Edição 528 | 17 Setembro 2018

Candido e Bloom procuram entender a tradição literária no Novo Mundo

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Vitor Necchi

Para Ian Alexander, autores pensam a tradição a partir de um idioma de origem europeia, que chegou às Américas por um processo de colonização

O professor Ian Alexander, natural da Austrália, entrou em contato com a obra de Antonio Candido em 2007, quando começou a cursar o doutorado em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, onde atualmente leciona. Em sua pesquisa, analisou o desdobramento da literatura ocidental no Novo Mundo a partir de duas grandes abordagens desse processo: a Formação da Literatura Brasileira, de Candido, e O Cânone Ocidental, de Harold Bloom. A partir desse percurso, concluiu que “a maior diferença entre os dois é que Candido tem uma visão social da literatura, enquanto Bloom parece pensar em termos puramente psicológicos e individuais”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Alexander afirmou que “a grande semelhança é que os dois procuram entender como funciona a tradição literária no Novo Mundo”. Cada um dos autores “pensa a tradição a partir de um idioma de origem europeia, que chegou às Américas por um processo de colonização, mas que agora têm mais falantes no Novo Mundo do que no Velho”. Outra particularidade é que “cada um também pensa a partir de uma das grandes cidades das Américas: Candido se formou e trabalhou em São Paulo, maior cidade do maior país da língua portuguesa, e Bloom é de Nova York, maior cidade do maior país da língua inglesa”.

Bloom, em O Cânone Ocidental, coloca William Shakespeare como figura central, “de tal maneira que mesmo os autores anteriores, como Dante e Montaigne, são discutidos em termos dele”. Candido, em Formação, “faz um afunilamento parecido, tendo Machado de Assis como ponto de chegada, sem nunca explicar como o legado do escritor fluminense seria absorvido e superado pelo modernismo paulistano, que escolheu se insurgir contra o alvo menor do parnasianismo”.

Ao detalhar mais a perspectiva de Candido, Alexander afirma que o modelo do autor “pressupõe um Brasil que é o centro do mundo lusófono, que não tem nenhum país vizinho que fale a mesma língua, e que contém apenas um sistema literário”. Dessa forma, “nenhum outro país no Novo Mundo pode gozar desse tipo de centralidade em relação a sua língua, então esse aspecto do modelo dificilmente se aplica a outros países”. O modelo desenvolvido por Candido, para ser aplicado em casos como a relação entre as literaturas produzidas no Uruguai ou na Argentina, por exemplo, ou entre as literaturas australiana e estadunidense, “teria que se abrir à possibilidade de analisar um sistema pernambucano, ou um sistema sul-rio-grandense, articulados com os sistemas paulista e fluminense”.

Ian Alexander é bacharel em Literatura e História pela University of Sydney, especialista em Literatura e especialista em Pedagogia pela Northern Territory University, mestre em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É professor da UFRGS.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor pesquisou o desdobramento da literatura ocidental no Novo Mundo e analisou duas grandes abordagens desse processo: a Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, e O Cânone Ocidental, de Harold Bloom. Em que os dois autores se aproximam e se dissociam?
Ian Alexander – Talvez a maior diferença entre os dois é que Candido tem uma visão social da literatura, enquanto Bloom parece pensar em termos puramente psicológicos e individuais. No conceito dele de influência, não há nenhum espaço para considerar a sociedade como fator na produção ou na recepção da literatura: um leitor se torna escritor apenas através do efeito que sofre ao ler a obra de um precursor. As outras diferenças entre Candido e Bloom, que são muitas, me parecem consequências das suas semelhanças aplicadas em circunstâncias históricas diferentes.

A grande semelhança é que os dois procuram entender como funciona a tradição literária no Novo Mundo. Cada um pensa a tradição a partir de um idioma de origem europeia, que chegou às Américas por um processo de colonização, mas que agora têm mais falantes no Novo Mundo do que no Velho. Cada um também pensa a partir de uma das grandes cidades das Américas: Candido se formou e trabalhou em São Paulo, maior cidade do maior país da língua portuguesa, e Bloom é de Nova York, maior cidade do maior país da língua inglesa. Cada um conceitua a tradição de tal maneira que possa ser centrada naquela cidade, mais pela força de vontade que pelas próprias obras literárias. Para estabelecer essa centralidade, cada um faz um esforço inicialmente para concentrar a tradição literária na antiga capital imperial (Rio de Janeiro, Londres), para depois efetuar a transferência para a sua cidade (São Paulo, Nova York).

