Edição 527 | 27 Agosto 2018

O longo caminho ao interior de si em busca da identidade

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Ricardo Machado

Thiago Carvalho Wera’i, fotógrafo e documentarista, encontrou na retomada de suas raízes indígenas um sentido para a própria ancestralidade

Na contramão do espírito do tempo, da individualização e da homogeneização do mundo, o caminho em busca de uma ancestralidade encontra entraves não somente estatais, de reconhecimento de uma identidade indígena, mas também existenciais. “Hoje eu sei que sou indígena. Não descendente. Eu sou indígena. Pois sei que venho de um povo – e é próximo. Hoje eu me autoafirmo indígena mais para dentro do que para fora. Era dentro de mim que eu precisava dizer e ouvir sobre minha origem e ancestralidade”, conta Thiago Carvalho Wera’i, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “É complexo. As pessoas não entendem e esse processo não é reconhecido. Mas quem é o Estado, por exemplo, para negar quem eu digo ser? Meu espírito ‘fala’ alto dentro de mim. Ele diz quem eu sou”, complementa.

Thiago, no entanto, não está sozinho. “Os [indígenas] de contexto urbano que buscam identificar e comprovar sua origem, como eu, são muitos. Estes também têm um papel importante: sua busca própria de autoafirmação reflete no sentido da construção e de reafirmação de um Brasil indígena e não um Brasil colonizado que é o que se mais escuta, lê, presencia”, pondera. “O Brasil precisa descolonizar e reconhecer a sua verdadeira origem. Talvez este seja o primeiro passo para conquistarmos o bem viver. Temos que lutar hoje contra a matança do conhecimento, que é histórica, desde a chegada dos europeus aqui nesta terra até os dias de hoje, onde ainda se ensina nas salas de aula uma ‘ficção’ sobre a história dos povos indígenas. Não somos ficção. Somos a origem da história desse país”, provoca.

Thiago Carvalho Wera’i é jornalista, fotojornalista e documentarista. Dirigiu os curtas documentários Atrás da Pedra – Resistência Tekoa Guarani, Parente Guerreiro – Luta e Resistência Indígena, Guarani Mbyá – Um ato legítimo e Ribeirão das Lavras – Um rio guarani. Também participou dos filmes Maino'i - Opy Pyau Itakupe, que ainda não foi a público, Avaxi Ete'i - Milho Verdadeiro e Ei Yma Guare - O mel do passado (em montagem, com previsão de inauguração na aldeia agora no mês de setembro). Como fotógrafo, produziu uma série, que ficou exposta no Salão de Fotografia Consigo, em São Paulo, com o título Atrás da Pedra – Por uma terra sem males, com imagens feitas na gravação do primeiro filme.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual sua relação de vida com as ancestralidades indígenas? Em suma, qual sua origem indígena?
Thiago Carvalho Wera’i – Em 2015, quando passei a ter contato com povos aldeados e onde realizei um filme documentário, eu comecei a sentir uma mudança profunda. Eu queria saber mais dos povos, da cultura ancestral, do modo de vida, de mim etc.

No primeiro contato com a terra sagrada eu senti que deveria começar a me questionar e buscar respostas de quem eu era. Pois bem. Até que comecei a perguntar à minha família sobre nossas origens, regiões de nascimento etc. Até que viajei, sem sair do local – para o norte de Minas Gerais – local tradicional do povo Maxakali e descobri, em minhas interrogações familiares, que meu avô materno – falecido em 2014 – convivia com os Maxakali em aldeia e que falava a língua quando retornava para sua casa. Nunca ninguém me disse se somos da origem Maxakali, mas meu espírito sempre me coloca em situações que me ligam a este povo principalmente quanto à espiritualidade.

Hoje eu sei que sou indígena. Não descendente. Eu sou indígena. Pois sei que venho de um povo – e é próximo. Hoje eu me autoafirmo indígena mais para dentro do que para fora. Era dentro de mim que eu precisava dizer e ouvir sobre minha origem e ancestralidade.

Em 2017 eu tive a honra, depois do momento certo, de receber um nome em Guarani Mbya. Wera’i. Foi, num momento à parte, de uma das cerimônias mais lindas que presenciei na aldeia. Esse momento chegou na hora certa. Me fez crescer e abriu mais minha visão, aflorou mais minha espiritualidade. Hoje em dia as coisas que, talvez, para muitos é muito mais que insignificante, para mim são as mais valiosas da vida.

IHU On-Line – Você poderia explicar como é a sua busca por autoafirmação como sujeito indígena urbano? Quais são os desafios?
Thiago Carvalho Wera’i – É complexo. As pessoas não entendem e esse processo não é reconhecido. Mas quem é o Estado, por exemplo, para negar quem eu digo ser? Meu espírito “fala” alto dentro de mim. Ele diz quem eu sou. Ele pede para que eu busque e não desista. Ele vem, de diferentes formas, me sondar.

Eu iniciei a minha pesquisa procurando saber o município de origem da minha mãe. Descobri que ela, meus tios, tias e avós maternos são de uma região do norte de Minas Gerais, próximo de aldeias tradicionais do povo Maxakali.

