line – A atuação de Candido na imprensa produziu que efeito para a formação de um pensamento crítico acerca da produção literária?
Walnice Nogueira Galvão – A atuação dele na imprensa foi estratégica, pois começa muito cedo. Nos anos 1940 já estava fazendo crítica nos jornais. Era uma personalidade extremamente democrática no trato com as pessoas, com os subordinados. Sempre tinha em mente a divulgação, atingir um público maior, fora da universidade, e trabalhou muito para isso, publicando bastante em jornal e revista.

IHU On-Line – Isso também ajuda a explicar a intensa atividade política dele?
Walnice Nogueira Galvão – Sim. Quando caiu a ditadura Vargas , no fim da Segunda Guerra Mundial, Antonio Candido foi fundador de uma tendência política chamada Esquerda Democrática , que dois anos depois se tornou o Partido Socialista, do qual ele fez parte até o golpe de 64 fechar o partido. Ele foi durante muitos anos o editor da revista do partido chamada Folha Socialista. Depois disso, quando terminou a ditadura militar, foi fundador do Partido dos Trabalhadores - PT, em 1980. Sempre foi socialista.

IHU On-Line – Essa afiliação política de Candido, e principalmente o viés socialista que a senhora destacou, gerava algum tipo de crítica ou refratariedade no ambiente acadêmico?
Walnice Nogueira Galvão – Bastante, mas isso é normal. O ambiente acadêmico não é de esquerda, sobretudo o establishment acadêmico.

IHU On-Line – Candido afirmou que se interessava pelo vínculo da produção literária com a vida social, procurando determinar a sua função. Como isso impactou sua obra?
Walnice Nogueira Galvão – Isso foi fundamental para a reflexão dele. Ele desenvolveu isso ao longo da vida e chegou a uma série de conclusões. O que ele procurava e ensinava para nós era: o que de dentro da obra literária era reelaboração de dados externos, ou seja, da vida social. Como isso passava para dentro da obra literária. Saber com que mecanismos de adaptação e de adequação isso ocorria. É muito difícil que seja direto. Em geral é mediado por figuras retóricas, símbolos, metáforas, alegorias. Como isso vai parar dentro da obra, como a obra literária elabora o exterior a ela.

IHU On-Line – Candido era um ensaísta que cultivava a “paixão do concreto”, conforme ele se referia a um tipo de leitura por meio da qual as categorias analíticas emanassem da obra e de seu contexto. Ele era rigoroso quanto ao método?
Walnice Nogueira Galvão – Muito, muitíssimo. A questão metodológica seria uma questão quase que de rigor no sentido de ter coerência, explicar as coisas com clareza, que o que for escrito tenha começo, meio e fim, e sem bobagens. Cortar o excesso. Ele sempre foi contra a metodologia única. Acontece muito entre nós, aliás, no mundo inteiro, de entrar uma nova metodologia na moda e sair todo mundo correndo para trabalhar só com aquilo. Isso dura dez anos e aparece outra. Ele tinha uma posição contra isso. Pegou, por exemplo, a moda do estruturalismo, e hoje acho que ninguém mais sabe o que é. Ele discutiu, não podia ser só estruturalista. Lutava por uma metodologia que chamava de método integrativo, ou seja, procurava associar vários métodos, estar atento aos dados psíquicos, sociais, formais, estéticos e assim por diante.

IHU On-Line – Candido se definia como um radical de classe média. Qual o alcance e o significado disso?
Walnice Nogueira Galvão – Ele escreveu muito a respeito. Por exemplo, naquele belo ensaio chamado Radicais de ocasião. Radicais de classe média são pessoas que têm uma extração de privilégios, mas ainda assim têm ideias e militância de esquerda.

IHU On-Line – A senhora conviveu com Candido nos seus últimos anos de vida?
Walnice Nogueira Galvão – Tomava chá com ele todas as semanas.