O Cânone Ocidental de Bloom tem William Shakespeare como figura central, de tal maneira que mesmo os autores anteriores, como Dante e Montaigne , são discutidos em termos dele. Depois de todo esse esforço para afunilar a tradição ocidental, o capítulo que menos fala em Shakespeare é aquele que pretende transferir a herança do autor londrino ao poeta nova-iorquino Walt Whitman . A Formação de Candido faz um afunilamento parecido, tendo Machado de Assis como ponto de chegada, sem nunca explicar como o legado do escritor fluminense seria absorvido e superado pelo modernismo paulistano, que escolheu se insurgir contra o alvo menor do parnasianismo.

O que sofre com esse afunilamento é tudo que ameaça a centralização na figura e no lugar escolhidos. Para poder colocar Shakespeare no centro da sua tradição, Bloom inclui treze escritores de língua inglesa e apenas três franceses – Montaigne, Molière e Proust –, como se o romance do século XIX fosse uma empreitada exclusivamente anglófona. Para poder estabelecer uma entidade chamada de sistema literário brasileiro, focado exclusivamente no Rio, Candido exclui qualquer possibilidade de outros sistemas literários no território brasileiro, dizendo, por exemplo, que Gregório de Matos só passa a existir literariamente quando lido no centro do império, não valendo nada a sua presença numa tradição baiana.

IHU On-Line – A obra mais célebre de Antonio Candido trata da formação da literatura brasileira. O modelo cunhado por ele é aplicável a outros contextos? Por quê?
Ian Alexander – Só com modificações fundamentais.

Em primeiro lugar, é um modelo que pressupõe uma divisão de literaturas distintas dentro da mesma língua, conforme as fronteiras de países. James Joyce faz parte da literatura de língua inglesa sem deixar de ser irlandês, e Franz Kafka faz parte da literatura de língua alemã apesar de ter nascido em Praga, mas o modelo da Formação não permite tratar das literaturas lusófonas de países distintos como partes do mesmo organismo. Esse modelo da mesma língua nacional dividida entre ex-metrópole e ex-colônia só funciona com a literatura no Novo Mundo, ou seja, na parte da cultura ocidental que fica fora da Europa.

Em segundo lugar, é um modelo que não permite que vários sistemas locais se articulem num sistema maior. Se Candido investe contra a possibilidade de uma literatura lusófona para além do nível do país, ele se opõe mais fortemente ainda contra a possibilidade de reconhecer, por exemplo, um sistema baiano que coexiste e se articula com um sistema fluminense. Como visto no exemplo de Gregório de Matos, é apenas o sistema central – o sistema mineiro-fluminense-paulista – que pode ser chamado de brasileiro, e outras obras só passam a existir literariamente dentro dele.

O uruguaio Ángel Rama inicialmente se empolgou com as teorias de Candido e procurou aplicá-las no seu país, mas logo descobriu que não faz sentido pensar numa literatura uruguaia a não ser em relação à literatura argentina, porque as duas são tão intimamente ligadas. Se o modelo da Formação não se aplica fora do Novo Mundo, também não se aplica em países cuja literatura existe em relação a um vizinho maior: ou a literatura uruguaia tem que se sustentar em isolamento, ou deixa de ser uma literatura, e se torna apenas um elemento da literatura argentina.

A definição do sistema literário de Candido, o famoso triângulo de autores, obras e público, esconde a materialidade do livro, como se os mecanismos de publicação e de distribuição não precisassem existir, mas mesmo o famoso Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel García Márquez , teve a sua primeira edição publicada em Buenos Aires. Com esse nível de dependência entre escritor e obra colombianos e editora e público argentinos, não parece ser possível falar de uma literatura colombiana nos termos de Candido. Além do Brasil, quantos países no Novo Mundo podem se considerar literariamente autossustentáveis? Os Estados Unidos? O México? A própria Argentina?