Minha família não se sente confortável em dizer mais sobre isso. Me respondem pouco, muito pouco. Mas uma tia, um dia, me contou sobre meu avô e suas vivências na aldeia Maxakali e de seu conhecimento da língua. “Ele falava a língua dos Maxakali quando voltava da aldeia para casa”, contou minha tia.

Mas minha busca por aqui acabou. Minha ancestralidade avisa que preciso visitar as aldeias Maxakali e é isso que vou fazer em breve. É lá que, agora, eu preciso pisar, sentir e descobrir mais sobre esta minha busca.

Acho que os desafios mesmo são conseguir respostas da minha própria família. De resto, nada mais. Quando eu descobrir o meu povo, terei isso para dentro de mim. Terei a certeza comprovada da minha origem indígena.

IHU On-Line – Por que a importância de reconhecer indígenas não aldeados com os direitos que a constituição outorga a pessoas fora do aldeamento?
Thiago Carvalho Wera’i – O indígena de contexto urbano tem um papel fundamental na sociedade e seu próprio povo, assim como o aldeado. Em alguns casos, foram aldeados, mas chegaram às grandes cidades para buscar se aprofundar no conhecimento político e social do não indígena para ajudar a defender seu povo de modo igual, no mesmo tom jurídico da palavra.

Os de contexto urbano que buscam identificar e comprovar sua origem, como eu, são muitos. Estes também têm um papel importante: sua busca própria de autoafirmação reflete no sentido da construção e de reafirmação de um Brasil indígena e não um Brasil colonizado que é o que se mais escuta, lê, presencia.

Unidos, os parentes aldeados, inclusive os de contexto urbano, buscam na autodeclaração uma força capaz de fazer o país reconhecer sua origem e chegarmos mais perto de obter nossos direitos, principalmente o de se autoafirmar e o direito à terra. Pois é isso que, há mais de 518 anos, tentam tirar de nós.

IHU On-Line – De que maneira nas suas atividades, como documentarista e fotojornalista, você trabalha a valorização dos saberes ancestrais ameríndios?
Thiago Carvalho Wera’i – Em 2015, quando eu dirigia o Atrás da Pedra - Resistência Tekoa Guarani, filme produzido em terra Guarani Mbya, em São Paulo, eu identifiquei que poderia, de modo independente e com a ajuda dos parentes, por meio das ferramentas da fotografia e do cinema usá-las como um instrumento para documentar a nossa cultura, resistência, ancestralidade e respeito com a terra e a natureza.

Muitos ainda acreditam que uma variedade dos mais perfeitos conhecimentos sobre um certo modo de vida foi transferido do colonizador para os indígenas. Até isso querem roubar de nós e patentear. Mas, não! Muito desse conhecimento é originário dos povos indígenas dessa terra. E documentando isso, vamos provando o contrário do que pensa este colonizado e mostrando que, há mais de 518 anos, nossa cultura se mantém de pé, viva, forte e de uma sabedoria riquíssima que dinheiro nenhum no mundo compra e homem nenhum no mundo tira.

IHU On-Line – Como as artes têm se tornado um instrumento político importante na luta indígena?
Thiago Carvalho Wera’i – Vejo o cinema indígena diferente do que é feito pelo não indígena. O nosso é, na maioria das vezes, desligado da maioria das normas e regras acadêmicas, técnica etc. Não precisamos de muito para contar a nossa história. E quando precisamos de um não indígena – e há bons por aí – nós precisamos trabalhar em conjunto e a nossa voz tem que prevalecer. É preciso reconhecer, identificar e se colocar no lugar de fala. São ferramentas importantes que, de modo geral, reproduzem a nossa cultura, nossa luta, nossa existência e resistência nos dias de hoje, por exemplo.

IHU On-Line – Que projetos e iniciativas indígenas na área do audiovisual você indicaria para as pessoas conhecerem?
Thiago Carvalho Wera’i – Do cinema, no qual eu me identifiquei muito para produzir os meus com os parentes, Vídeo nas Aldeias, idealizado por Vincent Carelli e muitos outros.

Do rádio, Rádio Yandê e a Rádio Cunhã etc.

Da música são muitos, mas os que estão perto de mim, sou fã e, de certo modo, ajudo com o que posso, Wera MC, Oz Guarani e Katú.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Thiago Carvalho Wera’i – Eu acredito nessa luta apesar de ver, a todo momento, preconceito e um retrocesso aos nossos direitos e à nossa existência. Lutamos pelo que é nosso – que na maioria também é do não indígena –, como a natureza. Lutamos contra o genocídio, etnocídio e epistemicídio.

O Brasil precisa descolonizar e reconhecer a sua verdadeira origem. Talvez este seja o primeiro passo para conquistarmos o bem viver. Temos que lutar hoje contra a matança do conhecimento, que é histórica, desde a chegada dos europeus aqui nesta terra até os dias de hoje, onde ainda se ensina nas salas de aula uma “ficção” sobre a história dos povos indígenas. Não somos ficção. Somos a origem da história desse país.

Acredito na luta do meu povo, meus parentes. ■

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