IHU On-Line – Que percepções e entendimentos ele compartilhava com a senhora a respeito da política e da realidade brasileira dos últimos tempos?
Walnice Nogueira Galvão – Estava muito preocupado com os rumos que o país estava tomando e com o desmonte progressivo de todas as conquistas das últimas décadas, principalmente de direitos humanos.

IHU On-Line – Como ele se mantinha informado?
Walnice Nogueira Galvão – Não queria saber de computador. Lia jornais, assistia televisão e conversava com as pessoas.

IHU On-Line – Estava mais reservado?
Walnice Nogueira Galvão – Havia um fluxo constante de pessoas que o procuravam e visitavam.

IHU On-Line – Quanto ao legado intelectual de Antonio Candido, que tratamento é dado à obra dele? Quais são os principais expoentes para um aprofundamento do legado dele?
Walnice Nogueira Galvão – Antonio Candido teve muitos orientandos de tese, preparou muitas pessoas que hoje estão espalhadas pelo Brasil inteiro disseminando o que aprenderam com ele. Isso é uma bela herança.

IHU On-Line – O que mais a senhora destaca sobre Antonio Candido?
Walnice Nogueira Galvão – Dois pontos. Um é sua firmeza nas posições políticas – apesar das ditaduras, apesar dos percalços. Outro ponto a destacar é seu apreço pela cultura caipira, objeto de sua tese de doutoramento em Sociologia, Os Parceiros do Rio Bonito. Passou a infância no interior de Minas Gerais, teve contato com a cultura caipira e conservou esse apreço pelo resto da vida. Ele cantava muito moda caipira, por exemplo. Houve uma sessão de homenagem na Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] por motivo do centenário, quando falei sobre ele, e foi convidado Ivan Vilela para fazer um show de viola caipira, em especial homenagem a Antonio Candido.

IHU On-Line – Ele tinha apreço por alguma canção caipira em particular?
Walnice Nogueira Galvão – Sim. Ele escreveu muito sobre o Cururu , que é uma dança cantada caipira. Passou a vida inteira colecionando discos de Cururu e pesquisando sobre o tema. Em 2007, o ator Paulo Betti procurou Antonio Candido porque queria montar um espetáculo sobre o Cururu e o entrevistou em três sessões. Ninguém sabia da existência dessa entrevista, mas recentemente houve uma sessão de homenagem a Candido na USP, quando o nome dele foi dado ao prédio da Letras, e o descerramento da placa ocorreu com a presença das três filhas. A diretoria da faculdade convidou Paulo Betti para ler trechos de Os Parceiros do Rio Bonito. Nesta ocasião, o ator ofereceu um CD com as entrevistas. Eu transcrevi esse material. Ficou uma maravilha. Deu 30 páginas, e será publicado agora em uma revista da USP.

IHU On-Line – E sobre as óperas, qual o repertório de preferência dele?
Walnice Nogueira Galvão – Ele gostava das óperas de Mozart, Wagner, Verdi e Rossini. Tinha apreço especial pelo grande tenor Caruso. Ele tinha uma coleção de 800 discos e 5 mil fotografias. O acervo dele de papéis e coleções foi para o IEB [Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo]. A biblioteca foi para a Unicamp. Tu não fazes ideia. São 45 mil itens. Cadernos em que ele escrevia artigos, aulas, cursos, pensamentos etc. tem 90. Calculei em cem anos para debulhar este acervo. Ele era muito metódico na guarda do material. O que meus avôs chamavam de sistemático. Não deixou uma bagunça, tudo está classificado e etiquetado.

IHU On-Line – Como ele lidava com a longevidade e a perspectiva da morte?
Walnice Nogueira Galvão – Muito filosoficamente, eu diria. Sempre foi um ateu. Não tinha nada de religioso em sua personalidade. Sabia que a finitude é um dado, e encarava isso muito filosoficamente, como os estoicos, dos tempos romanos. ■

Últimas edições

  • Edição 552

    Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

    Ver edição
  • Edição 551

    Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

    Ver edição
  • Edição 550

    Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

    Ver edição