Em terceiro lugar, o modelo de Candido é baseado não apenas na separação entre as literaturas do Novo Mundo e do Velho, mas na capacidade de abrir mão do próprio passado literário da língua. Enquanto Bloom, por exemplo, procura absorver a tradição britânica (e ocidental) dentro da tradição estadunidense, Candido se coloca no ângulo dos românticos fluminenses e aceita a rejeição e a irrelevância de Portugal. Nessa visão, quando Machado de Assis lê e debate os romances de Eça de Queiroz , é como se Eça fosse um estrangeiro qualquer, e não um romancista trabalhando com os recursos linguísticos do mesmo idioma.

Um dos motivos para essa diferença entre Candido e Bloom pode ser puramente numérica. Para São Paulo, ser a principal cidade do Brasil é a mesma coisa que ser a principal cidade do mundo lusófono. Na metade do século XX, quando ela alcançou essa posição, já fazia um século que o Rio de Janeiro havia superado Lisboa. Nova York, por sua vez, é o centro da vida cultural dos Estados Unidos desde o século XVIII, mas mesmo hoje tem uma população e uma relevância mundial muito parecida com a de Londres. Para Candido, as vantagens de colocar São Paulo no centro de uma tradição apenas brasileira parecem muito maiores que os custos de abrir mão de Camões , Eça e Fernando Pessoa . Para Bloom, a perda de Shakespeare, Milton , Austen e Woolf seria incalculável, e ele não quer Nova York como o centro de uma tradição meramente americana.

Nas pesquisas do grupo Globalization and World Cities Research Network - GaWC, publicadas desde 1998, cidades são analisadas conforme seu nível de integração e de centralidade na economia mundial e classificadas como Alfa++, Alfa+, Alfa, Alfa-, Beta, Gama etc. Em todas as edições da pesquisa, Londres e Nova York são as únicas cidades no nível Alfa++, os dois centros da economia mundial. No mundo lusófono, São Paulo aparece sempre na faixa das cidades Alfa ou Alfa-, Lisboa às vezes como Alfa- e às vezes como Beta, e o Rio sempre como Beta. São Paulo é enormemente mais central no mundo lusófono que Nova York é no mundo anglófono. O mundo da língua espanhola, por sua vez, tem três centros de quase a mesma importância: Madrid está sempre na faixa Alfa, enquanto Buenos Aires e a Cidade do México ficam entre Alfa e Alfa-. O Pierre Menard de Borges se dá o trabalho de reescrever o Quixote, mas seria difícil imaginar um Borges brasileiro prestando a mesma homenagem a uma obra portuguesa.

Na mesma época em que Candido estava descrevendo a literatura portuguesa como um arbusto de segunda ordem, e a brasileira como um galho secundário dela, o australiano Henry Green descreveu a literatura de língua inglesa como uma enorme figueira, que deixa fincar novas raízes em terras novas, produzindo literaturas irlandesa, estadunidense, australiana etc., mas tudo ligado ao mesmo organismo. Na escala do GaWC, Sydney fica sempre entre as faixas Alfa+ e Alfa, um pouco mais alto que São Paulo, mas São Paulo é o pico do mundo lusófono, enquanto Sydney fica no segundo escalão do mundo anglófono, junto com Chicago, Toronto e Los Angeles. Um dos primeiros romances policiais foi escrito em Melbourne, publicado com grande sucesso em Londres, e influenciou Conan Doyle a escrever as histórias de Sherlock Holmes. Os romances de Patrick White , australiano vencedor do Nobel de 1973, foram publicados sempre em Londres e em Nova York. Nenhum autor australiano vai virar as costas à possibilidade de ser lido em países de população muito maior que a sua terra natal.

Enfim, modelo de Candido pressupõe um Brasil que é o centro do mundo lusófono, que não tem nenhum país vizinho que fale a mesma língua, e que contém apenas um sistema literário. Nenhum outro país no Novo Mundo pode gozar desse tipo de centralidade em relação a sua língua, então esse aspecto do modelo dificilmente se aplica a outros países. Para o modelo poder ser útil em casos como a relação entre a literatura uruguaia e a argentina, ou entre a literatura australiana e a estadunidense, ele também teria que se abrir à possibilidade de analisar um sistema pernambucano, ou um sistema sul-rio-grandense, articulados com os sistemas paulista e fluminense. ■

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